10 Junho 2017
Pressionado em campanha, atual prefeito prometeu extinguir a PBH Ativos SA, empresa que mercantiliza política municipais e submete interesse público à lógica do lucro. Agora, ele quer duplicá-la…
O artigo é de Julia Franzoni, Lucca Mezzacappa e Thiago Canettieri, da rede InDebate, publicado por Outras Palavras, 08-06-2017.
Julia Franzoni é advogada popular, doutoranda em direito da UFMG e pesquisadora do Indisciplinar. Associada e conselheira da Terra de Direitos e membro da rede Margarida Alves de Advocacia Popular.
Lucca Mezzacappa é graduando em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG e pesquisador nos projetos de extensão Urbanismo Biopolítico e BH S/A do Grupo de Pesquisa Indisciplinar.
Thiago Canettieri é doutorando em geografia pela UFMG. Pesquisador do indisciplinar e do observatório das metrópoles.
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Num primeiro olhar, o começo da gestão de Alexandre Kalil na prefeitura de Belo Horizonte não tem deixado a desejar quanto às promessas de campanha: cumprir, aparentemente, o prefeito cumpre, mas por que o problema permanece?
Conforme compromisso assumido no dia 25 de abril do presente ano, o prefeito Alexandre Kalil encaminhou à Câmara de Vereadores de Belo Horizonte o projeto de lei 239/2017 que “realiza a cisão parcial da sociedade de que trata a Lei nº 10.003 de 25 de novembro de 2010, extinguindo-se a PBH Ativos S.A”. A gestão do prefeito anterior, Márcio Lacerda e, em especial a criação da sociedade anônima PBH Ativos [1], foram alvos de duras críticas durante a campanha de Kalil que, em promessa política, indicou o compromisso de fazer a gestão pública mais próxima da prefeitura, acabando com a lógica que implementou a S/A no município.
Contudo, apurando o olhar, a nova gestão de Kalil não cumpriu o que prometeu. O projeto de lei que o poder executivo encaminhou prevê não a extinção da PBH Ativos S/A, como quer o texto legal, mas sua cisão em duas companhias: a Companhia Municipal de Securitização e a Companhia Municipal de Investimentos e Participações. Assim, como o monstro com cabeças de serpentes da mitologia grega, a Hidra, que vivia no lago pantanoso de Lerna, quando Kalil cortou a cabeça da frente da financeirização das políticas públicas, ele não resolveu o problema, mas o multiplicou: cresceram duas outras.
A PBH Ativos de Márcio Lacerda, a cabeça perigosa de Hidra degolada por Kalil, tem entre os seus objetos sociais descritos pela lei 10.003/2010, “a gestão de obras de infraestrutura, parcerias públicas privadas, captação de recursos financeiros, administração e exploração econômica de ativos financeiros e dar garantias para parcerias públicos-privadas”. Não surpreende, portanto, que as duas novas cabeças de securitização e investimentos também possuam esses mesmos objetos sociais. Trata-se, aqui, de mera maquiagem jurídica levada a cabo pela estratégia formal de mudança legislativa que não altera, em conteúdo, as principais competências de gestão empresarial antes previstas para PBH Ativos S/A.
Tanto é assim que uma rápida comparação entre a lei que instituiu e regulamentou a PBH Ativos em 2011, com o novo projeto de lei que prevê, no lugar, duas novas empresas, repete, num caricatural ipsis litteris, 10 dos 12 objetivos sociais da primeira versão da S/A.
Como se pode observar facilmente no quadro acima, a nova proposta é praticamente idêntica à original e continua a privilegiar o empresariamento urbano da gestão pública. Na mensagem anexada ao projeto de lei, onde Kalil expõe o leitmotiv da proposta aos vereadores, o texto é: “acabar com a forma de atuação da PBH Ativos S/A”. Contudo, o que segue no futuro texto de lei é justamente o contrário: todo o objeto social da primeira S/A que o prefeito tanto criticou durante o período de campanha foi preservado. Trocando em miúdos, embora o novo projeto de lei tenha acabado formalmente com a PBH Ativos, sua lógica privatista ainda prevalece na gestão do município de Belo Horizonte.
Esse fato fica ainda mais claro caso observemos a fala de apresentação do projeto de lei feita pelo atual secretário municipal de finanças, Fuad Noman [2]. Segundo o secretário, a PBH Ativos desenhada por Márcio Lacerda não era “eficiente o bastante”, uma vez que a sociedade anônima acumulava uma dupla responsabilidade, captação de recursos e gestão com provisão de garantias às PPPs. Em razão disso, continua o secretário, a S/A elevaria os riscos para as empresas que firmam PPPs com o município, pois a PBH Ativos estaria contaminada pelos altos e baixos da economia municipal. A intenção do novo projeto de lei seria, nos esclarecimentos de Noman, captar de forma mais barata e mais rápida – ou seja, eficiente – os recursos do mercado; “o que nós queremos? Uma companhia blindada”. E nós acrescentamos: uma companhia que blinde os investimentos privados de risco, ou seja, que seja eficiente o bastante.
Referente à mensagem do executivo ao projeto lei, destacamos ainda o seguinte trecho: “a proposta não representa nenhum aporte de recurso financeiros, sem impacto financeiro e orçamentário para o município”. Contudo, essas razões desconsideram veementemente todo o vultuoso gasto que tem sido feito pelo município para integralizar o capital da extinta S/A e remunerar seus acionistas. A título de exemplo, elencamos a cessão de créditos realizada com a COPASA referente a mais de 250 milhões que deveriam servir para evitar alagamentos, e o comprometimento de impostos municipais a receber (créditos tributários futuros), que iriam compor o fluxo de pagamento das debêntures [3] com garantia real. Não podemos nos esquecer, também, da doação dos 53 terrenos feita pelo município, durante a gestão de Márcio Lacerda, à PBH Ativos [4]. A afirmação de que as duas novas empresas não representariam novo impacto financeiro e orçamentário, imuniza, de certa forma, todo gasto público irregular que já foi realizado e a potencial transferência de recursos público para o setor privado. Da forma como está, o atual projeto de lei mantém aberta a ferida no patrimônio público municipal [5].
Há, também, impacto na receita futura do município com a pretendida cisão. No texto do projeto, lê-se que a Companhia de Securitização terá, entre seus objetivos, “auxiliar e prestar apoio técnico na aplicação de instrumentos de políticas urbanas, em especial quanto à outorga onerosa do direito de construir, transferência do direito de construir e certificado de potencial adicional de construção”. Esses instrumentos são resultado da luta de vários movimentos pela reforma urbana, descritos no Estatuto da Cidade, para produzir um espaço urbano mais justo e igualitário. A reivindicação popular é que os recursos obtidos por meio deles compusessem, dentre outros objetivos elencados no Estatuto, um fundo capaz de garantir a produção e o acesso de habitação de interesse social bem localizados e de qualidade. Esse objetivo ficaria frontalmente prejudicado na medida que os instrumentos passam a ser geridos por uma empresa privada que tem, como descrito no inciso primeiro do mesmo artigo, o objetivo de “explorar economicamente ativos municipais”.
Esse tipo de redesenho institucional, orçamentário e financeiro faz parte de um contexto de financeirização das políticas públicas, tornando-as dependentes dos interesses de rentabilidade dos capitais investidos. Ou seja, os processos decisórios de interesse público passam a ser orientados pela lógica do lucro, tornando rentável (eficiente e sem risco) o que não é rentabilizável: a qualidade de vida dos cidadãos [6].
O objetivo colocado em questão ao se levar a cabo políticas dessa natureza é a manutenção da lógica do empresariamento da gestão urbana. Vale destacar que a gestão empresarial da cidade é uma estratégia de remunerar capitais privados à custa do patrimônio público, transformando a cidade em um grande negócio a ser gerido empresarialmente, a fim de garantir a reprodução ampliada de capitais que se encontram sempre à espreita da desvalorização. Portanto, o que se prospecta é uma tendência dessas práticas e racionalidades neoliberais tomarem conta dos investimentos e gestões públicas em um intenso processo de privatização, em que o capital privado sai sempre ganhando a expensas do poder público [7].
A operação legal que implicará na cisão das empresas, de um lado securitização e de outro investimentos e participações, embora revestida de legalidade, perpetua e complexifica os mecanismos de transferência irregular de patrimônio público para o setor privado na governança urbana em Belo Horizonte. Qual a repercussão dessa medida nas correntes ações civis públicas investigando ilegalidades correlatas à PBH Ativos S/A? A forma de integralização do capital da S/A extinta, bem como os mecanismos de remuneração dos acionistas, são aspectos cuja legalidade permanece duvidosa e deve ser debatida com a sociedade.
Não sem razão, a tramitação do referido projeto de lei deverá ser suspensa, tendo em vista a instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Câmara Municipal de Vereadores este mês. Não faltam questões a serem esclarecidas e, além das já destacadas pelas vereadoras e vereadores envolvidos, somamos:
• de acordo com o inciso II do artigo 1º, a Companhia de Securitização poderá “emitir no mercado obrigações próprias”. Em que medida essa previsão não implica aumento irregular do endividamento público?
• conforme descrito no inciso IV do artigo 1º, referente à Companhia de Securitização e no inciso VI do artigo 2º, referente a Companhia de Participações e Investimentos, há no projeto de lei o objetivo de as empresas auxiliarem o município em concessões e parceria público-privadas. Diante disso, agindo as novas companhias como “mandatárias do município nesses contratos”, não está claro o regime jurídico e a forma de gestão e implementação dessas concessões e contratos.?
• segundo disposto no inciso XI do artigo 2º, integram os objetivos das novas empresas “adquirir créditos, estruturas e implementar operações que envolvam a emissão e distribuição de valores mobiliários de emissão pública ou privada, ou qualquer outra forma de captação de recursos junto ao mercado de capitais”. Em que medida essa previsão não autoriza especulação financeira com patrimônio público?
• como mencionamos anteriormente, a cisão proposta por Kalil transfere para essas companhias a gestão de vários instrumentos urbanísticos negociais sem esclarecer como seriam destinadas as contrapartidas privadas provenientes desses mecanismos. Não há aqui perversão das finalidades dos instrumentos cuja direção estaria condicionada ao incremento e ou à segurança dos investimentos das companhias, contradizendo as diretrizes do Estatuto das Cidades e do Plano Diretor de BH?
Assim como a Hidra de Lerna, a financeirização das políticas públicas de Belo Horizonte corre o risco de sair deste “ataque” de Kalil ainda mais forte.
Notas
1. Para mais, ver nossa publicação neste blog sobre o funcionamento da PBH Ativos;
2. Secretário de Fazenda do Governo de Minas (2003-2006), de transportes e obras públicas (2007-2010) durante a gestão Aécio Neves (PSDB) e da Secretaria de Estado Extraordinária para Coordenação de Investimentos (2012-2014) na gestão de Anastasia. Foi Consultor internacional do Fundo Monetário Internacional (FMI);
3. Título de crédito representativo de empréstimo em médio prazo;
4. O Grupo de Pesquisa Indisciplinar, em parceria com o núcleo mineiro da Auditoria Cidadã da Dívida e as Brigadas Populares, realizou mapeamento referente à doação dos terrenos. Essa ação e seus desdobramentos podem ser acompanhados aqui;
5. Para um pouco da discussão sobre essa discussão, ver o nosso texto neste blog: A financeirização das políticas públicas e da gestão nas cidades. E o texto da vereadora Áurea Carolina em parceria com a militante das Brigadas Populares Bella Gonçalves, PBH Ativos S/A e o modelo de gestão empresarial das cidades;
6. Recentemente, São Paulo na gestão Dória passou por processo semelhante como relato por nossos parceiros do Observa SP: Estado ou empresa? Mudanças na gestão urbana sem debate em São Paulo. São Paulo, Porto Alegre, Salvador, Campinas são alguns dos exemplos em que a política pública municipal passa por esses descaminhos.
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Cidades-empresas: o curioso caso de Belo Horizonte - Instituto Humanitas Unisinos - IHU