07 Outubro 2016
"Na medida em que evoluímos lentamente em direção à idade adulta enquanto espécie, temos de deixar para trás a independência imaginada de nossa adolescência dirigindo-nos à percepção da nossa interdependência com todas as outras espécies. É um movimento que vai da administração para a participação em uma comunidade terrestre onde o divino não é um senhorio ausente, mas uma presença imanente e íntima em cada ser. É um movimento que vai de um antropocentrismo arrogante para um biocentrismo humilde. É um movimento que vai da causação da extinção em massa atual das formas de vida para o ser protetor e preservador, agindo com gratidão e reciprocidade", escreve Paulette Zimmerman, membro das Irmãs Escolares de Nossa Senhora, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 04-10-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Muitas vezes Donald Trump é criticado por denegrir as mulheres comparando-as, por exemplo, com os porcos. Sem querer, Trump estava na verdade dizendo que as mulheres são amorosas e extremamente inteligentes. Uma recente petição, através da qual uma família tentava impedir que o seu porquinho fosse removido da casa, ressaltou essas duas qualidades dos porcos, mas não só daqueles que são acolhidos como membros da família, mas também aqueles indivíduos inominados e não amados que sofrem em fazendas industriais. Além de ser amorosos e inteligentes, os porcos são muito sociáveis, o que não é uma má qualidade dada a necessidade de relação para a felicidade e prosperidade. É também uma qualidade que contribui para o sofrimento das porcas confinadas em celas de gestação.
Comparar os seres humanos aos seus primos animais é, em geral, visto como um insulto. Chamar alguém de rato, porco, burro ou galinha – e a lista continua – significa rebaixar o ser humano. A própria palavra animal é empregada como um insulto, como na expressão “não são melhores do que os animais”, embora os animais denotem um ser com alma, com o espírito, seres animados e capazes de se mover. Uma tal linguagem revela um antropocentrismo perigoso e uma visão de mundo hierárquica, sem o reconhecimento de que cada espécie e indivíduo é uma revelação do divino. Astuto como uma raposa, mudo como um boi, bobo como um ganso parecem ser projeções em vez de traços cientificamente comprovados ou, simplesmente, observáveis. Tentando mostrar empatia com os seres humanos que sofrem, pode-se dizer que eles são tratados como cães, um comentário preocupante a respeito do tratamento dispensados aos cães reais. Ocasionalmente, atribuímos qualidades que admiramos a nossos primos animais – ocupado como um castor ou abelha; coruja velha sábia –, mas minimizamos o valor de muitos deles quando ocorre um “acidente de estrada”, expressão genérica para referir a todos os adoráveis animais destruídos pela nossa velocidade e falta de cuidado.
A tendência humana de reificar as demais espécies fica evidente no pronome impessoal inglês “it” aplicado a criaturas que são, de fato, ele ou ela, assim como no termo “livestock” [literalmente “estoque vivo”], usado para referir vacas, porcos, galinhas, perus e outros. O termo reconhece que essas criaturas são seres vivos, mas que não possuem direitos inerentes; em vez disso, pertencem a seres humanos, são uma forma de ganhar dinheiro e são, como um objeto qualquer, apenas estoques de alguém que os possui e que podem ser comercializados. Eles só possuem valor se forem nomeados e fizerem parte de uma família humana; de outra forma, bilhões de animais de criação são meros objetos em fábricas do agronegócio. Faríamos bem em lembrar a famosa frase de Thomas Berry: “A terra é uma comunidade de indivíduos, e não uma coleção de objetos”.
Também podemos fazer algum progresso no sentido de nos conscientizarmos sobre o valor de todos os seres vivos se começarmos a contabilizá-los nos desastres. Com razão lamentamos as milhares de vidas humanas perdidas em Hiroshima e Nagasaki em 1945, assim como em outras atrocidades causadas pelo homem antes e depois. Mas, em vez de dizer que, por exemplo, “80 mil vidas foram perdidas”, poderíamos contribuir para a nossa conscientização sobre a realidade se sempre dissermos que “80 mil vidas humanas – e um número desconhecido de outras vidas – foram perdidas”. Um número desconhecido, inúmeras vidas, de mamíferos, aves, répteis, anfíbios e criaturas da água são destruídos tanto em catástrofes causadas pela atividade humana como em eventos naturais; estas vidas precisam ser reconhecidas e, onde necessário, é preciso haver um arrependimento. Essa tal consciência e compaixão esteve clara em um e-mail enviado pela Farm Sanctuary – lar de animais de fazenda maltratados e abandonados – quando um incêndio na Califórnia forçou a evacuação do local. O relatório oficial informou que o fogo foi em grande parte contido, “mas não antes de queimar mais de 38 mil acres, destruindo várias casas e levando a pelo menos uma morte humana (e um número desconhecido de vida selvagem e outros animais em seu caminho)”.
A vida vegetal também precisa de reconhecimento e respeito; a vegetação, o solo e a água são muito facilmente transformados em propriedade. Se a Terra, incluindo todos os seus ecossistemas, é um organismo autogerador, a autonutritivo e autônomo – e ela é –, então relegar o planeta, ou partes dele, ao status de propriedade é menosprezar a fonte a partir do qual nós e todas as demais espécies surgimos. De fato, os seres humanos têm a responsabilidade de cuidar da terra, da água, da flora e da fauna, que dependem deles, mas sempre reconhecendo que nós também somos membros da grande comunidade da vida. Falar da terra, e não de propriedade, nos faz lembrar de sua definição dada pelo ecologista Aldo Leopold, que inclui “solos, águas, plantas e animais”.
Na medida em que evoluímos lentamente em direção à idade adulta enquanto espécie, temos de deixar para trás a independência imaginada de nossa adolescência dirigindo-nos à percepção da nossa interdependência com todas as outras espécies. É um movimento que vai da administração para a participação em uma comunidade terrestre onde o divino não é um senhorio ausente, mas uma presença imanente e íntima em cada ser. É um movimento que vai de um antropocentrismo arrogante para um biocentrismo humilde. É um movimento que vai da causação da extinção em massa atual das formas de vida para o ser protetor e preservador, agindo com gratidão e reciprocidade.
Ao fazer isso, podemos, sim, acolher o termo espécie, pois isto é o que somos, uma espécie que compreende muitas raças, etnias e culturas, única no uso da linguagem simbólica, porém unida com todas as outras em nossa origem comum no planeta e nas estrelas. Que a nossa linguagem reflita essa imensa dignidade e esse imenso valor.
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Por falar em animais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU