10 Novembro 2016
Após endurecer as regras para refugiados que vivem no Brasil, o governo do presidente Michel Temer agora usa de uma manobra que tem impedido a entrada deles no País. Estrangeiros de Senegal, Gâmbia, Guiné Bissau, Togo, entre outros, relatam que foram impedidos de retornar o Brasil depois de viajarem aos seus países de origem pelos mais diversos motivos. Alguns deles correm risco de morte.
A reportagem é de Lumi Zúnica e Érica Saboya, publicada por Ponte, 08-11-2016.
O problema teve início no dia 21 de setembro de 2016, quando o Ministério da Justiça publicou a Nota Informativa 09/2016 da Divisão de Polícia de Imigração, estabelecendo a obrigatoriedade de visto a portadores de protocolo de solicitação de refúgio que viajam ao exterior.
Na ocasião, cerca de 30 pessoas foram retidas durante dias no Conector do aeroporto de Guarulhos, em condições precárias, ao desembarcarem no Brasil e serem surpreendidas com a nova norma. Com a repercussão negativa do caso, o grupo foi liberado e, no dia 3 de outubro, o Conare (Conselho Nacional para os Refugiados), órgão vinculado ao Ministério da Justiça, informou via email que a resolução seria válida a partir do dia 1º de janeiro de 2017. “Até 31 de dezembro de 2016, permanece a orientação de permitir a entrada em território nacional daqueles solicitantes que tiverem protocolo e passaporte dentro da validade”, diz a nota.
De acordo com a advogada Patrícia Vega, do Centro Integrado do Imigrante, o governo brasileiro está usando uma artimanha legal para evitar o retorno dos estrangeiros ao deixar de comunicar Iata (Associação Internacional de Transporte Aéreo) que a norma ainda não vale para este ano. Com isso, as empresas associadas mantêm em vigor a primeira informação enviada sobre a necessidade de visto para embarque.
– A falta de vontade política do governo em resolver o problema é evidente, já que o Ministério da Justiça se omitiu da obrigação de comunicar as embaixadas. Sabendo do erro, não emitem os vistos para os estrangeiros que se encontram com a documentação em ordem.
A advogada também explica que, ao caírem na vala comum dos pedidos de visto de turista, os solicitantes de refúgio, muitos com Carteira Profissional assinada no Brasil e até famílias constituídas, ficam com as chances quase nulas de conseguirem novo visto.
– Visto para africano entrar ao Brasil é mais difícil do que visto para brasileiro ir aos Estados Unidos. Na prática, está se fazendo uso de uma artimanha legal para se impedir que um grande grupo de africanos consiga se estabelecer no Brasil na qualidade de refugiados.
As dificuldades impostas a esse grupo de pessoas, que estão ameaçadas em seus países de origem, tiveram início dois dias depois de o presidente Michel Temer enaltecer a política de acolhimento aos imigrantes no Brasil durante reunião da ONU (Organização das Nações Unidas).
Yawavi Etekpor nasceu em Lomé, capital de Togo, no oeste da África.
Solteira e mãe de Abigail, uma menina de 11 anos, Yawavi deixou a filha morando com a avó na periferia de Lomé para viajar ao Brasil em outubro de 2012, fugindo da extrema crueldade de que se tornou vítima, vivendo uma rotina análoga à escravidão, sendo vítima de violência doméstica pelo marido e com risco de mutilação genital. Abigail e a mãe de Yawavi ficaram em Togo e vivem escondidas, como relata em um português arrastado.
– Ele batia a minha cabeça contra a parede e dava socos na barriga (na gravidez) para a filha nascer antes para eu voltar a trabalhar.
Ela trabalhava para sustentar o marido violento e a filha.
Mas o pesadelo maior veio quando ele decidiu que Yawavi e a filha, na época com seis anos de idade, teriam que ser circuncidadas.
A circuncisão feminina é a mutilação do clitóris e dos lábios vaginais praticada em alguns países africanos. Entre os motivos que embasam a tradição estão a crença de que a mulher vai se tornar submissa ao marido, que só assim ela poderá conseguir marido ou, ainda, que o contato com o clitóris é prejudicial para a criança durante o parto. Mulheres que não aceitam o ritual são encaradas como prostitutas e banidas das sociedades tribais.
Aterrorizada, mas decidida a não permitir a barbárie, Yawavi escondeu a filha e fugiu ao Brasil para conseguir recursos que permitissem resgatar Abigail mais tarde.
Para ela, assim como para muitos outros africanos, o Brasil tornou-se uma janela de esperança na luta para fugir da pobreza, violência contra a mulher, assassinatos em massa e terrorismo praticados no continente.
Chegando a São Paulo, a togolesa protocolou o pedido de visto de refugiado que tramita até hoje no Conare. Desde 2012, ela divide com uma colega da mesma nacionalidade um quarto de pensão no bairro do Cambuci, centro da cidade, onde pagam R$ 600 por mês de aluguel.
Por mais de dois anos, ela conseguiu trabalhar em um restaurante com carteira assinada. Mas, com espírito empreendedor, Yawavi deixou o emprego, comprou duas máquinas de costura e alugou uma pequena sala no terceiro andar da galeria do reggae, centro de São Paulo, onde trabalha como costureira. O que ganha reinveste em tecidos e envia ao Togo para ajudar a família.
Com o tempo, conquistou boa clientela para os vestidos de estampas africanas, o que permitiu que ela poupasse o suficiente para visitar a filha e a mãe após quatro anos de ausência.
Yawavi viajou a Togo no dia 11 de agosto e retornaria no dia 21 de outubro. Mas a empresa Ethiopia Air se recusa a permitir seu embarque no aeroporto Gnassingbe Eyadema, em Lomé, alegando que ela precisa de visto válido para retornar ao Brasil.
Yawavi se diz muito assustada com a possibilidade de perder tudo que conquistou nestes quatro anos: uma nova vida e identidade, conta em banco, CPF, um empreendimento próprio e a possibilidade de resgatar a filha em breve. Os problemas da ausência forçada começam a surgir também no Brasil.
– Estando fora, as dívidas crescem. Querem por minhas máquinas e minhas coisas na rua.
Ela relata estar sendo ameaçada de despejo da sala alugada no centro de São Paulo por falta de pagamento.
Yawavi completará 30 anos no dia 31 de dezembro, véspera de entrar em vigor a obrigatoriedade de visto para regresso ao Brasil. Mas, ela ainda não sabe se vai comemorar a data no Brasil ou dentro do pesadelo da violência que ronda sua história e a de sua filha.
Bahore Samasa, 22 anos, natural de Gâmbia e pai de dois meninos e uma garota, chegou ao Brasil em outubro de 2014 e, em novembro, já tinha carteira de trabalho. Ele é a única pessoa empregada de sua família, que mora na África.
Bahore envia dinheiro regularmente para sustentar os filhos. Mostra com orgulho o cartão bancário da Caixa Econômica Federal, o CPF e o cartão do SUS, mas em especial o crachá da empresa de engenharia na qual trabalha como servente.
Bahore viajou de São Paulo com destino a Dakar no dia 27 de agosto de 2016 para acompanhar o sepultamento dos pais e deveria retornar no dia 27 de outubro, mas a companhia aérea South African não permitiu o embarque.
– Aqui em Gâmbia não tem embaixada do Brasil. Tive que ir até Senegal para conseguir o visto e voltei a Gâmbia sem resposta.
Caso similar é o de Ndame Ndiaye, 29 anos, senegalês, impedido de embarcar no dia 29 de setembro em Johanesburgo, África do Sul.
O mesmo ocorre com a senegalesa Madiama Sall Ainda Wade, de 29 anos, que partiu de São Paulo em 6 de setembro, antes mesmo da norma ser emitida e deveria ter voltado no dia 3 de novembro. Mas ela também foi impedida de embarcar, assim como outros tantos africanos que haviam encontrado refúgio de suas tragédias pessoais no Brasil.
Procurada pela reportagem, a IATA afirmou que não foi comunicada de que a normativa passaria a valer em 1º de janeiro e atua como se ela já estivesse em vigor. “A Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA), informa que tem ciência da norma 09/2016 do Departamento da Polícia Federal e que possui em seu TIMATIC – sistema de ajuda de documentação necessária para ingressar nos países – todas as informações necessárias para o bom andamento dos processos”, afirmou em nota.
Já o Ministério da Justiça disse que cabe ao Ministério das Relações Exteriores se posicionar sobre o assunto. “Caso o solicitante de refúgio chegue ao Brasil, portando o protocolo de solicitação de refúgio, será a ele assegurada a entrada ao país”, afirmou a pasta por e-mail.
O Itamaraty também foi procurado, mas não havia respondido às questões enviadas até a publicação da matéria.
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Manobra do governo Temer barra entrada de refugiados no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU