16 Março 2017
O Papa Francisco repete a cada passo – também o fez ao Die Zeit – que é um pecador falível. Os pobres do Povo de Deus advertem que essa confissão também faz companhia e conforta, porque lembra a todos que até mesmo o papa caminha na sua estrada só porque é abraçado e sustentado pela misericórdia e pela bênção de Deus.
A reportagem é de Gianni Valente, publicada no sítio Vatican Insider, 15-03-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nota da IHU On-Line: a reportagem está dividida em quatro capítulos. Confira também a primeira e a segunda partes.
Mas, sem um dom em particular, nos aparatos eclesiais, não se consegue ficar por muito tempo suspenso na “vertigem” do milagre, confiado à aparente precariedade da graça. Logo despontam aqueles que se equipam para “tirar as conclusões”, os surfistas prontos para surfar a onda de choque evangélica transmitida pelo novo papa ao corpo eclesial. Os aspirantes a arquiteto que têm sempre pronto o projeto para “relançar” ou para “mudar a Igreja”. Prontos para readaptar ao novo contexto os reflexos condicionados já testados em outras temporadas eclesiais.
A uma parte dos aparatos clericais que se formaram nas últimas décadas, não parece verdade que se possa reciclar sobre novas partituras e novas palavras de ordem a instrumentação já recebida como dote especialmente durante a longa era wojtyliana. Aquela avessa a tratar o papa como o “psicopompo” da Igreja (fórmula singular utilizada há algum tempo por Giuseppe De Rita), uma espécie de Rei taumaturgo, o “motor primeiro”, o sujeito imediato capaz de infundir a energia vital à máquina eclesial.
“Quando sou idealizado, sinto-me agredido”, repete, não escutado, o Papa Francisco. Aproveitando o rebote do ícone pop papal abençoado pelo mainstream midiático e até da polarização fomentada pelas redes de agressores online anti-Bergoglio, muitos cultores do Risiko eclesiástico-clerical realinham os frontes sob as bandeiras de um novo e paradoxal culto do papa-justiceiro, herói solitário contra todos, que libertará a Igreja dos malvados.
Em comparação com os tempos recentes, no fundo, trata-se apenas de recordar um pouco mais à esquerda as palavras de ordem do novo clericalismo. Os “wojtylianos de esquerda”, depois de décadas de disputas perdidas com os “wojtylianos de direita”, estão muitas vezes bastante dispostos a repetir como papagaios as célebres frases do Papa Francisco sobre os pobres e sobre a “Igreja em saída”, no caso de que isso servisse para reequilibrar as relações de força entre corjas clericais.
Debaixo das ébrias fumaças da autocelebração, pode acontecer de tudo. Até mesmo as palavras e as fórmulas mais caras ao Papa Francisco, esmiuçadas nos liquidificadores do novo conformismo, sofrem uma transmutação genética e se invertem no seu contrário, no léxico de um neotriunfalismo clerical cada vez menos tencionado, como os de outras cunhagens, a se tributar aplausos. Voltar a se difundir, no tecido eclesial, o difuso frenesi de utilizar atalhos de imagem, efeitos especiais e aquela caça dos “recordes” e das “viradas epocais” que também tinha congestionado os últimos anos do pontificado wojtyliano.
Os groupies do neoconformismo clerical se deleitam em chamar de “Igreja do Papa Francisco” a Igreja que é de Cristo (veja-se Paulo VI, Ecclesiam suam). Carregam sobre o seu passo pendente o peso de libertar o corpo opaco da Igreja de todos os seus atrasos, as artroses que a tornam lenta e ineficaz, os seus atrasos reais ou supostos na tabela de marcha da história.
As facções de torcedores aplaudem o papa para aplaudirem a si mesmas. Desenham-no como um super-herói com poderes especiais, a ser lançado com operações de marketing adequadas, e transformam as suas frases mais recorrentes em mantras para a fidelização.
Mas também aqueles que estão sempre angustiados com a “irrelevância” da Igreja, talvez pouco entusiastas do papa argentino, conferem-lhe o mérito de ter reavivado a imagem da “empresa”, que parecia estar em mau estado. E se equipam para passar a temporada, tentando não perder posições. Privadamente, dão sinais de impaciência em relação ao estilo do bispo de Roma, mas depois escrevem artigos e cartas pastorais embebidas em “periferias”, “discernimento” e “cheiro de ovelhas”. Os supporters interessados e as gangues de “assassinos midiáticos” unidos contra ele parecem se apoiar e se justificar mutuamente.
As diferenças mais alarmantes e objetivas entre o sensus Ecclesiae confessado pelo Papa Bergoglio e certas dinâmicas operacionais implementadas em seu nome são sentidas no canteiro de obras em aberto das reformas. Onde os objetivos e os percursos até agora delineados nem sempre parecem ter como fonte e como critério-guia a natureza própria da Igreja e o agir que lhe convém, mas às vezes parecem modelados a partir de parâmetros de eficiência e de “sucesso” das companhias que ditam o ritmo da globalização ocidental.
Enquanto o papa olha para a Igreja “difusa” que vive em cada diocese e em cada paróquia do mundo, alimentada localmente pela Eucaristia, os dicastérios romanos, em vez de perseguirem emagrecimentos de “substância”, são encorpados com lógicas que certamente levarão, ao longo do tempo, à diminuição de pessoal, mas, enquanto isso, são tratados como superministérios dotados de “uma relevância maior” (discurso à Cúria, 22 de dezembro de 2016), centrais mais eficientes no exercício de uma certa pretensão dirigista sobre a Igreja universal, de acordo com os cânones mais atualizados da organização empresarial.
O papa cultiva reservas de pensamento crítico sobre os mecanismos de financeirização econômica e as tendências tecnocráticas do poder global, enquanto os artífices da reforma econômica feita em seu nome se moveram, no início, dentro dos cânones mais patenteados da ideologia neocapitalista “compassiva” de marca anglo-saxônica: eficientismo e transparência, investimentos e capitais a serem frutificados de acordo com as regras do mercado, obviamente “pelo bem dos pobres”.
Na discutível fase inicial, as comissões e os órgãos instrutores aos quais é confiada a reforma foram infiltrados pelos agentes de todas as multinacionais e as empresas de consultoria que dão o ritmo da globalização financeira de impulso norte-atlântico (McKinsey, Promontory, Ernst Young, KPMG). Todos dispostos a oferecer consultorias “imprescindíveis” para sistematizar um banco modesto, que deveria ter como core business as contas-correntes das freiras e dos institutos missionários, e liquidar qualquer “elefante branco” do outro lado do Rio Tibre.
Os papéis geridos pelas comissões naquele período acabaram nos livros do Vatileaks 2. Os relatos do processo vaticano contra os responsáveis daquela confusão revelaram também que aqueles que manifestavam reservas perante o modus operandi do Mons. Lucio Vallejo Balda e da sua equipe eram rotulados como “inimigos da reforma” desejada pelo Papa Francisco.
À distância de quatro anos, a reforma econômico-administrativa do Vaticano, a primeira a ter início, continua marcando ajustes e correções de curso. E levou tempo e esforço para endireitar a direção mal orientada que todo o mecanismo “reformador” tinha tomado no início, varrendo tudo, na onda de uma ênfase retórica.
Desde que o Papa Francisco chama com insistência os sacerdotes à fisionomia paterna da sua vocação e do seu ministério pastoral, a primeira cena da eclesialidade oficial nunca parece ter sido tão repleta de monsenhores, bispos e cardeais “managers”. Quanto mais o Papa Francisco repete que a Igreja é feita, acima de tudo, de leigos e leigas, mais os clérigos – talvez com faixa roxa ou com o barrete púrpura – detêm o monopólio de papéis de responsabilidade e funções que, por si sós, não requerem o sacramento da ordem.
A última brecha entre os caminhos sugeridos pela pregação do Papa Francisco e os caminhos tomados pelas reformas do outro lado do Rio Tibre foi aquilo que aconteceu com a Rádio Vaticano, o desmantelamento inicial de uma rede capilar de informação livre, assim como dos nós da audiência e da publicidade; fonte confiável de notícias sobre o papa, a Igreja e os eventos do mundo, com uma equipe de trabalho internacional. Um patrimônio precioso e vital de competências a ser valorizado também com as sempre desejadas racionalizações e as devidas simplificações de estruturas.
Durante décadas, a rádio inaugurada por Pio XI e confiada pelos papas aos jesuítas alcançou os quatro cantos do mundo, contando as histórias dos povos, com a abertura de olhar própria da fé cristã e da Sé Apostólica. Agora, com as escolhas feitas sobre a rádio no quadro da reforma das mídias vaticanas – como observou o portal especializado Italradio – “parece inevitável que as transformações em curso estejam destinadas a deixar muitos sem a escuta da Rádio Vaticano”.
E isso – continua o portal especializado – parece estar “em dramática contradição com os valores que a Rádio Vaticano sempre encarnou, desde o primeiro dia da sua fundação, vista desde sempre como o meio com o qual a Igreja alcança também os últimos e aquelas periferias às quais o Papa Francisco é tão atento. A rádio era o próprio símbolo da universalidade da mensagem que transmitia. Hoje, essa universalidade desaparece, porque a percepção que se tem da comunicação vaticana é que ela põe no centro as tecnologias em vez dos usuários e que ela se dirige apenas àqueles que podem e querem usar as novas mídias, enquanto os ouvintes tradicionais são tratados como um irritante e custoso fardo para se livrar o mais rápido possível”.
Enquanto o papa portenho liberta ainda mais a Igreja Católica de toda identificação exclusiva e obrigatória com o Ocidente avançado, as estratégias midiáticas construídas em torno dele se achatam sobre a identificação com as redes sociais ocidentais e os mecanismos heterodirigidos dos motores de busca.
A Santa Sé (Secretaria de Estado), no dia 22 de fevereiro passado, anunciou que uma multinacional especializada controlará o uso da “imagem do papa”, e se intervirá com “oportunos procedimentos” em caso de abuso. Assim como fazem as grandes companhias para proteger as suas marcas.
E, enquanto do outro lado do Rio Tibre foi anunciado um acordo com o Facebook para difundir as mensagens do papa via smartphone em 44 países africanos, na semana passada, o Secam, órgão de representação de todos os bispos africanos, divulgou a carta enviada ao Vaticano para pedir que seja restabelecido o serviço em ondas curtas da Rádio Vaticano, recentemente interrompido também na África, no quadro da reforma.
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A quem interessa um papa “superstar” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU