06 Janeiro 2018
Que 2018 marque o início de uma reinvenção da esquerda. Uma esquerda que:
1. Queira governar. Que reivindique o legado do que houve de bom nos governos do PT (mais de Lula do que de Dilma) e também faça a crítica necessária aos equívocos. O erro mais grave, na minha opinião, foi não ter se aberto para os caminhos apontados em 2013. Isso nos afasta, necessariamente, da crítica fácil e sectária que enxerga o problema dos últimos governos em não terem sido "suficientemente de esquerda". Ninguém sabe mais o que isso quer dizer. A disputa pela autenticidade da esquerda nos lança, inevitavelmente, no passado.
2. Tenha um projeto sintonizado com o nosso tempo. Ancorado em direitos sociais -- principalmente, educação e saúde públicas -- e que seja radical no combate às desigualdades. Mas que pense também em modos de fazer isso levando em conta as mudanças no mundo do trabalho e na tecnologia, a preocupação com o futuro do planeta e a crise de representação política. Vai ser preciso se aproximar cada vez mais dos novos movimentos, evitando as práticas cartoriais e hierárquicas dos partidos tradicionais.
3. Sente na mesa -- e não levante até conseguir alguma coisa. Que dialogue, construa convergências e consensos em torno de medidas essenciais. Políticas efetivas de combate à desigualdade, legalização das drogas como caminho inevitável para a segurança pública, medidas focadas no combate ao racismo e ao machismo estrutural de nossa sociedade são apenas alguns exemplos de pautas em torno das quais é possível avançar no diálogo (inclusive com setores liberais).
2018 será um ano cheio de desafios e incertezas. Escutar muito, refletir profundamente e traçar estratégias que possam ter alguma efetividade parece ser o melhor caminho. Vou estar nessa até a raiz dos cabelos. Quem quiser vir junto é só chegar.
Feliz ano novo!
O recuo de Michel Temer, agachando-se diante de Sarney, me fez lembrar da frase muito pouco republicana de Lula a respeito do velho cacique maranhense: "Sarney não pode ser tratado como um homem comum".
Escárnio. A foto do meu querido amigo Jorge William Marinho, na capa do Globo de hoje, embrulha o estômago. Roberto Jefferson, depois de “fazer” a filha ministra do Trabalho de Temer, gargalha do Brasil.
Engana-se quem pensa que Roberto Jefferson surgiu com a denúncia do mensalão. Ele já era deputado e dono (usurpador) do PTB. E por que era deputado? Porque se projetou como advogado barraqueiro de um programa chamado "O Povo na TV", na TVS - depois SBT. Vejam só o nome: "O Povo na TV".
O povo estava na TV, naquele início dos anos 80, para ser humilhado. E gerar audiência para um empresário sem escrúpulos: Sílvio Santos.
Imaginem um misto de Marcia Goldschmidt com Programa do Ratinho. O assistencialismo à Luciano Huck sem verniz. "O Povo na TV" era baixaria pura. E foi por causa desse programa (com Wilton Franco, Wagner Montes, Sérgio Mallandro e gente do mesmo naipe) que Roberto Jefferson foi eleito pela primeira vez deputado.
(Imaginem que, em 1982, uma mulher foi à emissora reclamar que não conseguia internar o filho de 9 meses, com tumor nos olhos. Foi parar nas telas de "O Povo na TV". O bebê agonizante morreu diante das câmeras.)
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É essa a filiação política da nova ministra do Trabalho. (O avô Roberto Francisco, o Betão, era do PTB, mas parece que a canalhice se projetou mesmo com Jefferson, que foi filiado ao MDB e ao PDS, durante a ditadura, e entrou no PTB justamente na época do programa.)
O sobrenome Brasil de Cristiane Brasil Francisco é tão representativo como o nome daquele programa asqueroso. Insisto: "O Povo na TV".
O povo não está representado na TV como deveria porque o Brasil tem um sistema plutocrata de concessão de meios de comunicação. Silvio Santos e Roberto Marinho eram servis em relação aos milicos torturadores. Depois ganharam biografias dóceis e renovações automáticas de suas concessões televisivas. Para continuarem no centro de nossa desordem, no centro do escárnio.
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Se Chacrinha atirava bacalhaus e hordas de apresentadores de TV se projetaram humilhando o povo (até os níveis mais disfarçados da atual cena global) foi porque a esses senhores - os donos da mídia - não convém dar voz efetiva aos trabalhadores, camponeses, aos excluídos. Convém apresentar caricaturas. Despolitizar.
Tudo a partir de concessões públicas, não custa insistir. Os irmãos Marinho se tornaram bilionários, Silvio Santos manda, gargalha e desmanda, e uma de suas crias mais sórdidas (Roberto Jefferson) agora emplaca uma ministra do Trabalho. Uma ministra, finalmente!
Cristiane Brasil não representa somente o DNA dos corruptos boquirrotos, portanto. Ela é filha dessa violência midiática, descende dessa forma televisiva, dessa estrutural condição da TV brasileira de perpetuadora de desigualdades e elaboradora de farsas, de simulacros.
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Por isso tudo sua chegada à pasta do Trabalho multiplica seus significados. Como símbolo de nossas subtrações. "Obrigada, papai", disse ela, enquanto papai dava bênção à indicação da filhota - diante do presidente mais impopular da história, Michel Temer.
No fundo ela deveria agradecer a outro papito, a Sílvio Santos, esse alpinista que sempre enganou a população, a começar da narrativa cínica, a de que sempre foi um "camelô". (Raul Seixas o definiu para a eternidade ao falar daquele "riso franco e puro para um filme de terror".)
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A população brasileira enganada por gente como Temer, Silvio e Marinho assiste agora à televisão - com protagonistas talvez menos patéticos - como filha de todas essas enganações, de toda essa somatória. Essas burlas estão na retrospectiva da Globo, que defendeu as reformas que promovem a miséria, estão no Caldeirão do Huck, estão no Criança Esperança.
E estavam na defesa incondicional que William Waack fazia da "reforma trabalhista". Pior: ele defendia algo ainda mais radical que a destruição de direitos promovida pelo governo Temer. Ele defendia uma implosão ainda maior. (E agora anda com advogado a tiracolo nos corredores da Globo para exigir seus direitos...)
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Gente como Cristiane, Waack e Bob Jefferson, não nos enganemos, são apenas os instrumentos. Úteis, sem serem inocentes. O escárnio vem de cima - dessa aliança histórica entre os donos do poder, os donos do capital e os donos dos meios de comunicação.
A indicação da deputada para o ministério é apenas mais um entre os milhares de escárnios que estamos vendo nos últimos meses. Mas é representativa. Com ela, finalmente "O Povo na TV" ganhou um ministério.
Cristiane Brasil tinha apenas 9 anos quando aquele bebê com tumor morreu diante das câmeras. Aos 44 anos, assume uma pasta atropelada, um ministério infeccionado, moribundo. Síntese deste país que andou para trás.
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Outros bebês morrerão diariamente sem que as câmeras transmitam. Como consequência da reafirmação da política brasileira como instância genocida, do simulacro midiático como violador de consciências.
Cristiane e Jefferson representam o Brasil dos capitães midiáticos do mato. Acima deles estão os donos desse fazendão, dos latifúndios televisivos à cleptocracia política.
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"O Povo na TV". "Obrigada, papai". Um presidente que distribui ministérios como se atirasse bacalhaus. A história do Brasil se repete como mofo.
Será provavelmente o maior escândalo produzido por um livro sobre política americana em muitos anos. Aliás, o livro nem saiu ainda e o escândalo já começou. "Fire and Fury: Inside the Trump White House", de Michael Wolff, sai dia 09 de janeiro e já é o número UM em vendas na Amazon. Algumas horas atrás, o New York Magazine publicou um trecho sob o título "Donald Trump didn't want to be President" (link nos comentários) e o artigo caiu como uma bomba em Washington.
Michael Wolff, um jornalista de celebridades, nova-iorquino como Trump e escolado no mesmo mundo de magnatas, teve acesso direto à campanha e à Casa Branca durante o primeiro ano de governo. Algumas das revelações do livro são hilárias. A primeira e mais assustadora é algo que alguns de nós antecipávamos por intuição e que a foto abaixo, da noite da apuração, confirma: Trump, Melania, Ivanka e Donald Trump Jr. trabalhavam com a ideia de perder a eleição. Não só esperavam perder, como DESEJAVAM perder. Trump fez cara de "quem viu um fantasma" quando se confirmou o resultado. Melania caiu em prantos de desespero.
O plano era "ganhar perdendo": Trump perderia a eleição se martirizando como vítima de Hillary e se transformaria no homem mais famoso do mundo, Ivanka e Jared se consolidariam como celebridades internacionais, Melania, a quem Trump prometeu a derrota, voltaria aos seus almoços na high society e Bannon se firmaria como chefe do Tea Party. Funcionaria para todo mundo. Deu tudo errado. Ganharam.
Daí em diante, o texto é uma sucessão de revelações ao mesmo tempo cômicas e assustadoras. Um assessor foi chamado para explicar a Constituição a Trump. "Cheguei até a Quarta Emenda", disse ele, "quando ele começou a revirar os olhos e segurar os lábios". Bannon, conselheiro principal de Trump durante um bom tempo antes e depois da posse, deu uma declaração em on, se referindo à reunião dos Trump com os russos na Torre Trump como "traição nacional". Uma série de figuras associadas a Trump deram declarações, algumas delas em on, sobre o Presidente como um "imbecil", "idiota", com "inteligência de uma criança de onze anos de idade" etc.
Há que se pontuar que Wolff tem certa fama de florear um pouco as coisas, como é próprio do jornalismo de celebridades, mas várias das revelações do livro já vão se confirmando.
A que mais me assusta, e deveria assustar qualquer um que ainda tenha algum grau de confiança nessa instituição chamada democracia, é esta: a eleição de 2016 nos EUA opôs a candidata mais convencida de sua vitória e mais obcecada com seu direito ao cargo, por um lado, ao único candidato de que se tenha notícia que queria perder, que sequer considerava a possibilidade de vencer, por outro.
E venceu o sujeito que, ao receber a notícia, fez essa cara aí.
Há quem defenda ser a reindustrialização, com um plano de desenvolvimento nacional, a saída para o futuro do país. Há quem veja na indústria criativa e no empreendedorismo popular combinada à renda mínima uma alternativa mais produtiva. Há quem acredite que a globalização é um processo financista que deve ser compensado por uma política econômica nacionalista. Há quem a vê como processo de integração sociocultural e econômico irreversível. Para alguns, toda privatização é necessariamente um entreguismo e o patrimônio público deve ser preservado. Para outros, o problema pode ser discutido caso-a-caso, dependendo do objeto. Para alguns, o Pré-sal brilha como a galinha dos ovos de ouro do desenvolvimento do país. Para outros, lugar de combustível fóssil é embaixo da terra.
A "democracia burguesa" é para alguns um mero atalho para a revolução. Para outros, não existe diálogo fora da democracia. Para alguns, direitos humanos são garantias liberais sem valor em si mesmas, apenas "formais" num contexto de desigualdade substantiva. Para outros, são valores induscutíveis que condicionam os conteúdos. Para alguns, os índios devem ser integrados à sociedade brasileira, uma vez que não é possível continuar vivendo "no atraso" em pleno século XXI. Para outros, os índios são a vanguarda do tempo por vir a partir da catástrofe ambiental. Para alguns, palavras como "gestão" e "corte de privilégios" aplicadas à Administração Pública são mero sintoma do neoliberalismo. Para outros, necessidades que se impõem.
Todos esses campos podem ser combinados em múltiplas variações possíveis, mas são abrangidos pela palavra "esquerda". Fingir que essa palavra, por si só, garante alguma unidade é fingir que não existem querelas objetivas e materiais que separam um e outro campo, para além de birras e atitudes pessoais. Composições e alianças são sempre possíveis, mas compõe-se com o heterogêneo, com aquilo que não é o mesmo que eu. Há quem, no entanto, ainda tenha uma extrema dificuldade de reconhecer -- para dizer o mínimo -- a existência de uma tendência política alheia à sua sem etiquetá-la como falsa consciência.
É aí que reside o autoritarismo "do bem" de quem se crê tão infalível a ponto de não conseguir reconhecer como legítima a perspectiva do outro.
3 recomendações do papa Francisco aos teólogos:
1. Recuperar a capacidade de surpreender-se, para produzir uma teologia com capacidade de assombro.
2. Teologia feita de estudo, pensamento e reflexão feita de joelhos.
3. teologia com olfato, com sensus fidei, como pediu o Concílio Vaticano II.
Tinha que passar no telão na virada do ano e todas as noites esse tipo de vídeo.
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