17 Setembro 2016
"Emerge, no chão da facticidade, um drama existencial rapunzeliano: o que se olha diante do espelho? Seria sua própria imagem? Ou seria a imagem impressa pela cultura somática? Corre-se o risco de se afastar da nascente interior, tornar-se 'corpo-objeto' ao invés de 'corpo-sujeito', de escurecer o curso do rio de modo que não se aviste ou, pior ainda, que se deslembre da existência da nascente interior", escreve Carlos Rafael Pinto, mestrando em teologia (Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE - Belo Horizonte) e graduado em Teologia e em Filosofia (Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora).
Eis o artigo.
Pretende-se, a partir da metáfora de Rapunzel [1], fazer algumas reflexões psicológicas, filosóficas e teológicas sobre o drama do itinerário existencial da busca pela nascente do desejo individuacional [2]. Para isso, primeiramente, imaginemos Rapunzel sozinha em sua casa, na copa de uma árvore, onde uma réstia de luz da aurora austral repousa suavemente no espelho para o qual ela se olha. Sem sua “mãe”, Rapunzel olha a si mesma.
Roubada de seus pais biológicos, Rapunzel foi criada por outra mãe. Referimo-nos à outra mãe como “mãe” (entre aspas) para distingui-la da mãe biológica. Rapunzel crescia irradiante, como a cor de seu longo cabelo dourado. Sua vida costumeira se dava em uma toca na copa da árvore: levantar-se, alimentar-se, criar estórias, trabalhar, repousar-se.
Sua “mãe” tanto astutamente moralizou o mundo entre o bem e o mal, como fragilizou Rapunzel e sua beleza diante do espelho, de modo que ela não mais se via... Quando se olhava, auscultava a voz de sua “mãe” que a repreendia: “Tu és bela, querida! Porém, tão frágil e desprotegida...”. De certo modo, Rapunzel foi catequizada para culpar-se, desconfiar-se dos recônditos desejos, sentir medo dos sentimentos e de torna-se livre [3].
Outras “mães” criam o mercado do prazer exacerbado, mediante letras musicais desprovidas de quaisquer ambiguidades: “Quero o seu cu” do Mc Luan [4]; “Solta essa porra” da Gaiola das Popozudas [5], entre outras. Outras “mães” ainda podem emudecer alguns jovens, e certamente algumas jovens, durante sua formação nos institutos religiosos ou seminários, provocando alguns sintomas psicológicos [6], entre os quais imaturidade afetiva ou desarmonia da própria orientação sexual.
Embora Rapunzel tenha-se tornado uma bela jovem, era indefesa, desprotegida, escravizada pelo medo do olhar “materno”. Sob o olhar doce e a face bondosa de Rapunzel, escondia-se um tribunal interior impiedoso de seus desejos íntimos. Seu juízo se dava apenas por meio dos olhos de sua “mãe”, de modo que sua projeção sobre si mesma era conforme a imagem produzida pela “mãe”, ou seja, eram imagens “maternas”.
Instala-se, portanto, um drama existencial: Rapunzel não olha a si mesma! Quem seria ela? Seria uma imagem criada por sua “mãe” aparentemente boazinha? Ou seu espelho ainda lançaria luz sobre a sua escurecida nascente interior?
Imprimem-se, na “sociedade do espetáculo”, sobre o oceano do nosso desejo a “cultura somática”, que escurece nossa nascente. Implode a cultura somática, que é cultura da imagem [7], que retorna com veemência ao ideal helênico de “corpo mais que perfeito”. Por isso, oferecem-se, no “mercado espetacular”: intervenções cirúrgicas; cosméticos inclusive masculinos; salão de beleza especializado etc. Parece-nos que a cultura somática explora, sobretudo, os traços femininos presentes no homem [8].
Emerge, no chão da facticidade, um drama existencial rapunzeliano: o que se olha diante do espelho? Seria sua própria imagem? Ou seria a imagem impressa pela cultura somática? Corre-se o risco de se afastar da nascente interior, tornar-se “corpo-objeto” ao invés de “corpo-sujeito”, de escurecer o curso do rio de modo que não se aviste ou, pior ainda, que se deslembre da existência da nascente interior.
Ao cair da tarde, no intuito de aquecer a noite invernosa que se alça, a “mãe” de Rapunzel apanha um saco para pegar mais lenha no campo. Enquanto isso, em sua toca, a “filhinha” se mantém na rotina. Todavia, inesperadamente o espelho lança uma luz penetrante nos seus olhos frágeis. Fascinada pela réstia de luz, desadormecem-se os olhos! Ela se aproxima do espelho, nele repousando suavemente seu olhar.
Desta vez, Rapunzel se olha espantada e surpresa! O que ela olha? O que ela ainda não viu de si mesma? O que o espelho a induz olhar em si mesma? De outro modo, considerando a imagem do rio, poder-se-ia indagar: qual o seu curso antes de desembocar no oceano? Qual a fonte de onde origina esse rio? Quais as sombras, no sentido de dramas e, inclusive, resistências, tanto eclipsam a percepção do curso do rio, como sua vital nascente?
Olha-se o que está dentro de si, que é radicalmente humano: o desejo![9] Esse desejo situa-se no corpo sexuado. Para a Teologia cristã, o corpo se torna lugar de reflexão teológica a partir da facticidade e dramaticidade humana, ao que acrescentamos: a partir da esperança humana. O corpo se torna, portanto, um lugar teológico de reflexão, porque Deus é acontecimento na carnalidade do corpo de Jesus de Nazaré (Jo 1,14; Fl 2, 6-7), como um lugar no qual se inscreve a revelação de Deus.
Diante do espelho, Rapunzel se coloca diante de si mesma: seu olhar é lançado, a partir do espelho, para seu oceano interior, a partir do qual ela se desperta. Apercebe-se e percebe, em si mesma, tanto o movimento inverso do oceano em direção ao rio, quanto as suas sombras “maternas” que esconderam o trajeto, inclusive adormeceram a nascente dele. Para além do espelho, sem sua “mãe”, Rapunzel se olha.
Olhando-se, ela experimenta que seu desejo nascente se torna inesgotável e insaciável. Para mais, esse desejo se apresenta como Eros, que não pertence à ordem teorética, mas é da ordem da afectividade (páthos), que é, por experiência, pré-científico, pré-linguístico ou pré-jurídico e que se comunica como linguagem simbólica da sexualidade [10].
Cabe-nos reabilitar o desejo como Eros, quer dizer, libertá-lo dos grilhões “maternos”, despertá-lo do erotismo da “sociedade do espetáculo” ou do silêncio religioso. Sendo assim, Eros é, se, por um lado, da ordem da significação, considerada como realidade que revela um sentido existencial, por outro, é da ordem da construção [11].
Por conseguinte, nesse drama do itinerário existencial da busca pela nascente do desejo individuacional, a metáfora de Rapunzel contribui para a reflexão sobre a reabilitação dessa experiência do desejo individuacional: antes de qualquer coisa, como sujeitos desejantes e, posteriormente, movidos a partir desse mesmo desejo em direção aos outros e para os outros [12], visto que “o homem (...) não é apenas feito pela História – é ele quem faz esta” [13].
BENELLI, Silvio José. Pescadores de homens: estudo psicossocial de um seminário católico. São Paulo: Editora UNESP, 2006.
FAUS, José Ignacio González. Sexo, verdades e discurso eclesiástico. São Paulo: Loyola, 1999.
FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. São Paulo: n-1 edições, 2013.
FROMM, Erich. O medo à liberdade. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
GAIOLA DAS POPOZUDAS. Solta essa porra. Disponível aqui.
JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. vol. 6. Petrópolis: Vozes, 1991.
JUNIOR, Nilo Ribeiro. Teologia Moral e história. Em busca de soluções em tempos de incertezas, p. 73-146. In: _____. PESSINI, Leo; ZACHARIAS, Ronaldo (Orgs). Ser e educar: Teologia moral, tempo de incertezas e urgência educativa. Aparecida: SP: Editora Santuário; São Paulo: Centro Universitário São Camilo; São Paulo: Sociedade Brasileira de Teologia Moral, 2011.
MC LUAN. Quero o seu cu. Disponível aqui.
RICOEUR, Paul. “A Maravilha, o Descaminho, o Enigma”. In: Revista Paz e Terra 5 (1967): 27-38.
TANGLED. Disponível aqui.
[1] Baseia-se no filme Tangled (Enrolados – título no Brasil), um longa-metragem de animação produzido pela Walt Disney Animation Studios, que faz alusão ao conto de fadas alemão, Rapunzel, dos Irmãos Grimm. Cf. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Tangled. Acesso em: 08 set. 2016.
[2] Considera-se por “individuacional” uma realidade profunda que torna uma pessoa distinta radicalmente das outras.
[3] Suprime-se o verdadeiro espaço da liberdade, que é o encontro da liberdade com uma realidade diferente dela, em dois casos: ao não suportar a liberdade do outro, a pessoa destrói a realidade diferente, fica sozinha e mata-o, inclusive; ao ter medo do diferente, a pessoa anula sua liberdade, submetendo-se totalmente ao outro (cf. FROMM, 1986, p. 114-165).
[4] Disponível em: https://www.letras.mus.br/mc-luan/1863690/. Acesso: 08 set. 2016.
[5] Disponível em: https://www.letras.mus.br/gaiola-das-popozudas/1281814/. Acesso em: 08 set. 2016.
[6] Cf. Silvio J. Benelli apresenta uma densa cartografia psicossocial de um seminário católico (cf. BENELLI, 2006, 326 p.).
[7] Cf. JUNIOR, 2011, p. 73-146.
[8] Para Carl G. Jung: “O caráter complementar da alma atinge também o caráter sexual, conforme pude constatar muitas vezes. Mulher muito feminina tem alma masculina; homem muito masculino tem alma feminina. Deve-se este contraste ao fato de o homem não ser plenamente viril em todas as coisas, mas possuir, via de regra, certos traços femininos. Quanto mais viril sua atitude externa, mais suprimidos são os traços femininos; aparecem, então, no inconsciente. Isto explica por que homens bem masculinos estão sujeitos a certas fraquezas bem características; comportam-se para com as moções do inconsciente com a determinabilidade e impressionabilidade femininas” (JUNG, 1991, p. 392).
[9] Para Camus (El hombre rebelde, Buenos Aires, 1973, p. 16), o homem é o único animal que não se contenta em ser o que é (cf. FAUS, 1999, p. 19).
[10] Esse mesmo desejo, posteriormente, pode impulsionar um para outrem: “quando dois seres se enlaçam, não sabem o que fazem; não sabem o que buscam, não sabem o que encontram” (RICOEUR, 1967, p. 36).
[11] Cf. FOUCAULT, 2013, p. 7-16.
[12] Cf. JUNIOR, 2011, p. 73.
[13] FROMM, 1986, p. 21.
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"Rapunzel: Um itinerário do desejo individuacional" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU