29 Agosto 2016
O Brasil está vivendo um período obscurantista e o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff representa um retrocesso gigantesco na nossa história que levará muito tempo para ser corrigido. O país ingressou em um regime de exceção com a violação de garantias individuais consagradas na Constituição, abuso de autoridade e ilegalidades cometidas por setores do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal. A avaliação é de Gilberto Bercovici, professor titular de Direito da Universidade de São Paulo (USP), que define como “um circo” o julgamento de Dilma Rousseff no Senado.
Bercovici adverte para graves riscos e ameaças à democracia brasileira e à economia do país a partir do movimento político, jurídico e midiático que teve como objetivo derrubar uma presidenta eleita com mais de 54 milhões de votos.
“A Lava Jato está destruindo a nossa economia. O setor de engenharia foi para o buraco e a indústria naval foi destruída. Ainda não conseguiram destruir a construção civil, mas estão tentando. Estão agindo como uma casta que acha que o país é deles. Parecem querer que o Brasil volte a ser uma fazenda gigante e uma mina gigante”, assinala.
A entrevista é de Marco Weissheimer, publicada por Sul21, 28-08-2016.
O jurista critica também a postura dos tribunais superiores do país e dos riscos que isso representa para o tecido social: “O STF e o STJ têm 30 anos de jurisprudência de garantia dos direitos individuais. Sempre foram cortes garantistas. De repente, do dia para a noite, eles mudaram de posição? Como foi essa mudança? Quem decidiu? É medo da mídia e do clamor popular? É uma demanda da sociedade? Se depender da demanda da sociedade, todo mundo vai ser linchado em praça pública. Se é isso que querem, tudo bem, mas vai valer para todo mundo. Valerá para juiz também ser linchado no meio da rua. É isso que estão querendo?” – questiona Bercovici.
Eis a entrevista.
Como você definiria a situação política do país neste momento em que ocorre, no Senado Federal, o julgamento do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff?
O que está ocorrendo no Senado é um circo. Já está tudo combinado, até porque o PT entregou a cabeça dela numa bandeja ao negar apoio à ideia o plebiscito, a única coisa que poderia eventualmente convencer alguém a mudar de ideia. Se nem o partido dela apoia essa proposta, não há muito a fazer. Agora, estão apenas fazendo um jogo de cena. Dilma vai segunda ao Senado. Como ela não tem mais absolutamente nada a perder espero que ela fale o que tem que falar. Mas também duvido que faça isso.
O que ela deveria falar, na sua opinião?
Deveria falar quem é cada um ali, né. Quem é você para me acusar. Você desviou tanto, você me pediu tanto, você fez isso, você fez aquilo, enfim, deveria falar a verdade. Ela tem alguma coisa a perder? Infelizmente, acho que ela não vai fazer isso. É uma pena. Seria didático para o país.
Quais devem ser as repercussões políticas e sociais no país, caso se confirme o afastamento de Dilma? Em diversas ocasiões, nos últimos meses, você advertiu para as ameaças às garantias constitucionais no país…
Eles vão passar o rolo compressor. Estamos lidando com um parlamento que só quer saber de dinheiro. Eles vão aprovar o que o governo quiser e o que eles querem é garantir pagamento de juros para os bancos. O resto que se lixe. O que me dá um misto de tristeza e raiva é a absoluta apatia das pessoas em relação às ameaças a direitos trabalhistas, ao corte de verbas para a saúde pública e para a educação pública. Quem é de classe média ou classe média alta não usa esses serviços. Não vive de CLT, não usa escola pública ou saúde pública. Quem usa, porém, não parece estar nenhum um pouco preocupado com o que está acontecendo.
A que você atribui essa apatia?
Não sei. Há quem diga que é a mídia, mas não sei se é só a mídia que, sem dúvida, tem um grande papel. Não sei explicar. As pessoas parecem mais preocupadas com a medalha de ouro no futebol nas Olimpíadas do que o vai acontecer com a escola de seus filhos, com os hospitais que pode precisar usar ou com o futuro do seu próprio trabalho.
Isso não está ligado ao fato de que, talvez, essas pessoas não vislumbrem a perspectiva de uma ameaça real de perda de direitos e de qualidade de vida?
Pode ser, mas é uma alienação muito grande. E a impressão que dá é que, se perderem direitos, também não vão fazer nada. Posso estar enganado sobre a índole das pessoas, mas a sensação que me dá é que não estão nem aí para o que está acontecendo no país.
Você não acredita numa reação da parte dos movimentos sociais, movimento sindical e outros setores organizados da sociedade? Enxerga neles uma capacidade de enfrentar o que vem por aí?
Não estou muito otimista quanto a isso porque, até aqui, não teve, não é? No início, antes da votação na Câmara e logo depois, houve certa mobilização que depois simplesmente acabou. A verdade é que os sindicatos e movimentos sociais como o MST e o movimento dos sem teto não conseguiram manter a mesma mobilização. O PT está mergulhado na lógica eleitoral, preocupado com as eleições municipais. O PT foi e segue ainda sendo hegemônico no campo da esquerda, por não existir outro partido que ocupe esse vácuo, mas está perdendo base social. O partido perdeu a capacidade de criar expectativas que arrastem as pessoas. Parte disso, é verdade, é resultado da mídia batendo o tempo inteiro, mas não é só isso. O PT também cometeu uma série de erros que contribuíram para essa situação.
Existe dentro do PT a expectativa da candidatura do Lula em 2018. Nesta última sexta-feira, a Polícia Federal anunciou o indiciamento do ex-presidente. Como você vê essa situação. Acha que tentarão mesmo prender Lula?
Eles vão tentar porque são burros e não tem noção da dimensão internacional do Lula. Além da importância que tem dentro do país, Lula é muito respeitado internacionalmente. Se prenderem ele, vai virar uma espécie de Mandela e pode acabar ganhando o Prêmio Nobel da Paz. Talvez a reação internacional seja mais forte que a nacional. Vão criar um mártir. Seria muita burrice. Mas aquele juiz lá de Curitiba é muito arrogante e a arrogância cega as pessoas.
Há quem diga que, confirmado o afastamento da Dilma, a Lava Jato estaria se encaminhando para o seu término. Qual sua opinião sobre isso?
A delação da Odebrecht parece que pega todo o sistema político, pega PSDB, PMDB, PP, praticamente todo mundo. Isso criou uma disputa sobre o próprio futuro da Lava Jato. O que me parece é que uma parte dos procuradores do Ministério Público quer seguir em frente, até porque eles estão se sentindo os donos da República. Só que o PMDB não é o PT. O PMDB é profissional, assim como o PSDB. Esses dois partidos não vão ficar na mão dos procuradores. Vão fazer alguma coisa, não sei bem o que, para não ficar na mão deles. Vocês já pegaram o PT. Que bom. Agora, tchau! Eu também duvido que o Eduardo Cunha seja cassado. É uma desfaçatez e um cinismo sem limites. Isso é algo que tem me deixado muito irritado nos últimos dias. É tanta coisa junta que você até perde o ânimo.
Ao mesmo tempo, houve erros importantes cometidos. A presidente da República levou praticamente seis meses para escrever uma carta. Eu, juntamente com outros colegas, chegamos a propor, três meses atrás, algumas medidas judiciais para o José Eduardo Cardoso, inclusive questionando a constitucionalidade da lei do impeachment. Nada foi feito até que, nesta última semana, ele manifestou interesse em ingressar com a ação. Agora não dá mais, né? O Supremo não vai dar uma liminar agora.
Na sua avaliação, esse processo de violação de preceitos constitucionais que vem ocorrendo nos últimos meses pode ter uma repercussão mais duradoura e profunda na sociedade?
Sim, pode. As pessoas não estão se dando conta de que o Moro está criando escola. Há juízes e procuradores desprezando garantias individuais em uma série de situações, o que, antes, não tinham coragem de fazer. Isso já está virando uma prática, o que é algo muito complicado. As pessoas ficam contentes que o Marcelo Odebrecht está na cadeia, que o Lula pode ir para a cadeia, etc. Só não percebem que isso vai afetar todo mundo. Todos vão estar a mercê de um poder sem controle e que pode decidir sobre a liberdade de cada um de nós. Um poder que quer assumir o papel de justiceiro, com um Congresso absolutamente torto. Qualquer lei que sai desse Congresso é um desastre. É um negócio incrível. Aprovaram agora essa lei das estatais que, em primeiro lugar, é inócua, pois não serve para nada e, além disso, é mal redigida, com erros técnicos grosseiros e conceitos errados. Todas as leis aprovadas neste Congresso estão saindo assim. Ou seja, temos um poder Legislativo que não legisla e, quando legisla, é melhor que não o faça.
Para você ter uma ideia de como as coisas andam com as nossas garantias individuais, o nosso Código Penal é de 1940 e sofreu uma reforma grande nos anos 80. O modelo é inspirado no código italiano, que era o código do Mussolini. Se olharmos o nosso código hoje e o projeto de novo código penal que está sendo feito no Congresso, Mussolini se torna um grande defensor da liberdade humana. O código inspirado no de Mussolini é mais liberal do que este que o Congresso quer aprovar agora. Está à direita de Mussolini. Eles nem parecem saber o que está fazendo. Agem movidos pelo “clamor popular”. Devia ser proibido fazer leis sob clamor popular.
É possível esperar alguma coisa do STF em termos de um contraponto a esse movimento inspirado no juiz Sérgio Moro e no chamado “clamor popular”?
Não. Nada. O STF só vai aparecer se começarem a surgir no Congresso projetos restritivos em termos de costumes, relacionados ao Estatuto da Família, à homofobia e coisas deste gênero. A bancada evangélica vem tentando aprovar projetos nesta área no Congresso. Não sei se eles têm tanta força assim. Aí o STF pode aparecer e derrubar esse tipo de legislação.
Na tua opinião, o STF, ou parte dele ao menos, desempenha um papel protagonista no golpe?
Com certeza. Parte do STF está envolvida nisso. Não tenho a menor dúvida. Eles jogam direitinho. Não digo todos os ministros, mas alguns deles com certeza estão envolvidos. E o clamor público que, na verdade, é um falso moralismo, e a mídia inibem os demais. Além disso, há um problema comum aos tribunais superiores. Todo mundo no meio jurídico sabe que os tribunais superiores têm problemas relacionados a acessos privilegiados para certas pessoas. Talvez haja um temor de que essas relações sejam expostas.
No ambiente acadêmico do Direito, há hoje uma capacidade de reação ao que vem acontecendo no sistema de justiça do país?
Há uma reação, mas ela é minoritária. O que temos hoje é uma minoria que faz barulho. A maioria não está nem aí. Posso falar pela minha querida faculdade do Largo de São Francisco que está festejando mais um presidente saído de lá. Estão achando o máximo. Há alguns professores tentando fazer alguma coisa. Fizeram um livro sobre o golpe, produziram um abaixo assinado, mas nada muito além disso.
Em resumo, o cenário que vê pela frente para este próximo período parece oscilar entre o pessimismo e o sombrio…
Posso estar enganado, mas não vejo boas perspectivas no horizonte. Pode ser que, uma vez afastada a Dilma e o PT, eles comecem a brigar entre si. Acho que esse bloco não é monolítico nem coeso, mas sim uma aliança conjuntural de oportunistas, que podem começar a brigar entre si. Aí pode haver uma oportunidade de as coisas melhorarem um pouco ou de ao menos não conseguirem aprovar determinadas propostas mais absurdas como essa de limite do gasto público. Essa proposta suspende a Constituição por 20 anos. É uma lei de exceção, como a lei que os nazistas fizeram em 1933. Eles acabaram com a Constituição de Weimar assim.
Na tua opinião, nós já estamos vivendo um estado de exceção?
Sim, desde a votação na Câmara dos Deputados. Não é uma ditadura tradicional, mas é um regime de exceção sim, que vem tomando uma série de medidas para subverter a própria ordem constitucional. Como é possível ter um governo que chegue ao poder por meio de uma conspiração e que fique subvertendo a Constituição com a desculpa do equilíbrio fiscal. Onde está escrito na Constituição que pagar mais juros para banco vem na frente de garantir educação e saúde? Isso está escrito em algum lugar. Na minha não está. Pode ser que a minha edição seja antiga. Estamos vivendo sob um obscurantismo. Esse golpe parlamentar é um retrocesso gigantesco em nossa história que levará muito tempo para ser corrigido e gerará determinadas mágoas em setores da sociedade que levarão décadas para resolver.
Toda aquela ideia de conciliação foi por terra, para não falar da desvalorização da democracia. Você pode ganhar a eleição, mas se você não tem o presidente da Câmara, não governa. O que garante que determinados grupos sociais seguirão defendendo a participação em eleições e a democracia se as regras do jogo são subvertidas na cara dura, sem qualquer disfarce, ao vivo na televisão, na frente de todo mundo. Os militares tinham mais prurido.
Recentemente ocorreu, em Goiás, a prisão de militantes do MST que foram acusados de integrar uma “organização criminosa”. Parece que esse tipo de “argumento jurídico” vem crescendo no Judiciário e no Ministério Público. Qual a dimensão disso?
Estão se sentindo acima do bem e do mal. Tem coisas que as pessoas não sabem e precisam saber. O Judiciário brasileiro é o mais caro do mundo. O Brasil gasta 1,3% do PIB com o Poder Judiciário. Os Estados Unidos, um país de tamanho parecido com o nosso, gasta algo em torno de 0,3% do PIB com o Judiciário. Nenhum país do mundo gasta o que nós gastamos com o Judiciário. Não são todos, mas há juízes se aposentando com 80 ou 100 mil reais. Querem fazer Reforma da Previdência? Por que não começam com a dos juízes e dos promotores? Claro que não, vão fazer reforma na Previdência de quem ganha menos de 5 mil reais, algo em torno de 80% do funcionalismo. O Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul não estão pagando o salário do funcionalismo, ou estão pagando parcelado, mas estão pagando direitinho para juízes e promotores, né?
Isso para não falar do fato de que a Lava Jato está destruindo a nossa economia. O setor de engenharia foi para o buraco e a indústria naval foi destruída. Ainda não conseguiram destruir a construção civil, mas estão tentando. Estão agindo como uma casta que acha que o país é deles. Parecem querer que o Brasil volte a ser uma fazenda gigante e uma mina gigante. E, para trabalhar numa mina, você não precisa ter grande formação. É só saber capinar e cavar buraco mesmo. Não precisa de universidade, não precisa de cultura nem de educação.
Na sua avaliação, há uma ação articulada entre o grupo do juiz Sergio Moro e outros setores do Judiciário, Ministério Público e Polícia Federal que trabalham em torno da Lava Jato para atingir determinados objetivos políticos?
Não sei se chega a tanto, mas que eles têm articulação isso tem. Até porque o que eles fazem só é possível com a anuência dos órgãos superiores. O STF e o STJ têm 30 anos de jurisprudência de garantia dos direitos individuais. Sempre foram cortes garantistas. De repente, do dia para a noite, eles mudaram de posição? Agora é possível prender depois da segunda instância e restringir uma série de liberdades? Como foi essa mudança? Quem decidiu? É medo da mídia e do clamor popular? É mudança do perfil da corte? Estamos falando de 30 anos de jurisprudência, até mais. Mudaram assim do nada e ninguém sabe explicar por quê. É uma demanda da sociedade? Se depender da demanda da sociedade, todo mundo vai ser linchado em praça pública. Se é isso que querem, tudo bem, mas vai valer para todo mundo. Valerá para juiz também ser linchado no meio da rua. É isso que estão querendo?
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“Se depender da sociedade, todo mundo será linchado em praça pública. Vai valer para juiz também” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU