14 Novembro 2017
“Uma esquerda pragmática é cheia de valores, não tonitruante e não populista, e sabe bem que, sem uma organização partidária, a sua política não vai longe, mesmo que alguns políticos possam abrir caminho.”
A opinião é da cientista política italiana Nadia Urbinati, professora da Columbia University, em Nova York, e ex-professora da Unicamp, em artigo publicado por La Repubblica, 11-11-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Se nos perguntássemos se prezamos mais pela democracia ou pela esquerda, deveríamos responder pela democracia. Por essa razão, prezamos pela esquerda. É o casamento entre essas duas irmãs que deve estar no coração daqueles que sentem tremer a terra debaixo dos pés da esquerda, na Itália e em toda a parte do Ocidente.
A reconstrução da democracia na Europa foi obra do reformismo cristão e social-democrático, não das direitas. Nós nos iludiríamos se pensássemos que o fascismo é um anacronismo – talvez o seja nas formas arcaicas da Itália agrícola, mas não nas ideias e nas aspirações, que continuam sendo antidemocráticas, antiuniversalistas e facciosas –, convencidos de que o Estado deve estar a serviço de uma parte, a identitária e o nacionalista. Essa foi e ainda é a ordem da hierarquia. A democracia constitucional é o oposto. E precisa de uma esquerda reformista.
Desde 1945, esse é o paradigma na Itália e na Europa. Que funcionou não só por uma questão de maioria numérica. A esquerda tinha uma base social claramente definida – uma classe trabalhadora com os seus possíveis aliados sociais – da qual decorria uma visão não ambígua das políticas a serem feitas. Essa clareza de horizonte substancialmente não mudou. Porque é verdade que as formas do trabalho mudaram, mas a composição do poder social, contudo, segue a condição do trabalho (e da sua ausência ou precariedade); segue a condição popular, não a da riqueza.
A igualdade e a justiça social sempre foram as pernas e as antenas da esquerda. Não são princípios abstratos – são princípios regulatórios que ajudam a ler os eventos e os fatos, a identificar o que se pode querer agora, a fim de poder preparar outras decisões amanhã.
Não há dois mundos: uma sociedade ideal que está acima das nossas cabeças e dos políticos que ciscam como podem, com a suposição de que as coisas do mundo são diferentes. A esquerda democrática é pragmática. E o é porque adota aqueles dois princípios como suas diretrizes e raciocina “como se” a sociedade que quer, deve ser justa e solidária. Sem aquele “como se”, sem os princípios que guiam as escolhas, a esquerda é um partido que quer votos e vagueia por aqui ou acolá como uma vespa para pegá-los, sem uma fisionomia reconhecível. E sistematicamente perde.
O “como se”, além disso, não é tão complicado de se entender. Se queremos que a nossa sociedade seja inclusiva e que os cidadãos tenham uma dignidade igual, devemos querer uma escola pública que seja tal; e devemos querer que seja boa para todos os meninos e as meninas, aberta e inclusiva, por sua vez. A escola pública é fundamental para a democracia, que não é governo dos sábios, mas deve tornar os seus cidadãos alfabetizados e aculturados, pelo seu bem e o de todos.
Não é uma opção, e as receitas não são infinitas, nem todas são compatíveis. O “como se” não é complicado de se entender nem mesmo quando se quer que a República seja capaz de estar sempre do lado dos cidadãos quando precisam de cuidados. Não é aceitável que um a esquerda se renda ao deus dinheiro e privatize progressivamente a saúde – com danos irreparáveis, também em termos de custo. E de qualidade, porque basta ir aos Estados Unidos para compreender o desastre da saúde privada.
Uma esquerda pragmática é cheia de valores, não tonitruante e não populista, e sabe bem que, sem uma organização partidária, a sua política não vai longe, mesmo que alguns políticos possam abrir caminho.
A personalização da política pode fazer bem à direita, mas faz muito mal à esquerda (e, talvez, um dos problemas do Partido Democrático italiano é justamente o seu estatuto), que deve conseguir conciliar a participação com a delegação, a liderança com o coletivo. Por essa razão, o partido deve ser uma escola de vida pública e de formação política.
Sem isso, há muita audiência televisiva e pouca construção de consenso. E o “como se” não é entendido. A audiência premia quem sabe gritar contra e quem cria polêmica; um esporte muito fácil, que não requer estudo, nem prova alguma. Essas personalidades geram mais poeira do que política. Estão longe da realidade, incapazes de reflexão pragmática. A audiência basta a si mesma e a eles.
Mas a esquerda que forma opinião deve tomar um caminho diferente e reconstruir a sua cultura política através do encontro das pessoas, em lugares materiais e verdadeiros.
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A democracia e a identidade da esquerda. Artigo de Nadia Urbinati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU