07 Fevereiro 2018
Atuando na área de bem-estar de animais de produção desde os anos 1980, o professor Mateus Paranhos, da Unesp de Jaboticabal, é um dos maiores especialistas brasileiros no assunto. Em entrevista à Globo Rural, ele falou sobre a insuficiência da legislação brasileira para o transporte de animais, responsável pela situação quase insólita que confinou mais de 27 mil cabeças de gado no Porto de Santos na última semana.
O rebanho, propriedade do frigorífico Minerva, tinha como destino a Turquia, mas, após contestações de entidades que atuam na defesa dos direitos dos animais, a Justiça proibiu o transporte primeiro em Santos e depois em todo o Brasil. Agora, espera-se uma batalha judicial que pode prolongar ainda mais a agonia dos garrotes que ruminariam durante longos dias no porão de um navio no oceano Atlântico.
Para o zootecnista, o momento é ideal para que a questão seja discutida de fato. A solução a ser encontrada seria a possível, não a ideal, e certamente não agradaria na íntegra aos extremismos das ONGs ambientalistas e do poderio econômico da indústria da carne, mas uma coisa é certa. Deve-se respeitar, antes de tudo, o bem-estar dos animais. “Na nossa produção industrial o sujeito, o indivíduo ficou em terceiro plano, é tudo uma condição de escala”.
A entrevista é de Vinicius Galera, publicada por Globo Rural, 04-02-2018.
Como o senhor vê as decisões que culminaram na proibição da exportação de gado vivo?
Trata-se de um conjunto de decisões conflituosas que causam instabilidade para todos, para quem está envolvido no negócio da exportação e para quem está fazendo campanha contra isso. No fim das contas, quem paga o preço com maior sofrimento são os animais. Precisamos de uma regulamentação que minimize o risco de decisões judiciais conflituosas, um juiz fala que sim, outro fala que não e baseado em quê? É muito inseguro, tem uma situação de insegurança jurídica. Ninguém está seguro, nem quem está fazendo negócio, nem quem está militando contra.
O que gera essa insegurança?
Isso é produto de uma falta de regulamentação clara. Se você for ler a regulamentação que existe vai ver que é muito vaga. O juiz em um dos despachos questiona até a forma como o animal vai ser abatido no local de destino dele, se lá se respeita a legislação brasileira. Essa história está repetindo o que aconteceu na Austrália há alguns anos. A Austrália parou a exportação para fazer uma autorregulamentação. Todos os interessados envolvidos se reuniram. Estamos devendo isso. Nossa regulamentação não é boa o suficiente para deixar as coisas fáceis para um juiz tomar uma decisão, fica sempre uma coisa muito geral.
Como o senhor vê o transporte de gado vivo?
Qualquer transporte de gado, seja terrestre, fluvial, marítimo ou aéreo pode ser feito em boas ou em más condições. O problema hoje é que o valor dos animais em geral, não só o bovino, é tão baixo que o transporte, para diminuir custo por unidade de animal transportado, tem que trabalhar com densidades maiores (metros quadrados por animal). Isso está diluindo o custo. Tudo começa com essa perspectiva. O problema não é o transporte e sim as condições em que é feito. Isso implica em espaço para o animal, o tempo que ele vai ficar no veículo em que está sendo transportado. Se esse tempo for muito longo, se ele tem acesso principalmente à água, como é a parte do microclima dentro do veículo, não é só dentro do navio. Tudo isso vai ter um efeito no bem-estar dos animais. A qualidade do ar, a temperatura, umidade. E para viagem de longa distância toda essa preocupação com o fornecimento de água, alimento e de espaço.
E se as condições não forem ideais?
Após oito horas os bovinos começam deitar, eles se cansam de ficar em pé. Se não tiverem um espaço adequado, se o meio tiver uma densidade muito alta fica difícil pra ele se levantar porque os outros acabam ocupando o espaço dele e aí tem o risco dele ser pisoteado e o problema ser mais grave.
No caso do navio, além do tempo de viagem, o fato de ser um ambiente inteiramente fechado pode tornar o transporte pior?
Lógico que pode. Eu não conheço o navio que está embarcando em Santos, não vi o procedimento de embarque, não vi o alojamento de animais dentro do navio, portanto eu não posso fazer um julgamento do que eu não vi. Tudo vai depender dessas condições que estou falando. As críticas das ONGs são coerentes, os argumentos de defesa de quem está exportando também são coerentes. Agora, para quem não está acompanhando o dia a ida fica difícil julgar.
O tamanho do rebanho potencializa os riscos?
Em um movimento de 27 mil animais em condições normais, onde tudo está dando certo, já existe risco, até nos confinamentos às vezes o animal não se adapta. No movimento desse número de animais em uma situação conflituosa como essa que você não sabe o que vai acontecer, o risco é muito maior. Por exemplo, os animais que não foram embarcados, os que estavam lá no porto e tiveram que voltar voltaram para onde? Eu não sei, mas imagino que o estresse foi muito maior do que se eles estivessem lá. E por que eles estavam lá? Por que até aquele momento podia. Eu não estou discutindo a questão ética ou moral. Estavam lá porque podia, de repente não pode.
Os animais podem sofrer mais com o impasse?
É preciso reconhecer que uma viagem como essa que dura tanto tempo é estressante para o animal e aí tem muitas implicações. Quanto tem de comida? Quantas pessoas estão lá para alimentar? Quantos veterinários estão cuidando dos animais? Essas perguntas precisam ser respondidas por aqueles que estão interessados na exportação. Eu diria que quanto mais honestidade tiver nessa relação melhor fica a solução do problema. Um diretor do ministério [Guilherme Henrique Figueiredo, diretor do Departamento de Saúde Animal do Mapa e delegado do Brasil na Organização Mundial de Saúde Animal] disse, e eu concordo com ele, que os animais que estão embarcados esperando estão pagando um preço alto por essa indefinições. A permanência deles no navio ou no caso de serem obrigados a embarcar ou desembarcar também causa estresse. No fim das contas quem está pagando o pato são os bovinos.
Mas a viagem não seria mais estressante?
Qualquer transporte causa estresse, só o fato de você tirar um animal do lugar onde ele está e pôr no embarcadouro dentro do caminhão e começar uma viagem causa estresse. Às vezes no navio é igual, esse estresse pode ser prolongado, quando você tem uma viagem muito longa como é o caso dessa para Turquia. O estrese se prolonga por um período maior, os animais têm que se adaptar a essa situação e alguns não se adaptam. No trasnporte de animais de confinamento como vacas, por exemplo, a porcentagem de animais que chamamos "refugo ao cocho" chega a até 10%. É menor esse número quando você está trabalhando com bois ou com bezerros. No caso do navio eu não sei qual é esse número, ele também deveria estar disponível e também ter um plano estratégico para sabermos o que eles fazem quando o animal não se adapta. É o tipo de informação que falta.
Por quê?
Falta uma definição de um apolítica pública. Porque esse tema envolve questões econômicas, envolve questões políticas, forças políticas pró e contra dentro do Congresso e em outros níveis, envolve uma legislação que pra mim não é satisfatória. Envolve questões culturais e de princípios. Então eu acho que precisava uma discussão ampla com todos os interessados para ver se chega a um bom termo.
A discussão é possível?
Honestamente eu não sei se é possível porque a pressão econômica sempre se impõe. Se você olhar o Riispoa (Regulamento de Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal), a legislação do ministério da Agricultura que regulamenta os animais nos frigoríficos, eu não sei se mudaram isso, mas era 2,5m por animal adulto que deveria ter no curral do frigorifico, onde o animal não passa 24 horas. Dentro dos caminhões essa metragem é muito menor, espera-se que a viagem seja mais curta possível. Ai se começa a criar essa confusão. Uma viagem marítima não é curta.
Entidades de produtores se posicionaram repudiando a decisão judicial.
Eu já sentei à mesa com os dois lados, com ativistas, das ONGs, e com representações do setor pecuário. As posturas são radicais. Você leva uma proposta de conciliação e ela não é bem vista nem por um lado nem por outro. Tenta encontrar um meio termo, se é que ele é possível, mas não se não abre nem a discussão. Da mesma forma que eles estão se defendendo, as ONGs estão atacando. Tem mais uma coisa importante, a lei ou a regulamentação, seja ela qual for, pode também não ser seguida. A ideia de atacar a exportação de animais vivos pode ser injusta para aquele que faz direito e perfeitamente cabível ou até suave demais praquele que está fazendo de uma forma ilegal. O abate clandestino é proibido no Brasil, mas não significa que ele não existe. É a mesma coisa. O discurso fica no geral em vez de atacar o problema.
O senhor não acredita que esse caso pode tornar a discussão mais aprofundada?
Eu espero que sim, para o bem dos animais. Porque se em cada embarque for acontecer esse impasse, você imagina, nós não estamos falando de uma operações que se resolve facilmente. Como é que vai desembarcar mais de 27 mil animais? Não é uma operação que você vai lá, encontra um sítio e põe os bichos como se fosse um caminhão. Como é que você vai fazer isso com 27 mil bichos? Impossível. Essa emergência, que é produto de interpretação da legislação, produto de pressões de certo e errado baseado na nossa legislação ou em princípios éticos, ela não deveria causar transtorno dessa ordem nesse momento.
Qual seria a solução?
A solução mais adequada seria suspender definitivamente a exportação até que se regulamente de uma forma que seja considerada razoável, que tenha indicadores concretos que deem a possibilidade de fazer essas medidas. Para saber se está tudo bem lá. Agradar todo mundo não vai mesmo. Precisávamos de uma regulamentação com maior detalhamento, que definisse objetivamente o que se entende por bem-estar animal ou maus-tratos. Um despacho de um dos juízes estava relacionado a maus-tratos. O que são maus-tratos? Isso precisaria estar definido. Como está definido no caso dos frigoríficos precisaria também estar definido no transporte de cargas vivas, não importa seja em navio ou onde for.
Para os frigoríficos a regulamentação é adequada?
Eu diria que é melhor do que aquela que está relacionada ao transporte.
Por que para o transporte é ineficiente?
Ela não existia até há pouco tempo, as portarias são bem recentes. Tudo isso vai para consulta pública, reuniões, comitê para discutir etc. E as forças estão lá um puxando para um lado, puxando para outro e sai uma normativa que é a possível. Geralmente elas não têm detalhamento suficiente para dar confiança a quem está analisando se as coisas estão sendo feitas corretamente ou não.
Como seria possível fazer a coisa certa?
Uma das coisas é que o bem-estar, do ponto de vista científico, tem que ser medido. Não pode ser o que eu acho, não pode ser intuitivo. Ele deveria ser medido. Eu me refiro é isso, a legislação devia trazer algum elemento que permitisse essa abordagem objetiva, essa medida.
O que pode acontecer agora?
Eu quero enfatizar que esse acontecimento, que é muito estressante para os animais, causa prejuízo econômico para empresa que está exportando e causa perplexidade na sociedade como um todo. Acho que era um momento para chamar para um conversa, um debate público, pra uma coisa mais coerente e consciente das pessoas quererem fazer o melhor. Porque levantar a bandeira do não pode, que é o que a ONG faz, no meu modo de entender cai no mesmo erro de quem tem interesse econômico por trás disso, que acha que tudo pode. Eu acho que tinha que ter regras, limites, e muito bem definidos. Eles não estão bem definidos. Não estão.
Em uma situação ideal haveria distâncias tão longas para os animais percorrerem?
Eu acho que o ideal era que essa atividade não acontecesse. O ideal é que nosso mercado tivesse uma estabilidade não só estacional, ao longo do ano, mas regional, o que acontece em São Paulo, no Pará ou no Maranhão ou em qualquer lugar fosse relativamente próximo em termos econômicos. Uma condição em que não precisasse exportar matéria-prima. Da mesma forma que exportamos minério de ferro, ao exportar gado estamos exportando matéria-prima. É uma opção para quem está insatisfeito com o preço mercado? É. É uma opção que tirou o estado do Pará de uma condição difícil há alguns anos, quando a arroba era quase 20% mais baixa que no resto do país sendo que hoje ela praticamente se igualou por causa da exportação do animal vivo? É. Então a gente não controla essas coisas. O ideal era exportar carne e carne de primeira. O problema maior é que nossos animais são commodities, o valor deles não é você ou o dono do animal que impõe, é um valor que o mercado impõe e a situação é essa. A pessoa tem que fazer um esforço danado para conseguir ter lucro. Qualquer oportunidade que surge acaba se tornando um negócio melhor. Não estou dizendo que é um bom negócio, é um negócio melhor. E a consequência para o bicho nem sempre é boa. Hoje, por exemplo, é difícil alguém chamar um veterinário para cuidar de um bezerro, para cuidar de um rebanho comercial porque o tratamento acaba custando mais caro que o animal. Se pensar em suíno e frango então...
A substituição é mais barata?
Na verdade nessa produção industrial o sujeito, o indivíduo ficou em terceiro plano, é tudo uma condição de escala, de produção e tal. Eu acho que o problema está aí. Com essa forma de tratar os animais fica difícil colocar essa questão de respeito ao bem-estar. Porque vamos deixar bem claro: bem-estar é tudo: é saúde, é nutrição, se o animal está com estresse ou sem estresse, é ambiente confortável e quando eu falo em conforto é conforto térmico, um lugar confortável pra deitar, higiene, tudo isso é bem-estar. Há alguns anos quando o frango não estava valendo nada o pessoal estava matando pintinho. Até apareceu um produtor de Santa Catarina jogando pintinho numa valeta e enterrando vivo, então como é que a gente chega nessa situação? É um produto desse sistema.
A vida dos animais não tem valor?
Ele é um negócio, ele é um bem. Tem um custo e um valor de mercado segundo a ótica do sistema industrial de produção animal, onde são tratados como objetos. Isso é completamente diferente do meu entendimento sobre a atribuição de valor a um animal, que entendo ter valor intrínseco como ser vivo e senciente. Daí, a minha reflexão sobre equívoco de tratarmos os animais de produção como commodities. Não há como reconhecer o valor intrínseco dos animais em um contexto como esse. Aí está um grande desafio a ser enfrentado.
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“O maior problema é que nossos animais são commodities” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU