Por: André | 17 Junho 2016
Aminata Traoré (foto) é uma ensaísta malinense que luta pela autonomia dos países e dos povos da África, sempre dominados e saqueados pelas potências ocidentais. Ministra de Cultura e Turismo do Mali entre 1997 e 2000, a incansável militante prossegue sua luta contra o liberalismo no lugar em questão e promoveu numerosos projetos com as mulheres e os jovens em Bamako. Sua recente candidatura ao cargo de secretária-geral da ONU é uma boa notícia para todos os partidários da paz.
Fonte: http://bit.ly/1ttOoIf |
A entrevista é de Alex Anfruns e Elodie Descamps e publicada por Investig’Action, 07-06-2016, e reproduzida por Rebelión, 16-06-2016. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Como analisa o fenômeno do terrorismo que é galopante na África e em todo o mundo?
Em primeiro lugar, devemos analisar rigorosamente as causas: por que agora? E por que em todas as partes do mundo? Precisamente porque a injustiça, o desespero e o desprezo se globalizaram. Na década de 1990, diante das consequências das políticas de ajuste estrutural, soou o alarme que assinalava que “cada ano, na maioria de nossos países, há entre 100 mil e 200 mil jovens diplomados que chegam ao mercado de trabalho e o modelo econômico não cria empregos”. Pelo contrário, eliminam-se empregos. O que pode ser feito? Muitas vezes, os jovens só podem escolher entre o exílio e o fuzil. Estes dois fenômenos simultâneos e contemporâneos estão intrinsecamente vinculados ao lamentável fracasso de um modelo de desenvolvimento econômico que o Ocidente não quer questionar.
Para muitos meios de comunicação e analistas o jihadismo emanaria direta e principalmente da religião. Considera essa explicação suficiente?
Se assim fosse, por que esse pensamento do radicalismo religioso não surgiu bem antes? Foi a partir das décadas de 1980 e 1990 que muitas pessoas abandonadas por conta das políticas neoliberais foram buscar nas mesquitas e no Corão respostas para o desemprego e a exclusão. Se não tivesse sido assim, no Iraque os generais de Saddam Hussein não teriam encontrado islamistas em Abu Ghraib para assentar as bases do Estado Islâmico. Como chegaram a penetrar nos subúrbios e nos meios pobres? Por que fascinam também a “classe média”? Há um vazio ideológico abissal que se recusa a admiti-lo.
Se hoje os povos dispusessem de mais justiça, mais empregos e mais respeito poderiam garantir a paz e a segurança, mas isso implicaria que os dominantes deveriam renunciar a uma parte dos seus benefícios e privilégios. Não podem. Isso seria cometer o ‘harakiri’, dizendo: “Nós erramos de modelo. Nós não criamos empregos e o nosso modelo não responde às demandas sociais”. Quem se beneficia do crime deste crescimento, se não são as multinacionais? Mas elas também se dão um tiro no pé quando não podem mais ir aos lugares onde exploram os recursos naturais. Os jihadistas, que estão conscientes dessa questão, visam os mesmos recursos, em particular o petróleo.
Por fazer ouvido mouco e colocar em marcha oposições que não são verdadeiros contra-poderes capazes e dispostos a assumir as questões importantes, nos encontramos presos em todos os lugares a questões institucionais e políticas de substituição dos atores sem mudança de paradigma. Ora, para desfrutar hoje da paz, uma paz autêntica e estável, e da segurança humana – que eu não confundo com “securitização” –, devemos introduzir no debate os assuntos mineiros, petroleiros e outros. Garantir a segurança humana aos indivíduos, através do emprego, da saúde, da educação e de outros serviços sociais básicos considerados gastos improdutivos.
Qual é o papel da União Africana e quais são seus principais desafios?
A África tem uma necessidade extrema da União Africana, organização que nasceu em 2002 das cinzas da Organização para a Unidade Africana, criada há 53 anos. Assim como a União Europeia, que lhe serve de modelo, a União Africana suscita muitas interrogações nos povos, que não a veem onde deveria estar, ou seja, perto deles. Seus detratores dizem que não passa de um clube dos chefes de Estado. É uma constatação esmagadora e preocupante porque sabemos que os pais fundadores da instituição quiseram que fosse o instrumento da descolonização. Entretanto, esta não apenas não acabou, como o continente está em vias de uma “recolonização” no contexto da globalização capitalista. Os desafios estão à altura da violência multiforme desse sistema.
Para desempenhar plenamente seu papel na defesa dos interesses dos povos da África é necessário que a União Africana entenda a natureza da globalização e das relações de poder. No entanto, ela sofre os defeitos originais da divisão, da extroversão e da dependência. Nós temos, com frequência, a tendência de esquecer que a Organização da Unidade Africana, da qual procede a União Africana, nasceu da dor das discórdias entre dois grupos que tinham uma visão e uma perspectiva opostas sobre o futuro do continente.
Foram necessárias muitas reuniões e longas negociações para que, no dia 25 de maio de 1963, 32 Estados que recém se tornaram independentes, criassem a Organização para a Unidade Africana em Adis Abeba, Etiópia, sobre a base de um acordo mínimo. A redação de sua carta foi confiada ao presidente malinense Modibo Keita, um dos líderes do grupo dos progressistas de Casablanca, e ao presidente do Togo, Sylvius Olympio, do campo dos “antifederacionistas”. A visão do grupo da Monróvia acabou prevalecendo sobre os progressistas do grupo de Casablanca.
Que avaliação podemos fazer das suas atividades?
Afora a gestão da descolonização, a organização pan-africana não empreendeu nenhum outro projeto nem nenhuma estratégia de desenvolvimento autônomo e emancipador. As décadas de 1980 e 1990 estiveram marcadas pelas orientações traçadas por Elliot Berg, com as quais o Banco Mundial substituiu as perspectivas africanas de desenvolvimento do Plano de Ação de Lagos, pacientemente elaborado pelos Estados africanos e adotado em 1980 na capital da Nigéria. Estas orientações agravaram as dificuldades do continente com o congelamento dos salários e cortes nos orçamentos dos serviços sociais básicos: educação, saúde, fornecimento de água potável e saneamento.
Conscientes do enorme custo social e político dos Programas de Ajuste Estrutural, os dirigentes africanos propuseram diversas orientações: o presidente Thabo Mbeki (África do Sul) propôs o Plano de Ação do Milênio, elaborado conjuntamente com Olusegun Obasanjo (Nigéria) e Abdelaziz Buteflika (Argélia), assim como o Plano Ômega de Abdoulaye Wade (Senegal). Sua fusão deu lugar à Nova Iniciativa Africana, que depois se transformou na Nova Associação para o Desenvolvimento da África e no Mecanismo Africano de Avaliação pelos Pares em 2003. O Parlamento Pan-africano foi instituído no dia 18 de março de 2004 com sede em Midrand (África do Sul).
A União Africana felicita-se pelas políticas e estratégias macro-econômicas “saudáveis” que permitiram a numerosos países membros da organização registrar um crescimento sem precedentes, assim como uma significativa redução dos conflitos, o fortalecimento da paz e a estabilidade e o progresso em matéria de governança democrática. Para o século XXI, conta com o surgimento de uma classe média crescente e uma mudança na estrutura financeira internacional, com o auge dos BRICS e a melhoria dos fluxos de investimentos diretos.
Este significativo aumento do crescimento anda de mãos dadas com uma melhoria das condições de vida das populações?
Há conquistas materiais palpáveis, mas pouquíssima melhoria nas condições de vida das populações. Quanto mais se avança mais cresce o desemprego. É neste contexto que vai surgindo o que na Europa chamam de “crise migratória”, que não começou em 2015. A noção de “emigrante econômico”, que é diferente de “refugiado”, significa que “há trabalho nos países de origem, onde bastaria, segundo os tecnocratas, investir mais e lutar contra a corrupção”. Mas não há trabalho e a corrupção é inerente ao sistema.
Acredita que o processo de democratização ficou na superfície
Eu tenho problemas para me encontrar em um cenário político marcado por entre 150 e 250 partidos. A Europa sabe perfeitamente que não pode haver democracia com semelhante fragmentação do campo eleitoral sem um autêntico conteúdo ideológico. Como sair desta “democracia” teleguiada, financiada e supervisionada de perto, segundo os países e os assuntos, por Bruxelas, Paris ou Washington?
Precisamente com respeito a isso, a China está substituindo progressivamente o Ocidente na economia africana. Devemos admitir os chineses como os novos “impostores”, parafraseando o título de um dos seus últimos livros?
Historicamente, a África não tem os mesmos tipos de relações com a China que com o Ocidente. A China não é arrogante. No imaginário dos africanos é um mal menor porque sabemos que os chineses estão aí porque têm uma grande necessidade de matérias-primas. Mas esta relação também pode ser uma armadilha se nossos Estados permanecerem na lógica de regiões exportadoras de matérias-primas em vez de aproveitar a oportunidade para assentar as bases da industrialização do continente. Com outras palavras, se os Estados africanos não desenvolverem seu próprio setor privado não estarão em condições de emancipar-se das relações de dependência.
A própria noção de emergência é problemática. Ela se traduz em um crescimento que não beneficia os povos. Nos países chamados “emergentes”, a cesta básica não registra nenhuma melhoria. A China emergente é fonte de inspiração para os países africanos, que sabem que um continente desintegrado e dividido é presa fácil no contexto atual de “selvageria” do mundo. A China não se libertou sem tom nem som. Ela progrediu no seu ritmo e em função de seus interesses.
Quais são, do seu ponto de vista, os desafios da sociedade civil e dos intelectuais africanos do século XXI?
Devemos avançar no trabalho de desconstrução das ideias recebidas e de descontaminação das mentes sobre o crescimento, a emergência e outras histórias absurdas. Se o sistema funcionasse tão bem, por que a Europa se encontra em uma crise existencial que a está deixando transtornada? Na minha opinião, as falsas soluções revelaram seus limites à luz das nossas experiências, de nossas vivências, de nossas aspirações. Infelizmente, grande parte da chamada “sociedade civil” não se arrisca a levantar as questões que deixam os “doadores” zangados. Localmente, não podem fazer nada sem a ajuda da “comunidade internacional”.
No entanto, a África teve grandes intelectuais, pensadores como Julius Nyerere e suas ideias motoras a favor do direito ao desenvolvimento. Não podemos “contar com as nossas próprias forças”?
Evidentemente, a África não teve apenas corruptos e ditadores, como querem nos fazer crer seus detratores. Muitas pessoas que poderiam ter feito e quiseram fazer coisas foram impedidas. O assassinato de Patrice Lumumba, em 1961, foi o ato fundador do caos político congolês. Os assassinatos políticos ao longo dos anos 1960 e 1970 traumatizaram e desencorajaram claramente os dirigentes que queriam apoiar os seus povos. Mais recentemente, existe o caso de Laurent Gbagbo, que é réu em um julgamento na Corte Penal Internacional e cujo erro foi tocar em questões que tem o potencial de irritar. E o que é verdade para os dirigentes também vale em grande medida para a sociedade civil.
Hoje, quando falamos da sociedade civil, a que muitas vezes é solicitada é formatada, prudente e até mesmo tímida. Atualmente, um sentimento de revolta interior e uma forma de humilhação aparecem em relação à segunda recolonização do continente que não deixa os africanos indiferentes. Devemos capitalizar esses esforços de questionamento para desenvolver a nossa capacidade de proposição, de antecipação e de ações transformadoras de nossas economias e de nossas sociedades no sentido do interesse comum.
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“A injustiça, o desespero e o desprezo foram globalizados”. Entrevista com Aminata Traoré - Instituto Humanitas Unisinos - IHU