23 Fevereiro 2017
O governo Trump quer tornar o mundo novamente mais cristão. Por isso, o seu conselheiro Stephen Bannon busca uma margem com as forças conservadoras presentes no Vaticano. Aquelas que têm como objetivo enfraquecer o Papa Francisco e fazer girar para trás a roda do tempo.
A reportagem é de Julius Müller-Meiningen, publicada pelo jornal Die Zeit, 17-02-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No dia 27 de junho de 2014, Donald Trump ainda era um equívoco bilionário nova-iorquino, e Stephen Bannon ainda não usava terno. O chefe do site jornalístico estadunidense de extrema direita Breitbart News estava sentado, naquele dia, na frente do seu computador em um hotel em Los Angeles. Bannon estava conectado com o Vaticano via Skype. Lá, em um luxuoso palácio renascentista imerso nos jardins vaticanos, na sede da Pontifícia Academia das Ciências, cerca de 20 ouvintes estavam à espera. Durante 50 minutos, Bannon delineou, em uma sombria videoconferência, o seu apocalipse muito pessoal.
No mesmo dia, o cardeal Raymond Leo Burke chegava ao sexto ano da sua nomeação como prefeito da Signatura Apostólica, ou seja, o mais alto tribunal do Vaticano. Burke sentia então, no início da primavera de 2014, que lhe puxavam lentamente o tapete debaixo dos seus pés. O Papa Francisco no ano anterior já tinha removido o cardeal ultraconservador de duas Congregações, que, alguns meses depois, seria destituído pelo papa como chefe do mais alto tribunal vaticano e seria enviado à Ordem de Malta – como cardeal patrono. Burke já era, então, o crítico mais ferrenho de Francisco dentro da Igreja.
Enquanto o cardeal Burke estava em declínio dentro da hierarquia católica, Stephen Bannon vivia uma velocíssima ascensão ao topo da política estadunidense. Hoje aos 63 anos, ele é conselheiro-chefe de Donald Trump e estrategista máximo na Casa Branca. Isso o torna um dos homens mais influentes do mundo.
O conselheiro do presidente dos Estados Unidos e o crítico mais ferrenho do papa se conhecem e se estimam. Os dois católicos estadunidenses constituem a ponta de lança ideológica de uma internacional conservadora de direita que, com a vitória eleitoral de Trump, também se tornou apresentável. Os papéis estão claramente distribuídos: Burke é o ideólogo católico, o guardião da moralidade. Bannon é o marioneteiro da Casa Branca, na cabine de comando da maior potência mundial. Esse apoio recíproco não é uma conspiração crua, mas uma campanha militar aberta contra a secularização e o Islã. Além disso, os dois homens contribuem, cada um no seu âmbito, com o nascimento de um movimento internacional populista de direita.
O cardeal e o conselheiro se conheceram no Vaticano poucos meses antes da conferência de Bannon. Como chefe do Breitbart News, Bannon já tinha ido a Roma em abril de 2014 para a canonização de João Paulo II. Na época, ele tinha entrevistado Benjamin Harnwell, o fundador do Instituto Dignitatis Humanae, que organizava, no verão, o congresso nos jardins vaticanos.
Harnwell apresentou o visitante de Los Angeles ao cardeal, e os dois ficaram em contato. Perguntado se hoje há uma espécie de aliança entre o conselheiro mais importante do presidente dos Estados Unidos e o mais duro opositor do papa, Harnwell responde: “Aliança é a palavra errada. Trata-se de duas pessoas que se admiram reciprocamente e apreciam o trabalho um do outro”.
Foi uma palestra inquietante aquela que o então chefe do Breitbart News fez no idílio vaticano. A revista online Buzzfeed.com fez um relato sobre a conferência na internet com o título: “Assim Steve Bannon vê todo o mundo”. De acordo com o conselheiro de Trump, a secularização e o Islã são as piores ameaças para o Ocidente judaico-cristão. O Ocidente estaria “no início de um conflito muito brutal e sangrento” contra o “fascismo jihadista-islâmico”. Bannon aconselhava, então, uma “atitude muito, muito, muito agressiva” contra o Islã radical. Teria chegado a hora não só de defender a própria fé, mas também de “lutar pelas nossas convicções e contra a barbárie que está começando”. Nisso também se insere o compromisso incondicional contra o aborto e a favor de um modo tradicional de entender o matrimônio. Não há sinais de que Bannon tenha mudado de opinião depois da sua entrada na Casa Branca.
Porém, nem todo o círculo de conselheiros de Trump compartilha as opiniões do estrategista-chefe. Mas o presidente colocou ao seu lado tantos cristãos conservadores de direita que o site LifeSiteNews.com, poucos dias depois da posse, exultava: “Trump traz Deus novamente ao governo federal depois de uma longa ausência”. Por exemplo, há a conselheira especial e diretora da campanha eleitoral, Kellyanne Conway, uma católica estritamente observante, que vai à missa todos os dias.
“Deus está no topo das suas prioridades”, escrevia o site Lifesitenews.com. Sean Spicer, o porta-voz da Casa Branca, também é um “católico pro-life” fortemente convicto. Spicer disse em uma entrevista que, todos os dias, olha para Deus para ser fortalecido e fazer a coisa certa. “Trump entendeu que os fiéis, nos últimos anos, foram empurrados para as margens”, diz Spicer. Isso vai mudar.
O chefe de gabinete de Trump também é um cristão fortemente crente. Ele faz parte da Igreja greco-ortodoxa, tem um livro litúrgico no escritório e é conhecido como favorável a uma atitude rígida em relação ao aborto.
Sobre o vice-presidente, Mike Pence, sabe-se que ele provém de uma família católica irlandesa e que passou para uma Igreja evangélica. “Eu entreguei a minha vida a Cristo”, disse ele uma vez. No fim de janeiro, ele participou – era a primeira vez de um vice-presidente – na “Marcha pela Vida” em Washington.
O diretor da CIA nomeado por Trump, Ike Pompeo, também faz parte de uma Igreja evangélica. O chefe dos serviços secretos para o exterior afirma: “Jesus Cristo é a única solução para o nosso mundo”. O conselheiro de segurança de Trump, agora já retirado, Michael Flynn, completava o quadro: ele cresceu em uma família católica irlandesa. Uma vez, Flynn tinha definido o Islã como “câncer” e “ideologia política” que se escondia atrás do “rótulo da religião”.
Fazia muito tempo desde que os Estados Unidos tinha um governo tão aberta e agressivamente cristã. Agora, faz-se de novo política com religião. Bannon e Burke estão à frente de uma aliança cristão-fundamentalista mundial que está se formando, que define a própria identidade sobretudo através da luta contra o aborto, contra os direitos dos homossexuais e pelos valores cristãos tradicionais.
O inquietante em tudo isso, acima de tudo, é o fato de que alguns dos agitadores em Washington agora decidem juntos sobre a guerra e sobre a paz no mundo. Ao lado do vice-presidente, Pence, o chefe de gabinete, Priebus, e o não confiável Stephen Bannon também têm um assento no Conselho Nacional de Segurança dos Estados Unidos. No entanto, Bannon não tem nenhuma experiência de política de segurança ou de política externa que pudesse qualificá-lo para ser membro dessa comissão.
Aos olhos dos tradicionalistas cristãos, no entanto, o novo presidente dos Estados Unidos não poderia ter escolhido melhor os seus colaboradores mais próximos. O cardeal Burke, depois da eleição de Trump, não parecia nada envergonhado. Ele definiu a equipe de conselheiros do novo presidente dos Estados Unidos, no dia seguinte à eleição, como “muito confiável”.
Pessoas como Burke, depois dos primeiros passos do governo Trump, veem-se confirmadas nas suas esperanças. O presidente cancelou por decreto, por exemplo, os subsídios para a filial da organização Planned Parenthood, que é definida pelo movimento de direita pela vida como “empresa para o aborto”.
No fim de janeiro, Trump nomeou o juiz Neil Gorsuch para a vaga na Suprema Corte, que repetidamente deve tomar decisões sobre questões éticas controversas. Gorsuch até agora se distinguiu como forte defensor do movimento pro-life. As perspectivas para o movimento de direita pela vida nunca foram tão boas quanto hoje, diz-se nos círculos tradicionalistas em Roma.
O fato de Bannon, três vezes divorciado, e o chefe, Donald Trump, já no terceiro casamento, não levarem tão a sério a severa moral católica, evidentemente, já não pesa mais tanto.
Em particular, sobre Raymond Leo Burke, o governo Trump tem o efeito de uma nova primavera. Bento XVI tinha nomeado o ex-arcebispo de St. Louis à frente da Signatura Apostólica, o mais alto tribunal vaticano e, dois anos depois, fizera dele um cardeal. Com Francisco, mais moderado, o conservador estadunidense tornou-se persona non grata.
Na discussão sobre a exortação apostólica Amoris laetitia e a controversa questão da admissão dos divorciados em segunda união à comunhão, o cardeal estadunidense tinha sequer previsto até uma “correção formal” do papa, considerando que o pontífice não observava a doutrina tradicional da Igreja sobre o matrimônio. Como patrono da Ordem de Malta, o papa liquidou o cardeal, entrando na questão com uma escolha de governo.
O cardeal Burke considera o Islã como uma religião agressiva e perigosa. “É claro que os muçulmanos, no fim, querem conquistar o domínio sobre o mundo”, disse Burke em outubro, em uma entrevista ao jornal italiano Il Giornale. O Washington Post chamou Burke recentemente de “príncipe da Igreja rebelde que explora a sua posição no Vaticano para legitimar forças extremistas que querem levar à destruição da democracia liberal”.
O ideólogo de Trump, Bannon, já desde a época em que era chefe do Breitbart News, trabalhava para o declínio da ordem mundial existente. Bannon tem ótimas relações com os populistas de direita na Europa. O cardeal, evidentemente, também trabalha duro pelas suas relações políticas. Como relata a mídia italiana, há alguns dias, Burke recebeu Matteo Salvini, o chefe do partido xenófobo Liga Norte, no seu apartamento no Vaticano. A Liga é o equivalente italiano da Frente Nacional francesa ou da Alternative für Deutschland na Alemanha. Salvini criticou violentamente o Papa Francisco várias vezes por causa da sua intervenção em favor dos refugiados.
Certos sujeitos que se assemelham também crescem no Vaticano. Para o papa, a posição nessa constelação se torna cada vez pior. Francisco deve constatar como a ala tradicionalista da Igreja Católica faz causa comum com os opositores políticos do papa. A construção de um muro na fronteira com o México anunciada por Trump foi definida por Francisco como “não cristã”. O Vaticano criticou o projeto do muro, assim como o decreto para a proibição de acesso a cidadãos provenientes de sete estados islâmicos.
Integralistas como Burke e Bannon prepararam o terreno ideológico para a política anti-imigração dos Estados Unidos. “O Islã se realiza na conquista”, defendia o cardeal. O conselheiro-chefe de Trump também considera a Igreja Católica como o baluarte ideal contra o Islã. “Eu acho que os nossos antepassados mostraram qual é a atitude a se tomar”, disse Bannon via Skype no verão de 2014, aludindo às guerras religiosas do passado. Nas batalhas de Viena ou de Tours, os antepassados cristãos teriam desbaratado o Islã com sucesso e deixado como herança para a posteridade “a grandiosa instituição da Igreja Ocidental Romana”.
Com a Igreja imaginada pelo Papa Francisco, essa retórica de guerra não tem absolutamente nada a fazer. A sua atenção para as periferias ressoa nos ouvidos dos seus críticos apenas como uma desgastada frase retórica. Benjamin Harnwelll, o homem que colocou Bannon e Burke em contato, o fundador do Instituto Dignitatis Humanae, reconhece até mesmo paralelos entre a ascensão do populista de direita e um modo de pensar elitista no clero católico: “Os nossos pastores mostraram em grande parte uma atitude elitista”, disse Harnwell recentemente em uma entrevista ao National Catholic Register.
O clero estadunidense, apesar dos muitos convites para “sair para as periferias”, teria se esquecido do povo da América Central. E isso deveria ser, afirma Harnwell, um ensinamento para a Igreja, também em relação às próximas eleições na França e na Alemanha. Essa afirmação é um claro apelo à Igreja Católica a não perder o trem da direita populista, que está partindo agora, mas, ao contrário, para subir nele.
O Instituto Humanae Dignitatis, em cuja conferência Stephen Bannon pôde apresentar a sua visão de mundo, é um dos veículos desse pedido. O think-tank católico fundamentalista tem a sua sede a apenas 200 metros do Vaticano desde 2011. O instituto, fundado em 2008, em Bruxelas, por Harnwell e por um parlamentar europeu britânico conservador, considera-se como uma ponta de lança “contra a crescente intolerância secularista contra os cristãos de todas as confissões, que teve como consequência os inúmeros ataques à dignidade humana”. Essa frase pode ser lida na página inicial do instituto, que é adornado com citações lisonjeiras do conselheiro-chefe de Trump, Bannon, sobre o fundador do instituto, Harnwell. Este, que afirma compartilhar as ideias de Bannon, ocupa-se com sucesso de sustentar a nomenclatura católica e europeia.
Como membros do Conselho do instituto, figuram alguns dos críticos mais conhecidos de Francisco, entre eles o prefeito da Congregação para o Culto Divino, o cardeal Robert Sarah, ou o cardeal Walter Brandmüller, que, com Burke, é um dos quatro signatários da carta de protesto contra a exortação apostólica Amoris laetitia. Mas também há prelados que eram considerados bastante progressistas, como o arcebispo emérito de Westminster, Cormac Murphy-O’Connor, ou o cardeal da Cúria, Peter Turkson.
Também deram o seu apoio ao instituto, dentre outros, Matthew Festing, o Grão-Mestre da Ordem de Malta, recentemente deposto por Francisco, e também o ex-presidente do Parlamento Europeu, Hans-Gert Pöttering (CDU). Pöttering, que hoje é presidente da Fundação Konrad Adenauer, aparece no organograma do instituto como um dos patrocinadores. O presidente do comitê consultivo é o próprio cardeal Burke. Em uma conferência no verão de 2013, ele havia definido o instituto como uma “importante organização para a promoção da dignidade humana no mundo”. As ideias divergem sobre o que se deve entender precisamente com essas palavras.
Donald Trump e o Papa Francisco, que também segue uma linha clara contra o aborto e a teoria de gênero, poderiam discutir sobre esse assunto face a face no fim de maio. Trump é esperado, então, para a cúpula do G7 na Sicília, em Taormina. Os seus antecessores aproveitaram esses encontros de cúpula para um encontro com o papa, e, portanto, talvez se poderia chegar também ao encontro entre Bergoglio e Trump, no Vaticano, em maio.
Todo o mundo se perguntará, então, quem vai ler o Levítico para quem, se o presidente dos Estados Unidos ao papa, ou ao papa ao presidente dos Estados Unidos. Não se pode descartar que, nos arredores do Vaticano, chegue-se a um encontro de cúpula informal, mas não menos rico em desdobramentos, entre dois homens que se encontram plenamente na mesma linha: Stephen Bannon e Raymond Leo Burke.
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Governo dos Estados Unidos e Vaticano: um dueto no escuro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU