09 Mai 2017
O monge de Verona aparece nos momentos cruciais do processo que levou o filósofo à fogueira: ele foi condenado à mesma pena, mas provavelmente fugiu disfarçado enquanto um desafortunado qualquer era queimado em seu lugar.
O artigo é de Massimo Firpo, historiador italiano, membro da Accademia delle Scienze di Torino e da Accademia Nazionale dei Lincei, publicado por Il Sole 24 Ore, 07-05-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Denunciado à Inquisição de Veneza em maio 1592 e entregue nove meses mais tarde para o Santo Ofício em Roma, Giordano Bruno foi condenado à morte depois de uma longa prisão em 20 de janeiro de 1600 e, em 17 de Fevereiro, foi queimado vivo na fogueira com uma mordaça sobre a boca para impedi-lo de gritar aos céus e aos homens as suas doutrinas blasfemas. Ele nem sequer teve o privilégio de ser antes decapitado ou enforcado para poupá-lo do horrível sofrimento do suplício. "Talvez sintam maior temor ao pronunciar esta sentença do que eu sinto ao ouvi-la", teria dito em frente aos juízes com firmeza orgulhosa. Rios de tinta foram gastos sobre o processo e sobre a morte do frade nolano, em quem uma forte tradição historiográfica de matriz laica do século XIX vê um "mártir do livre pensamento", capaz até o fim de reivindicar a libertas philosophandi e as verdades subversivas que esta lhe havia propiciado.
Mas os arquivos sempre reservam surpresas para aqueles que sabem se aprofundar em seus infindáveis labirintos com paciência, curiosidade, tenacidade e inteligência. É o que fez Germano Maifreda inspirado por alguns documentos encontrados durante seus estudos sobre as finanças inquisitoriais e pela constatação de dois fatos. Primeiro, como outros estudiosos já haviam observado, a inamovível firmeza de Bruno foi apenas uma escolha das últimas semanas de vida, aparentemente inexplicável depois de ter anunciado durante anos - ainda que como parte de uma astuta estratégia dilatatória e de negociação - que tinha intenção de não se dissociar da Igreja, que se deixaria convencer de seus erros e, inclusive, que estaria sinceramente arrependido a ponto de abjurar, se necessário "in loco et tempo do agrado do Santo Ofício”, que "cumpriria tudo que sua prudência deliberar e considerar obrigação para minha alma”, e que faria "uma reforma notável" em si mesmo. "Somente depois de 10 de Setembro [1599], o filósofo encerrou-se em um silêncio obstinado e definitivo", escreve Maifreda.
Além disso, e este é o segundo ponto que deu origem à pesquisa, o obscuro capuchinho Celestino de Verona parece materializar-se em todos os momentos decisivos do processo de Giordano Bruno, tanto no epílogo romano como no seu começo veneziano com o mortal Memorial acusatório enviado a Roma em 1593, que deu sustentação às frágeis alegações que apoiaram a denúncia apresentada no ano anterior pelo patrício veneziano Giovanni Mocenigo, substancialmente desmentidas pelas testemunhas que ele chamou em causa. Naquele memorial destacava-se na verdade uma lista de heresias anticristãs sem precedentes que ele ouvira da boca de Bruno durante o cativeiro compartilhado nas prisões da Sereníssima: "Cristo pecou mortalmente...", "Cristo é um corno...", "não existe inferno e ninguém está condenado ao castigo eterno...”, “há mais mundos...”, “mortos os corpos, as almas vão transmigrando de um mundo a outro...”, “Moisés foi um mago astuto...", "todos os profetas foram homens espertos, falsos e mentirosos...", "acreditar nos santos é algo ridículo...", "Caim foi um homem de bem...". Muito mais, portanto, depois de efetuadas as devidas verificações, do que seria necessário para uma sentença à morte aos olhos do cardeal Giulio Antonio Santori, chefe da congregação romana do Papa Clemente VIII Aldobrandini e do seu teólogo de confiança Roberto Bellarmino, a não ser pelo fato que o frei Celestino, elencado entre os presos criminosos, não era realmente uma testemunha acima de qualquer suspeita.
Não é possível acompanhar ponto a ponto o intrincado labirinto em que Maifreda leva o leitor entre fatos conhecidos e documentos até aqui desconhecidos, entre anomalias ou incongruências dos primeiros e novas certezas ou suposições engendradas pelos segundos, delineando um caminho cheio de surpresas, um verdadeiro e próprio suspense entre as vidas, ou melhor, os encarceramentos entrelaçados de frei Celestino e frei Giordano. Ainda mais considerando que os eventos que os viram protagonistas tiveram como pano de fundo os ásperos conflitos que dividiam os líderes da Cúria em assuntos tidos como extremamente delicados, como a aceitação da conversão ao catolicismo do rei francês Henrique IV e o reconhecimento de sua sucessão ao trono, o papel das ordens mendicantes, a publicação do novo Índice dos livros proibidos e a própria política inquisitorial.
Ao rastrear os passos de frei Celestino entre as prisões de Veneza, Verona e Roma, entre as nem sempre inequívocas disposições de seus superiores e do Cardeal Santori, Maifreda acumula muitos indícios que atestam o papel de agente provocador a serviço do Santo Ofício que ele desempenhou para escapar às sanções punitivas que o ameaçavam depois de pelo menos dois processos por heresia.
Fato este, aliás, não único na história da Inquisição romana. A hipótese, no entanto, parece contrariada pelo fato de que ele também teria sido queimado na fogueira um pouco antes de Bruno, em setembro de 1599. Mas também a sua condenação mostra-se pontilhada de inúmeras anomalias processuais (não foi entregue ao braço secular, sua execução foi programada para acontecer à noite, longe dos olhos dos curiosos), a ponto de sugerir cautela em aceitar o registro dos documentos oficiais ou as notícias dos amanuenses. Como explicar, por exemplo, a incomum dieta alimentar que frei Celestino usufruiu nas prisões do Santo Ofício romano, com rações extraordinárias de “carne de vitela”, fruta e vinho? E como explicar que, justamente na véspera da execução na fogueira, os livros-caixa do tribunal atestem meticulosamente a compra para ele de uma túnica de sarja preta, um par de calças de lona, um par de meias, sapatos e um chapéu?
A suposição de que ele foi substituído na fogueira romana por um desafortunado culpado de crimes comuns e que ele teria deixado Roma disfarçado parece mais provável após ter verificado a lista de vestimentas de viagem tão generosamente fornecidas pelos inquisidores romanos. A encenação teria sido organizada pelo próprio Cardeal Santori, ansioso para escapar às ordens papais (imitando nisso muitos dos seus antecessores na direção do Santo Ofício), que haviam imposto a sentença ao frade.
Quanto a Bruno, Maifreda supõe que quando viu o reaparecimento do infame capuchinho nas prisões inquisitoriais romanas teria rapidamente percebido que era completamente inútil tentar uma saída de um tribunal que já tinha decidido a sua condenação e agia sem escrúpulos para alcançar esse fim, manipulando as acusações de um sujeito desqualificado como frei Celestino de Verona. Enfrentar a morte era agora a única escolha possível.
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Giordano e Celestino, destinos cruzados? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU