11 Novembro 2016
Indignado com a destruição de templos e túmulos de Palmira pelos jihadistas do Exército Islâmico, horrorizado com o assassinato do arqueólogo Khaled Asaad no verão de 2015 no teatro da cidade romana, o veterano historiador Paul Veyne (Aix-en-Provence, 1930) decidiu escrever um livro sobre uma cidade que na Antiguidade uniu Ocidente e Oriente como nenhuma outra no império. Na verdade, era uma adaptação de um capítulo de uma de suas obras mais famosas, O império greco-romano, mas liberado de todo o aparato crítico e mais leve para atingir um público mais geral. Em poucos meses, Palmira (agora publicado na Espanha pela editora Ariel com tradução de Carme Castells) vendeu 150.000 exemplares, um número inédito para um livro de história clássica, mesmo para um autor tão respeitado e conhecido como Veyne.
Professor no Collège de France onde foi companheiro e amigo próximo de Michel Foucault, autor do capítulo sobre Roma da História da vida privada com que Georges Duby revolucionou a maneira de olhar o passado, tradutor da Eneida, Veyne publicou em toda sua longa carreira numerosos ensaios, como Os gregos acreditavam em seus deuses? ou O sonho de Constantino. Quando o mundo se tornou cristão. No ano passado, suas memórias, Et dans l'éternité je ne m'ennuierai pas (E na eternidade não vou me aborrecer), uma viagem pelo século XX desde suas memórias da Segunda Guerra Mundial até sua aposentadoria ou sua amizade com Foucault e René Char, deram muito que falar e ganhou o prêmio Femina de ensaio, um dos mais importantes da França. Aposentado, agora vive em uma casa nos arredores de Bédoin, na sua Provence nativa, mas o peso de seus 86 anos não diminuiu sua energia. Gallimard acaba de publicar um ensaio sobre a Villa dos Mistérios de Pompeia e continua tentando manter viva a ideia que inspirou toda sua vida profissional: o que os clássicos contribuem para nós como sociedade e a de manter viva essa herança.
A entrevista é de Guillermo Altares, publicada por El País, 09-11-2016.
Eis a entrevista.
Emmanuel Carrère cita-o várias vezes no livro dele sobre São Paulo, El reino (O reino), e sempre com grande respeito. Diz que o senhor explica que a grande invenção do cristianismo é o centralismo religioso, que na Antiguidade os templos eram pequenas igrejas privadas. Foi isso que fez o cristianismo tão poderoso?
É a única religião do mundo, que eu saiba, que está organizada como um exército. Tem um general, o Papa, bispos, arcebispos, sacerdotes. É uma religião em que é preciso obedecer. O islamismo sunita não é assim, todo mundo é um soldado. Não há chefes. Por isso, o cristianismo deu um marco muito claro para a população.
Infelizmente, tenho 86 anos, mas teria gostado de escrever um livro que seria o último, sobre por que essa religião foi organizada como um exército com o princípio de autoridade tão forte. Não sei, e que eu saiba ninguém levantou a questão, mas acho que é uma questão muito importante.
Uma frase sua que Carrère também cita é: “A tarefa do historiador é dar à sociedade em que vive o sentimento da relatividade de seus valores”. Poderia explicá-la?
Se descrevemos corretamente o passado, se analisamos bem, sempre demonstramos que as pessoas, mesmo nos comportamentos mais banais, expressavam ideias, regras, princípios, que não são os atuais.
Apesar de esse relativismo, há alguma lição que podemos tirar do mundo clássico?
“A intolerância e o totalitarismo vêm do cristianismo. Isso não existia na Antiguidade”
Roma e Grécia eram civilizações perfeitamente refinadas e civilizadas, mas não têm nada a ver conosco. Bem, talvez sim haja uma coisa: o hábito dos gregos e romanos, que é a mesma civilização porque os romanos se tornaram gregos, de fazer perguntas, de refletir sobre si mesmos. Neste momento estamos fazendo perguntas sobre nós mesmos. Isso prepara, em nível individual, a relatividade da qual estávamos falando. Perguntamos o que somos, o que devemos fazer. O mundo não é evidente, perguntar sobre nós mesmos e não tomar nada como garantido: isso aprendemos dos clássicos. Até os cristãos se perguntavam sobre si mesmos. Isso vem da Antiguidade, do mundo greco-romano. Sêneca passa a vida se perguntando o que deve ser, o que deve fazer.
O senhor escreveu o livro sobre Palmira pela indignação que causou a destruição de vários monumentos. Acha que foram destruídos por tudo que significam para nós?
Tinham dois objetivos: em primeiro lugar, destruir os templos dos deuses antigos e, ao mesmo tempo, também foi uma forma de mostrar que desprezam a grande religião que nos caracteriza há um século: o culto dos monumentos históricos.
Palmira era especial no Império Romano?
Era um porto no deserto como Veneza era um porto no Mediterrâneo. Era o elo entre o Oriente de um lado, e o imenso Império Romano, do outro, para caravanas que viajavam da China por terra. Traziam muitos produtos, mas sobretudo seda: todo nobre romano, mesmo que fosse um homem, se vestia com seda. Um punhado de seda custava tanto quanto um punhado de ouro. E outra coisa que só encontramos no Oriente: o incenso para todos os templos pagãos do império.
Há pouco tempo encontraram dois esqueletos enterrados na Londres romana, que foram identificados como chineses. É possível que tivessem passado por Palmira?
Existe a história de um embaixador chinês em Palmira que queria descobrir por que a seda era tão valorizada no Império Romano, mais que na Pérsia. E, por outro lado, os romanos sabiam da existência da Grande Muralha. A seda até o século III era algo extraordinário que vinha de regiões misteriosas e distantes.
Outra coisa que explica é que o mundo romano era formado por cidades.
A classe alta possui a terra. Vive dos rendimentos da agricultura, dos seus agricultores. Há também uma classe média, por exemplo, os pais do poeta Virgílio. São ricos proprietários e também alguns comerciantes. Todos eles vivem na cidade daquilo que a terra lhes proporciona. Nas cidades, vivem os ricos, seu enorme serviço e os comerciantes que lhes fornecem tudo o que necessitam. Essa oligarquia é a que detém o poder político, reunida numa espécie de Senado, que mandam e dirigem. Palmira funciona assim, salvo que os ricos, em vez de explorar a terra, têm caravanas.
Em Palmira, o senhor escreve: “Nossa época fala muito de imperialismo cultural e identidade, mas nos esquecemos de que a modernização pela adoção de costumes estrangeiros desempenha um papel mais importante na história que o nacionalismo”. O que isso explica do nosso presente?
A civilização que chamamos de romana é grega, eles adotaram tudo dos gregos, inclusive o ritmo da poesia. A poesia romana abandonou os velhos ritmos itálicos e adotou os ritmos da grande poesia da era grega.
Em seu livro Quando nosso mundo se tornou cristão, o senhor insinua que talvez pudesse ter sido de outra forma, que o mundo poderia não ter sido cristão. Quando?
Talvez se Juliano o apóstata tivesse tido um sucessor pagão as coisas teriam sido diferentes. O que aconteceu é que Constantino se converteu a título pessoal, não obrigou a população a ser cristã, que continuou sendo pagã até muito mais tarde. Mas deu à Igreja somas enormes, dilapidou o tesouro imperial e deu grandes somas à Cúria. Foram construídos edifícios em todos os lugares e as populações rurais começaram a entender quem eram os novos senhores. Na Tunísia, na época de Santo Agostinho, eles os vêm ocupar um palácio episcopal. Sabiam que a autoridade estava lá. Ocuparam o terreno materialmente.
Por que na Antiguidade não ocorrem guerras religiosas?
Porque se podia escolher os deuses sem problemas. Não há disputas. Quando se descobre que uma aldeia distante tem um deus peculiar, este é estudado e, assim como foram trazidas plantas úteis, como batata da América, essa divindade é importada. A intolerância, o totalitarismo, vêm do Cristianismo. Isso não existe na Antiguidade.
Constroem-se templos para os deuses que eles gostam sem importar de onde vêm. No ano 200 a.C., os romanos estão sendo derrotados por Aníbal e um senador diz que viajou ao Oriente e encontrou uma deusa que pode ajudá-los, Cibele. Ele propôs trazê-la. Foram buscar uma estátua e sacerdotes e a introduziram solenemente em sem nenhum problema.
O que mais o choca na civilização romana?
Eu acho que são os gladiadores. Posso chegar a compreender a violência, mas como se pode assistir a isso? Ser gladiador era considerado um esporte nobre e era voluntário, para tentar garantir um bom espetáculo. A damnatio ad bestias, as condenações à morte, eram outra coisa. De manhã se podiam ver corridas, gladiadores e, em seguida, o que chamavam de espetáculos do meio-dia. O anfiteatro era evacuado e começavam os suplícios mais horrendos que se possa imaginar para condenar os criminosos. Muito menos gente ficava para assistir a isso, um público que não era totalmente normal. Sêneca, por exemplo, admirava os gladiadores, mas não os suplícios. A inventividade na atrocidade era extraordinária, mas o próprio Sêneca disse que só os tarados assistiam. Naquela época também havia gente que não podia suportar a violência.
Por que Roma conquistou o mundo?
Pela mesma razão que os nazistas: pelo fenômeno da colaboração. Os nobres gauleses, que possuem muitas terras, veem que os romanos os adotam e deixam no mesmo lugar as classes que possuem bens. Uma cidade conquistada continua sendo governada pela oligarquia gaulesa. E se as pessoas se revoltavam, os romanos vinham e arrasavam tudo.
Fundado por Francisco I no Renascimento, o Collège de France (Colégio da França) é uma instituição única. Depende do presidente da República, apesar de que seus 50 membros são eleitos entre eles. Depois que são selecionados, devem passar o resto da sua carreira investigando e publicando, com a única obrigação de dar uma série de conferências por ano. A entrada é gratuita. Em seu romance recém-publicado, A sétima função da linguagem, que transcorre entre professores do Collège e gira em torno da morte de Roland Barthes, Laurent Binet descreve as conferências de Michel Foucault às quais iam tantas pessoas que ocupavam duas salas de aula: uma com pessoas sentadas em todos os lugares e outra que ouvia por rádio. Uma medievalista que estudou em Paris também recordava as conferências de Georges Duby nas quais se juntava toda a alta burguesia parisiense quase sem deixar espaço para os alunos.
Veyne foi durante duas décadas professor nessa mesma instituição, sobre a qual conta anedotas suculentas em suas memórias, como quando a grande helenista Jacqueline de Romilly protestou após a eleição de Barthes assegurando: “Quem será o próximo, Eddy Merckx?”, um ciclista muito famoso na época. No entanto, essa longa experiência de pesquisa e divulgação o levou a refletir sobre a forma como os clássicos gregos e latinos continuam vivos na sociedade e propor algumas ideias que podem parecer estranhas para um latinista como tirar o latim do ensino médio.
Por que, apesar de ter dedicado toda a sua vida ao latim considera que é melhor que os alunos estudem inglês em vez de latim ou grego?
Ficamos obstinados no ensino de latim para crianças. Quando terminam são incapazes de articular uma frase e, entre nós, a professora tampouco. O que deveríamos fazer é dar duas horas por semana, ou três, durante as quais explicaríamos o mundo clássico e eles leriam autores como Virgílio em traduções. Isso mostraria um mundo completamente diferente do nosso, uma literatura à qual não estão acostumados. Ensinaríamos não tanto o latim, mas a civilização greco-romana.
Mas não podemos correr o risco de que, no final, ninguém soubesse mais traduzir do latim?
Meu segundo projeto era criar na França um instituto de estudos da Antiguidade. Existe uma escola de línguas orientais na qual se aprende o russo, o árabe ou o persa. Seria uma escola de línguas antigas, como uma carreira, para aqueles que sentiram a paixão pelos clássicos. Aprenderiam latim ou grego. Cada geração contaria com 50 especialistas em Antiguidade, que escreveriam livros e seriam capazes de traduzir Virgílio e Homero.
Quais livros da Antiguidade recomendaria a um leitor não especializado?
Os clássicos podem ser difíceis. O Satíricon pode ser lido por todo mundo porque fala da vida cotidiana. Juvenal, ao ser uma sátira, mostrava como funcionava aquela sociedade. Para mim os dois grandes escritores romanos são Virgílio e Tácito. Talvez Horácio, mas é muito difícil.
Acha é que preciso refazer as traduções dos clássicos?
Certamente cada geração ou pelo menos a cada duas gerações é preciso refazê-las, como nos romances russos, porque elas envelhecem.
Por que escolheu traduzir a Eneida em prosa, em vez de verso?
Ao traduzir a Eneida, o mais importante não acho que seja respeitar o verso, mas a velocidade da leitura. Não posso ler romances contemporâneos, têm muitos detalhes. Eneida ou a Ilíada vão muito rápido.
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“Os clássicos nos ensinaram a fazer perguntas” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU