05 Outubro 2017
A polêmica em torno de Amoris Laetitia (“A Alegria do Amor”) começou já antes de o documento ser lançado, até mesmo antes dos dois Sínodos dos Bispos que discutiram questões sobre o matrimônio e a família, debates que serviram de base para a exortação apostólica.
A reportagem é de Michael Sean Winters, publicada por National Catholic Reporter, 04-10-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Em 20-02-2014, o Papa Francisco convidou o Cardeal Walter Kasper para discursar aos cardeais reunidos para o primeiro consistório do novo pontificado. O livro de Kasper “Misericórdia: Condição fundamental do Evangelho e chave da vida cristã” havia impactado profundamente Francisco e ele pediu ao cardeal alemão que compartilhasse as suas ideias com os demais purpurados. Entre os itens que Kasper discutiu estava a sua convicção de que a Igreja precisava revisitar a sua prática pastoral em relação aos fiéis divorciados e que voltaram a se casar.
Os conservadores reagiram rapidamente publicando um livro, “Remaining in the Truth of Christ” (Permanecendo na verdade de Cristo), que desafiava a proposta de Kasper e incluía ensaios de eclesiásticos destacados como os cardeais Walter Brandmüller, Raymond Burke e Carlo Caffarra. Os vários capítulos focalizaram um tema em comum: o magistério da Igreja sobre o matrimônio é “irreformável”, com base nas palavras de Jesus nos Evangelhos, e inalterado por dois milênios de vida cristã.
Claro, a prática pastoral da Igreja sobre o matrimônio mudou repetidas vezes ao longo dos séculos, e se este ensinamento é ou não “irreformável” era um assunto para os Sínodos.
No segundo semestre de 2014, realizou-se o primeiro dos dois sínodos sobre a mesma temática e Burke, mais uma vez, se destacou entre os que manifestaram preocupação, alegando que as discussões e a cobertura da imprensa estavam sendo manipuladas. Os debates dentro do salão sinodal não eram públicos, mas estava claro que havias emergidos uma parte majoritária e uma outra minoritária, com a primeira estando aberta à proposta de Kasper.
Na votação do relatório final do Sínodo, a maior parte das proposições recebeu um apoio quase unânime, porém três parágrafos concernentes ao trabalho junto à comunidade LGBT e à questão de como ajudar os católicos divorciados e recasados não conseguiram convencer dois terços dos prelados eleitores, muito embora atingissem uma maioria.
No ano seguinte, em 2015, um segundo Sínodo foi realizado e a polêmica começou novamente antes de se iniciarem os encontros, com acusações de que o processo estava sendo manipulado. Durante as discussões, dois campos de novo se enfrentaram, mas desta vez todos os parágrafos, no documento final, alcançaram uma maioria de dois terços, incluindo aqueles pertencentes a uma possível abertura para que os fiéis divorciados e recasados retornem aos sacramentos.
Francisco emitiu Amoris Laetitia em abril de 2016, baseando-se grandemente nos documentos aprovados pelos dois Sínodos assim como em outros textos tradicionais, como os escritos de São Tomás de Aquino e os decretos do Concílio Vaticano II. A maior parte do novo documento não polemizou, mas, seguindo uma recomendação dos padres sinodais, Francisco abriu a possibilidade de que os fiéis que se divorciaram e voltaram a contrair um segundo casamento poderiam, através de um processo de discernimento com o pastor local, retornar aos sacramentos, ou seja, a proposta de Kasper.
Em novembro de 2016, Brandmüller, Burke e Caffarra – todos os três ajudaram a escrever o livro que fazia oposição à proposta de Kasper, juntamente com o Cardeal Joachim Meisner, arcebispo emérito de Colônia, na Alemanha – deram o passo extraordinário de publicar as cinco “dubia”, ou dúvidas, que tinham a respeito de Amoris Laetitia.
Geralmente, um bispo com uma dúvida sobre um ponto teológico em particular irá submeter uma dubia à Congregação para a Doutrina da Fé, buscando um esclarecimento. Estes quatro cardeais escolheram publicizar a carta que escreveram quando não receberam resposta alguma do Vaticano, transformando o processo das dubia (um questionamento de boa-fé) em um desafio aberto ao papa.
As dubia perguntavam se a Igreja ainda ensina que existem certos atos que nunca podem ser feitos, se a proibição contra receber a Comunhão ainda se aplicava aos divorciados e recasados, e qual era o papel da consciência na tomada de decisão moral para um católico. Todas as dúvidas buscavam opor uma interpretação particular, e bastante conservadora, de declarações magisteriais anteriores contra declarações contidas em Amoris Laetitia.
Burke várias se colocou à disponível da imprensa para ampliar as suas inquietações sobre o tema, por exemplo aparecendo várias vezes no canal EWTN para longas entrevistas. Desde a publicação das dubia, dois dos quatro cardeais – Meisner e Caffarra – vieram a falecer.
A gama das respostas episcopais a Amoris Laetitia varia consideravelmente. Na Filadélfia, Dom Charles Chaput emitiu orientações para a implementação do documento que poderiam ter sido escritas antes de Amoris ser publicada, na verdade antes mesmo da realização dos Sínodos. Nada mudou em sua visão e, portanto, nada mudará na sua arquidiocese.
Por outro lado, os bispos de Malta emitiram orientações que claramente indicaram que os divorciados e recasados podem, após um exame profundo de consciência e em certas circunstâncias, voltar aos sacramentos. O papa elogiou um grupo de bispos argentinos pelas diretrizes que produziram, as quais se assemelharam com as dos bispos malteses.
Dom Robert McElroy, da Diocese de San Diego, convocou um sínodo diocesano para discutir os temas levantados em Amoris Laetitia.
O ataque mais recente a Amoris Laetitia veio na forma de uma “correção filial” assinada por várias dezenas de professores e ex-professores, padres e outros, a maioria dos quais relacionados com a comunidade de católicos devotados à missa tradicional em latim. O documento acusava o papa de difundir heresias e o criticava não só pela exortação Amoris Laetitia como também pelos comentários bastante positivos que fez sobre Martinho Lutero por ocasião do aniversário da Reforma.
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A polêmica “Amoris Laetitia” é anterior ao próprio documento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU