18 Setembro 2017
Para as mulheres latino-americanas, "existe uma retroalimentação entre a pobreza monetária de seus domicílios, a pobreza individual e a pobreza de tempo", alerta a especialista, que aponta para a necessidade de informações e políticas públicas para a paridade.
A entrevista é de Sonia Santoro, publicada por Página/12, 16-09-2017. A tradução é de André Langer.
Para as mulheres, o tempo não produtivo gera pobreza. Para elas, "existe uma retroalimentação entre a pobreza monetária de seus domicílios, a pobreza individual e a pobreza de tempo", diz María Nieves Rico, especialista da CEPAL, porque esse tempo é dedicado a tarefas com as quais elas não ganham dinheiro. E esse trabalho não remunerado das mulheres equivale a aproximadamente um quinto do produto bruto dos oito países que fizeram a medição desse tempo na América Latina e Caribe.
María Nieves Rico, diretora da Divisão de Assuntos de Gênero da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL), falou sobre isso no Seminário Internacional "Entre a medição e a ação: debates em torno do bem-estar", organizado pela Unicef e pela Secretaria de Estado de Gestão Pública e Planejamento do Governo da Província de Tucumán, Argentina.
Rico é antropóloga social da Universidade Nacional de Rosario, mestre em Sociologia do Desenvolvimento, em Desenvolvimento e Administração Local e doutora em Sociologia pela Universidade Complutense de Madri. No seminário, ela apresentou o artigo "Uso do tempo e trabalho não remunerado: dimensões invisíveis do bem-estar". Após o seminário, a especialista em políticas públicas com foco em gênero e direitos humanos, respondeu a algumas perguntas para este jornal.
É uma novidade pensar no bem-estar das mulheres como um direito? Como se avançou na conceitualização e no olhar sobre o problema?
Os estudos realizados pelo menos nas duas últimas décadas pela academia feminista, bem como por organismos internacionais como a Divisão de Gênero da CEPAL sobre o bem-estar incorporaram uma perspectiva de igualdade de gênero, autonomia e direitos das mulheres, avançando em estatísticas e indicadores que mostram sua situação.
Apesar dos avanços e das evidências empíricas hoje disponíveis e dos esforços realizados, houve dificuldades significativas e resistências para que as medições de pobreza, tanto monetárias quanto multidimensionais, e o bem-estar incorporassem sistematicamente uma perspectiva de gênero, não apenas desagregando informações por sexo, mas fundamentalmente identificando as problemáticas e as discriminações a que as mulheres são expostas devido à divisão sexual do trabalho, ao sistema patriarcal, às barreiras ao acesso aos recursos e aos processos de tomada de decisão.
Assim como o pessoal é político, podemos hoje dizer que o tempo é político?
Sim. A distribuição e o uso do tempo estão sempre condicionados e muitas vezes determinados pela atual divisão sexual do trabalho e pela atribuição de papéis a mulheres e homens, mas também por políticas públicas que, com a pretensão de serem neutras e, às vezes, universais, desconhecem o trabalho doméstico e de cuidado realizado pelas mulheres, sua contribuição para a economia e para o desenvolvimento dos países e a iminente necessidade de redistribuir este recurso para avançar na igualdade.
As pesquisas sobre o uso do tempo são uma ferramenta necessária para desenvolver políticas públicas. Qual é o nó central do problema da divisão de tarefas?
A atual divisão sexual do trabalho e a alocação cultural quase exclusiva às mulheres das responsabilidades de cuidado, não são apenas injustas, mas constituem uma barreira para a autonomia econômica das mulheres, na medida em que têm dificuldades significativas para se inserirem no mercado de trabalho em ocupações com proteção social, terem seus próprios rendimentos e, portanto, alcançarem sua autonomia econômica. Mas, como estudos da CEPAL demonstraram, também é um fator reprodutivo da pobreza.
Como se conjugam a pobreza monetária e a falta de tempo na vida das mulheres?
Estudos realizados pela CEPAL com base nas pesquisas domiciliares e nas pesquisas de uso do tempo mostram que, entre as mulheres que não possuem renda própria (uma em cada três em nível regional), o tempo gasto no trabalho não remunerado e de cuidados é muito maior que o das mulheres que têm renda, e muito maior que o dos homens, quer tenham ou não renda própria. Também as mulheres pertencentes aos primeiros quintis da distribuição dedicam mais tempo ao trabalho não remunerado que as mulheres dos outros quintis. Note-se que, no caso dos homens, o tempo destinado a este trabalho é quase o mesmo, independentemente do nível de renda dos domicílios, mostrando um comportamento semelhante independentemente de se é pobre ou não. Então, para as mulheres, existe uma retroalimentação entre a pobreza monetária de seus domicílios, a pobreza individual e a pobreza de tempo.
Você diz que as mulheres jovens que não estudam e não estão empregadas, trabalham sem ganhar. Aqui, algumas pessoas ainda falam dos "nem-nem"...
Não achamos correto usar a denominação nem-nem, porque esconde a tremenda realidade de que as mulheres jovens que não estudam e não estão inseridas no mercado de trabalho estão trabalhando de maneira não remunerada nos espaços domésticos. É por isso que dizemos que existem jovens que não estudam, mas trabalham sem ganhar por esse trabalho, e essas jovens também estão mantendo a economia, subsidiando os sistemas de proteção social e assumindo a responsabilidade pelo bem-estar de suas famílias, sem poder desenvolver sua juventude e suas potencialidades devido a essa responsabilidade, o que vai impactar nos seus direitos e em sua autonomia atuais e futuros.
O trabalho não remunerado das mulheres é cerca de um quinto do produto bruto dos países que fizeram essa medição. O que se pode fazer para valorizar isso? Ou seja, como se pode visibilizar e monetizar esse trabalho?
A valorização do trabalho não remunerado no âmbito do Sistema de Contas Nacionais (SNA) permite obter uma medida mais exata do que a sociedade produz em seu conjunto, tornando visível uma parte da economia e da produção de bens e serviços que sempre permaneceu oculta. Além disso, permite incorporar a contribuição do trabalho doméstico e do cuidado não remunerado na análise macroeconômica, na elaboração de políticas públicas e na tomada de decisões. Da mesma forma, esta valorização serve para entender melhor a dinâmica econômica nos domicílios (entre os seus membros), bem como entre domicílios de acordo com a sua inserção na estrutura socioeconômica e entre os domicílios e o restante da economia. Isto é fundamental para incorporar a análise da economia do cuidado no funcionamento do sistema econômico. Neste contexto, esta valorização é de fundamental importância, pois torna visível a contribuição para a economia dada pelas mulheres (expressa em linguagem e moeda de troca tradicional) e permite abrir a discussão para a economia heterodoxa.
(Fonte: Página|12)
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O tempo das mulheres é “político”. Entrevista com María Nieves Rico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU