Por: Jonas | 20 Julho 2016
Quando a Turquia começou a desempenhar o papel de aliada dos Estados Unidos na Síria, com os envios de armas aos insurgentes e a participação de seu serviço de inteligência, também assumiu o caminho de um Estado falido e sofreu as consequências.
A reportagem é de Robert Fisk, publicada por Página/12, 19-07-2016. A tradução é do Cepat.
Recep Tayyip Erdogan o mereceu. O Exército turco nunca continuaria obedecendo, enquanto o homem que pôde recriar o Império Otomano tornou seus vizinhos inimigos e seu país em um escárnio de si mesmo. Seria um grave erro supor duas coisas: que o comprimir um golpe militar é uma questão momentânea e que, depois, o Exército turco permanecerá obediente ao seu sultão; e considerar que ao menos 161 mortos e mais de 2.839 detidos é algo isolado do colapso dos estados-nação do Oriente Médio.
Os eventos do final de semana em Istambul e Ancara estão intimamente relacionados com a ruptura das fronteiras e a credibilidade do Estado – a suposição que as nações do Oriente Médio possuem estáveis instituições e fronteiras – infligiu grandes feridas em todo o Iraque, Síria, Egito e demais países do mundo árabe. A instabilidade é agora tão contagiante como a corrupção na região, especialmente entre seus soberanos e ditadores, uma classe de autocratas dos quais Erdogan foi um membro desde que mudou a constituição em seu próprio benefício e reiniciou seu malvado conflito com os curdos.
No mais, resta dizer que a primeira reação de Washington foi instrutiva. Os turcos devem apoiar seu “governo eleito democraticamente”. A parte “democracia” foi muito mais difícil de tragar – ainda que mais doloroso de recordar, no entanto, foi a própria reação do governo à derrubada do governo de Mohamed Morsi, “eleito democraticamente” no Egito, em 2013 – quando Washington definitivamente não pediu às pessoas do Egito que apoiassem Morsi e, rapidamente, deu o seu apoio ao golpe militar, muito mais sangrento que a tentativa de golpe na Turquia. Se o Exército turco tivesse tido êxito, certamente Erdogan teria sido tratado com tanto desprezo como o infeliz Morsi.
Mas, o que se pode esperar quando as nações ocidentais preferem a estabilidade à liberdade e dignidade? É por isso que estão dispostos a aceitar as tropas do Irã e ao leal miliciano iraquiano se unindo na luta contra o Estado Islâmico, assim como os pobres 700 sunitas que “desapareceram” após a reconquista de Faluja. E é por isso que o uso de “Assad deve sair” foi silenciosamente abandonado. Agora que Bashar al-Assad sobreviveu ao período de governo do primeiro ministro, David Cameron – e quase com certeza durará mais tempo que a presidência de Obama –, o regime em Damasco verá com olhos curiosos os acontecimentos na Turquia, nesta semana.
As potências vitoriosas na Primeira Guerra Mundial destruíram o Império Otomano, que foi um dos propósitos do conflito de 1914-18, depois que a Sublime Porte (Porta Sublime) cometeu o erro fatal de se alinhar com a Alemanha e as ruínas do império, em seguida, foram cortadas em pedaços pelos aliados e entregues a granel a reis brutais, ditadores e coronéis corruptos. Erdogan e o grosso do Exército que decidiu mantê-lo no poder, no momento, se encaixam nesta mesma matriz de Estados fraturados.
Os sinais de alerta estavam lá para que fossem vistos por Erdogan e o Ocidente, apenas tivessem se recordado da experiência do Paquistão. Descaradamente utilizado pelos norte-americanos para enviar mísseis, armas e dinheiro em efetivo aos Mujahidin que lutavam contra os russos, o Paquistão – outro “pedacinho” fatiado de um império (a Índia) – se tornou um estado falido, com suas cidades rasgadas com bombas massivas, seu próprio exército corrupto e serviços de inteligência cooperando com os inimigos da Rússia – incluído o Talibã – e depois infiltrado pelos islamistas que eventualmente ameaçam o próprio Estado.
Quando a Turquia começou a desempenhar o mesmo papel para os Estados Unidos na Síria, enviando armas aos insurgentes, seu corrupto serviço de inteligência cooperando com os islamistas, lutando contra o poder do Estado na Síria, também tomou o caminho de um Estado falido, com suas cidades rasgadas pelas bombas massivas e o campo infiltrado pelos islamistas. A única diferença é que a Turquia também relançou uma guerra contra os curdos no sudeste do país, onde partes de Diarbaquir estão agora devastadas como as grandes regiões de Homs e Alepo. Erdogan se equivocou ao medir os riscos do caminho que escolheu para seu país. Uma coisa é se desculpar com Putin e recompor suas relações com Benjamin Netanyahu; mas quando já não pode confiar em seu Exército, há assuntos mais sérios aos quais se concentrar.
Mais ou menos 2.000 detenções são um duro golpe para Erdogan, na realidade, maior que o golpe que o Exército planejava para ele. Devem ser só alguns poucos dos milhares de homens dos corpos de oficiais turcos que acreditam que o sultão de Istambul está destruindo seu país. Não é só questão de reconhecer o grau de horror que podem ter sentido a OTAN e a União Europeia diante destes eventos. A verdadeira questão será o grau em que o êxito (momentâneo) de Erdogan o encorajará para empreender mais julgamentos, encarcerar mais jornalistas, fechar mais jornais, matar mais curdos e, para o caso, continuar negando o genocídio armênio de 1915.
Às vezes, para os estrangeiros é difícil entender o grau de temor e desgosto quase racista com o qual os turcos observam qualquer forma de militância curda. Os Estados Unidos, Rússia e Europa – Ocidente em geral – privaram de conteúdo a palavra terrorista, a tal ponto que não conseguimos compreender por que os turcos chamam os curdos de terroristas e os veem como um perigo para a simples existência do Estado turco. É assim a maneira como viam os armênios na Primeira Guerra Mundial.
Mustafa Kemal Atatürk era talvez um bom autocrata secular, admirado inclusive por Adolfo Hitler, mas sua luta para unificar a Turquia foi causada pelas mesmas facções que sempre assediaram a pátria turca, junto com as suspeitas obscuras (e racionais) de um complô das potências ocidentais contra o Estado.
Em resumo, neste final de semana, ocorreram acontecimentos mais dramáticos do que pode parecer em uma simples visão. Desde a fronteira da União Europeia, através da Turquia, Síria, Iraque e vastas partes da península do Sinai no Egito e até a Líbia e – nos atreveremos a mencionar isto, após Nice? – Tunísia, existe agora um rastro de anarquia e estados falidos. Mark Sykes e François Georges-Picot iniciaram o desmembramento do império otomano – com a ajuda de Arthur Balfour -, mas este persiste até os nossos dias.
Neste sombrio marco histórico, devemos ver o golpe que não aconteceu em Ancara. É preciso aguardar outro nos meses ou anos a seguir.
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Turquia. Um sombrio marco para um golpe falido - Instituto Humanitas Unisinos - IHU