28 Março 2017
Ao apontar que a obesidade infantil é culpa das mães que trabalham fora, o ministro da Saúde mostra incompreensão sobre o tema e contribui para ampliar a desigualdade de gêneros no cuidado com os filhos e a casa, escreve Ana Luíza Matos de Oliveira, economista e mestra e doutoranda em Desenvolvimento Econômico (Unicamp) em artigo publicado por Brasil Debate, 27-03-2017.
Eis o artigo.
Após Temer naturalizar a limitação da mulher ao âmbito doméstico e afirmar que nossa contribuição à economia se restringe a notar desajustes nos preços do supermercado em pleno 8 de março, o ministro da Saúde não ficou atrás: Ricardo Barros afirmou que a obesidade infantil ocorre porque as crianças “desembalam” e não “descascam” alimentos, porque as mães já “não ficam em casa, e as crianças não têm oportunidade, como tinham antigamente, de acompanhar a mãe nas tarefas diárias de preparação dos alimentos”.
Assim como Temer, Barros interpreta que o cuidado com a casa e com os filhos é responsabilidade exclusivamente feminina/materna e culpa as mães que ousam trabalhar fora de casa.
Além de hoje trabalhar fora de casa (com o trabalho remunerado), as mulheres trabalham dentro de casa realizando o trabalho doméstico (cuidado com a casa, com os filhos ou parentes dependentes), o que constitui a chamada dupla jornada. O tempo gasto com trabalho doméstico é dividido no âmbito familiar com grande peso para o gênero, sendo que as mulheres brasileiras gastam o dobro de horas por semana que os homens com trabalho doméstico. Para Temer e Barros, parece normal e natural que a mulher seja a responsável pelo trabalho doméstico.
Mas é desejo das mulheres terem um trabalho remunerado: recente documento “Towards a better future for women and work: voices of women and men” , em português “Em direção a um futuro melhor para mulheres e trabalho: vozes dos homens e das mulheres”, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Gallup (empresa de pesquisa de opinião) mostra que 70% das mulheres no mundo preferem ter um trabalho remunerado e 66% dos homens no mundo também preferem que as mulheres tenham um trabalho remunerado, em contraposição a dedicar-se exclusivamente ao trabalho doméstico (que, no entanto, também é trabalho, apesar de não pago, segundo o documento). O ministro, no entanto, nos culpa por essa preferência.
Mas, mesmo que uma mulher prefira realizar trabalho remunerado, isso não significa que a mesma conseguirá cumprir sua preferência: por exemplo, em todas as regiões analisadas, a taxa de desemprego feminina é igual ou mais alta que a masculina. Também, em todo o mundo, as mulheres têm maior incidência de empregos vulneráveis. A pesquisa citada foi realizada em 142 países e entrevistou 149 mil pessoas, entre homens e mulheres, de diversas idades, regiões, dentro ou fora da força de trabalho.
As mulheres entrevistadas afirmam que conciliar trabalho remunerado e família é um dos maiores desafios em todo o mundo. Na América Latina, essa é a questão mais preocupante para as mulheres, o que mostra o peso da dupla jornada. Em segundo lugar, para as mulheres latino-americanas, aparece o tratamento desigual que recebem em relação aos homens e, em terceiro lugar, a desigualdade nos salários.
Chama a atenção, também, no documento, que apenas 35% das mulheres latino-americanas afirmam se sentirem seguras andando sozinhas à noite. É a porcentagem mais baixa em todo o mundo.
Após a declaração do ministro, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) lançou uma nota em que afirma que transferir a responsabilidade do atual cenário de obesidade infantil para as famílias (em especial para as mulheres) é não querer enfrentar os determinantes estruturais da obesidade, tais como:
– A insustentabilidade (ambiental, social e econômica) do sistema alimentar hegemônico, com uso intensivo de agrotóxicos e controlado por grandes corporações transnacionais, que favorecem o consumo de alimentos ultraprocessados como refrigerantes, biscoitos recheados, macarrão instantâneo;
– As limitadas opções saudáveis para escolha em cantinas e supermercados eos rótulos dos alimentos ultraprocessados que não informam claramente as características do produto e induzem sua compra via artifícios de marketing (especialmente para o público infantil, com brindes associados aos produtos);
– As condições de insegurança, a mobilidade urbana deficiente e a carência de espaços públicos para a prática de atividade física nas cidades;
– A necessidade de compreender a atuação de agrotóxicos e de antibióticos presentes nos alimentos em relação à obesidade.
A Abrasco reconhece que a entrada da mulher no mercado de trabalho não foi acompanhada de uma redefinição das responsabilidades quanto aos afazeres domésticos e que a mulher continua tendo duplas e até triplas jornadas de trabalho.
Ao apontar que a obesidade infantil é culpa das mães que trabalham fora, o ministro não só mostra uma incompreensão sobre o problema, como contribui para pressionar ainda mais as mulheres que se desdobram com a dupla jornada, e, ao mesmo tempo, para retirar a responsabilidade dos homens/pais no cuidado dos filhos e da casa.
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A dupla jornada feminina e a obesidade infantil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU