18 Julho 2017
O "Sermão da Montanha" propicia novas leituras e interpretações, como nos ensaios de Schockenhoff e Grilli.
O comentário é de Gianfranco Ravasi, cardeal, publicado por Il Sole 24 Ore, 16-07-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
"O Sermão da Montanha foi diretamente ao meu coração”. Era o inverno entre 1888 e 1889 e Gandhi, em Londres, estudava direito e entrava em contato com as páginas do Evangelho de Mateus (cap. 5-7) que contém esse grandioso discurso de Cristo ambientado pelo evangelista sobre uma montanha, talvez mais simbólica que topográfica, uma provável referência ao Sinai, de cujo cume havia descido a voz divina para Israel em marcha no Egito para a terra prometida da liberdade. Não por acaso,
Lutero, que dedicou ao texto vários sermões em Wittenberg, publicados em 1532, não hesitava - forçando o latim – em definir o Jesus da Montanha como o Mosissimus Moses, na prática o Moisés elevado à enésima potência. Antes do Reformador já havia uma vasta produção de comentários exegéticos do texto de Mateus, a partir daquele ideal arquétipo que era o De sermone Domini in monte de Santo Agostinho. Um itinerário que chegou a Bento XVI: em seu Jesus de Nazaré (primeiro volume publicado em 2007) reservava para aquele discurso mais de cem páginas classificando-o como "a Torá do Messias (...) totalmente nova e diferente, mas que justamente assim leva a cumprimento a Torá de Moisés".
Veja também: John Stott, Il messaggio del Sermone del
Monte. Una controcultura cristiana
Edizioni GBU, Chieti Scalo, p. 287, € 16
Gandhi, no entanto, após ter elogiado o poder espiritual daquelas páginas que o haviam deixado "apaixonado" por Jesus, não hesitava em acrescentar: "No Ocidente, esta mensagem fundamental sofreu várias deformações (...). Muito do que é considerado como cristianismo é uma negação do Sermão da Montanha". É suficiente percorrer aquele emocionante portal de entrada que são as chamadas "Bem-aventuranças" (5,1-12) para confirmar o comentário proferido pelo Mahatma.
O próprio Lutero antecipava a convicção do chanceler Otto Bismarck, afirmando a incompatibilidade daquele ditado evangélico com a praxe política. Precisamente por causa da sua carga "utópica" no sentido mais elevado do termo, os apelos que ecoaram naquela montanha foram de várias formas acomodados ao longo dos séculos em um conflito de múltiplas interpretações. Para alguns representam um novo e exigente código de leis; para outros, são um guia espiritual para eleitos, capazes de galgar as altas trilhas do misticismo; para o famoso teólogo e filantropo Albert Schweitzer são uma proposta de vida para o tempo "interino" da história em que estamos imersos antes da chegada a meta última da escatologia, quando "Deus será tudo em todos", como assegurava São Paulo; para muitos, aqueles apelos revelam, ao contrário, a atitude radical que Cristo postula ao seu discípulo, o verdadeiro cristão, que é tal não só em obediência a certas normas, mas o é na totalidade constante do seu ser, de sua mente, alma e coração. Como se orientar nesse delta hermenêutico tão ramificado?
A melhor forma é sempre a da retomada do texto em uma leitura rigorosa que leve em conta, é claro, os vários holofotes direcionados sobre as palavras de Jesus por uma tradição secular, e que procure ouvir, antes de tudo, o seu som primordial, o conteúdo básico da sua mensagem.
Eberhard Schockenhoff, Il Discorso della montagna.
Appello a essere cristiani,
Queriniana, Brescia, p. 282, € 28,50;
Nessa perspectiva, apresentamos dois comentários que apareceram recentemente, quase simultaneamente. O primeiro é oferecido por um conhecido teólogo moral alemão, Eberhard Schockenhoff, que propõe substancialmente dois momentos de interpretação.
O primeiro poderia ser considerado centrípeto e remonta à matriz original evangélica, mas não para uma análise exegética dos 109 versos em que está atualmente distribuído o Sermão, mas sim para identificar os pontos mais polêmicos: os destinatários, o pano de fundo histórico-social, o contraponto com a lei mosaica ("foi dito aos antigos..., mas eu vos digo", uma expressão que Schockenhoff interpreta com muita acuidade), a estrutura temática íntima de um discurso tão variegado. Chega-se, assim, àquele radicalismo mencionado acima, comparado pelo autor a uma elipse cujos dois focos são a graça divina e a ética humana, em uma dinâmica de amor: "o que distingue a natureza radical do ethos de Jesus de um rigorismo moral e de um heroísmo sobre-humano pode ser visto na relação desse com a misericórdia, com a qual os discípulos devem imitar a perfeição do seu Pai celestial".
Abre-se, assim, o segundo movimento do ensaio do teólogo alemão, que poderíamos considerar "centrífugo", pois do centro textual ramifica-se até o presente através de uma série de "concretizações exemplares". São capítulos em que o texto evangélico floresce em toda a sua paradoxal atualidade, procedendo daquele cume que são as bem-aventuranças até se tornarem o "sal da terra e luz do mundo", através da prática de uma "justiça superior" e menos legalista em âmbitos delicados como o amor pelo inimigo, o casamento, as relações interpessoais e sociais, o julgar, a "regra de ouro" do fazer ao próximo o que você faz para si mesmo, até remontar a Deus com a oração do "Pai nosso". Esta última, na verdade, como observado por Simone Weil, ao contrário de todas as orações, não parte de baixo, do homem que invoca, mas do alto de um Deus que se revela.
A riqueza do comentário atualizado de Schockenhoff não neutraliza o potencial explosivo do Sermão da Montanha, mas o insere no tecido cotidiano pessoal, social e até político, mantendo o seu fogo, de acordo com o famoso ditado de Cristo: "Eu vim trazer fogo à terra, e como gostaria que já estivesse aceso!"(Lc 12,49).
Massimo Grilli, Il discorso della montagna.
Utopia o prassi quotidiana?.
Dehoniane, Bolonha, p. 200, € 19,50.
Falamos anteriormente de dois comentários: o segundo é o de um exegeta, docente da Pontifícia Universidade Gregoriana, Massimo Grilli. O seu texto segue aparentemente a rota clássica que procede isolando as várias unidades textuais, identificadas em cinco blocos, submetidas a uma análise aprofundada de acordo com suas específicas articulações. A essa leitura soma-se uma moldura que, por um lado, enquadra o Sermão em seu contexto à busca de uma coesão e, pelo outro, estende-o em direção ao "leitor modelo" (a alusão é a Eco que cunhou e configurou essa tipologia) em um entrelaçamento entre "indicativo" divino e "imperativo" moral humano.
Falávamos que a leitura de Grilli é apenas aparentemente à habitual nos comentários exegéticos, porque sua análise é sempre atenta em detectar as iridescências temáticas e espirituais de cada frase ou palavra, de cada estrutura textual única, de modo que possa emergir a intersecção entre a “ortodoxia”, ou seja, a mensagem/confissão de fé, e a “ortopraxia”, a reflexão existencial e moral, a ética da responsabilidade. Em conclusão, podemos dizer que, em torno das palavras de Cristo avolumou-se certamente uma impressionante investigação hermenêutica: ela, no entanto, não se exauriu nas assépticas salas de aula da academia, mas se expandiu na praça rumorosa da história.
Estava certo outro exegeta, Gerhard Barth, quando declarava que o Sermão da Montanha, como a Carta aos Romanos de São Paulo, manteve sob pressão e semeou inquietação na Igreja mais do que qualquer outro texto bíblico ou religioso. Justamente por isso, Mauriac não hesitava em afirmar: "Quem não leu o Sermão da Montanha não tem condições de saber o que é o cristianismo".
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