19 Janeiro 2017
“A suposta “inocência sexual” que a nossa cultura prega é gêmea dessa libertação total de impostos que tantos milionários norte-americanos reclamam. Porque a sexualidade tem sempre uma dimensão social, por mais pessoal e íntima que seja (ou melhor, falando como Mounier: precisamente por isso). Muitas esquerdas esquecem que, falando de socialismo, praticam uma espécie de ‘capitalismo sexual’. Ao passo que outras direitas, que tanto falam de moralidade, praticam uma autêntica ‘luxúria econômica’”. A análise é de Juan I. González Faus, SJ, teólogo espanhol, em artigo publicado por Religión Digital, 18-01-2017. A tradução é de André Langer.
Buscando uma reflexão não clerical nem cristã, mas puramente humana, partiremos de um conhecido mito pagão.
1. Ao poeta-músico Orfeu lhe foi permitido tirar do inframundo a sua amada Eurídice, morta em pleno idílio, sob a condição de que durante todo o caminho de saída, ela iria atrás dele e ele não poderia olhar para trás para olhá-la, sob pena de perdê-la. Assim ia subindo quando chegou um momento em que Orfeu, exultante por ter recobrado o seu amor, não conseguiu resistir ao desejo de vê-la: voltou os olhos para trás e, naquele momento, Eurídice desapareceu, tragada pelos infernos, enquanto gritava: “perdeste a mim, desgraçada, e a ti”.
Orfeu chorou pelo resto da sua vida aquele deslize. E Virgilio, em suas Geórgicas, pintou um Orfeu que repete desesperado o nome de Eurídice, cujo eco ressoa em toda a natureza.
É um mito grego, sem pretensões religiosas nem morais: procura descrever uma experiência humana. Orfeu mata o seu amor por não saber resistir ao afã de possuí-la. Ao antepor seu desejo à vida dela, perde-a e a condena.
Por aí vai o nosso drama humano: o desejo é, ao mesmo tempo, irresistível e autodestruidor. O filósofo G. Marcel dizia que este mito tinha sido fundamental para a sua vida e seu pensamento: ensinou-lhe a discernir entre o amor possessivo e o amor oblativo. Fê-lo compreender que amar não é desejar, mas aprender a querer. O amor só chegará a ser humanamente possessivo se antes foi oblativo: se coloca o bem da amada na frente do seu próprio desejo.
2. Contrapeso do que foi dito anteriormente pode ser... a Bíblia! O Cântico dos Cânticos exalta a sua amada “bela como a lua, eleita como o sol e avassaladora como um exército bem aguerrido”. Um texto desinibidamente bem erótico, perpassado de alusões físicas tão explícitas como não sei se há em toda a literatura greco-latina (salvo no plano da chacota vulgar, como em Aristóteles ou Marcial): os peitos saltitantes ou o trigal de seu ventre (que me evoca a Preciosa e o ar de Lorca: “abre em meus dedos antigos a rosa azul de teu ventre”)...
Mas, nova surpresa: apesar da sublime intensidade da paixão que pinta, o Cântico dos Cânticos ocupa uma parte ínfima do texto bíblico: como marcando que o amor sexual não é o campo da vida, mas a força para vivê-la. Ao contrário do pansexualismo de nossa cultura, onde o sexual ocupa quase todo o espaço, perdendo intensidade ao ganhar em extensão e ajudado nisso pela publicidade.
3. Reunindo as lições de Orfeu e do Cântico dos Cânticos podemos concluir que a sexualidade tem algo de diabólico e algo de divino: “cruel como o abismo e chama divina”, diz o Cântico dos Cânticos (8, 6).
Isso pode explicar essa linguagem inconveniente que toma o sexo como material de zombaria, aborrecimento ou desprezo; e que pessoas puritanas condenam, contribuindo, dessa maneira, para a absolutização do sexo.
Há anos, em um encontro com rapazes da JOC conheci em conversas particulares sua luta para respeitar as mulheres (“mesmo que algumas sejam para comer”), argumentando-se que eles também queriam que o patrão os respeitasse: porque, como “exército de reserva”, eram mão de obra barata para muitos empresários. Depois da missa, saímos para tomar alguma coisa em um bar, em algum lugar de Bilbao.
Meus jocistas começaram a cantar músicas e contar aos gritos piadas cabeludas, enquanto eu pensava como aquela suposta má educação lhes servia de escudo protetor contra a absolutização do sexual. E enquanto entravam pessoas que os olhavam desdenhosamente, me faziam pensar: se soubessem que somos um grupo de rapazes católicos e um padre, amanhã estaremos na primeira página do El País... Também Max Scheler perguntava como é que, no corpo humano, os órgãos mais sublimes coincidem com os do mais ridículo; e respondia: para que, se não nos deixarmos guiar pelo pudor, que ao menos nos freie a vergonha.
4. O grande paradoxo da sexualidade humana é sua incapacidade para realizar plenamente o amor. O amor tem uma trajetória preciosa que vai da admiração e da atração, à gratuidade (que converte a atração em chamado), à entrega e à união. Mas a união sexual, por sua natureza, é muito mais reprodutiva que unitiva: prova disso é a brevidade do êxtase e que tem seu ápice precisamente na “semeadura”. O ser humano buscará sempre na união sexual mais do que ela pode dar, com o risco de degradá-la. E conste que a atração pessoal e corporal é em si mesma preciosa: mas acaba mostrando que, ou não somos bem formados ou somos feitos para uma plenitude que não pertence a esta dimensão, mas a Outra.
5. Resumindo: o sexo pode ser maravilhoso, como muito útil pode ser o dinheiro. Mas a experiência ensina que, precisamente por isso, sua ativação verdadeiramente humana exige esforços que nos parecem muito rigorosos. A suposta “inocência sexual” que a nossa cultura prega é gêmea dessa libertação total de impostos que tantos milionários norte-americanos reclamam.
Porque, além disso, a sexualidade tem sempre uma dimensão social, por mais pessoal e íntima que seja (ou melhor, falando como Mounier: precisamente por isso). Muitas esquerdas esquecem que, falando de socialismo, praticam uma espécie de “capitalismo sexual”. Ao passo que outras direitas, que tanto falam de moralidade, praticam uma autêntica “luxúria econômica”.
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Paradoxos da sexualidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU