16 Junho 2016
Em uma recente homilia, o Papa Francisco explicou, com detalhes inovadores, uma figura fundamental para os fiéis, mas que tem destaque também para os não crentes, o "perfeito desconhecido" de São Paulo.
Neste editorial, Eugenio Scalfari, jornalista e fundador do jornal italiano La Repubblica, 14-06-2016, reflete sobre por que os seres humanos possuem a faculdade de pensamento, de fantasia e de criatividade.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
"Um perfeito desconhecido ou até um prisioneiro de luxo", assim disse o Papa Francisco durante a homilia proferida durante a missa na capela de Santa Marta. A missa era dedicada a Santa Luísa de Marillac, beatificada no dia 9 de maio de 1920. A santa foi a fundadora das Irmãs de Vicente de Paulo, destinadas principalmente a ajudar os fracos e os doentes nos hospitais e em outros lugais de recuperação. Acho que muitos já as viram trabalhando com o seu véu branca engomado que as distinguia das outras ordens também dedicadas aos cuidados hospitalares. No entanto, se a capacidade de afeto e de cuidado é necessária às freiras, as de São Vicente têm uma experiência e uma capacidade excepcionais, que Francisco, neste caso de reevocação da sua fundadora, quis recordar e reconhecer.
No entanto, o centro da homilia não foi esse, mas aquele perfeito "desconhecido" ao qual o papa havia feito referência no início. Quem é ele? Faz parte do nosso mundo? Ou apenas do mundo dos fiéis? O tema é fundamental para uns e também para os outros, e é o Espírito Santo, que faz parte do mistério trinitário.
Aquele que, por primeiro, falou a respeito foi o 13º apóstolo, Paulo de Tarso, que, em uma carta à comunidade de Éfeso, fez uma referência precisamente a essa terceira pessoa trinitária. Antes disso, praticamente, nunca se tinha falado a respeito; os apóstolos tinham Deus como Pai, e Jesus como Filho.
Paulo de Tarso nunca conheceu Jesus, não esteve entre os seus 12 apóstolos, mas, como tal, ele disse a si mesmo, e os outros o disseram. Ele nunca tinha conhecido Jesus. Em uma de suas viagens de comércio, caiu do cavalo e desmaiou e, durante o desmaio, enquanto lentamente voltava a si, viu uma imagem fascinante de todos os pontos de vista que a sua mente ainda não totalmente recuperada interpretou como a imagem de Jesus. De fato, ele foi o 13º apóstolo e, substancialmente, foi o verdadeiro fundador da religião cristã.
A propósito do Espírito Santo, precisamente, encontramos uma menção nos Atos dos Apóstolos, onde estão reunidas todas as memórias, as cartas, as comunicações entre uns e outros. Paulo escreveu muitas cartas às várias comunidades cristãs que, pouco a pouco, se formaram. Não parece que ele deixou outros livros, e muito menos evangelhos, mas aquelas cartas foram quase sempre fundamentais para a construção da religião e, na realidade, constituíram o seu corpo doutrinal. Sobre o Espírito Santo, justamente, ele fala pela primeira vez na sua Carta aos Efésios.
O Papa Francisco se refere a ela na sua homilia a que nos referimos. Eis o trecho que merece citação (Atos dos Apóstolos 19, 1-8):
"Paulo encontra em Éfeso alguns discípulos que acreditavam em Jesus e lhes faz esta pergunta: 'Vocês receberam o Espírito Santo quando abraçaram a fé?'. E eles, depois de terem se olhado um pouco admirados, lhe responderam: 'Nem sequer ouvimos falar que existe um Espírito Santo'. Portanto, eram discípulos bons, mas nunca tinham ouvido aquele nome. Paulo retoma logo o diálogo, perguntando qual batismo eles tinham recebido. E os discípulos: 'O de João'. Assim, Paulo lhes explica que aquele era um batismo de penitência, de preparação. Ouvindo Paulo, os discípulos de Éfeso se deixaram batizar no nome do Senhor Jesus. Lê-se nos Atos: 'Logo que Paulo lhes impôs as mãos, o Espírito Santo desceu sobre eles, e começaram a falar em línguas e a profetizar'. Portanto, é um caminho: o caminho de conversão, mas faltava o batismo e, depois, a imposição das mãos pra que o Espírito Santo viesse".
O Papa Francisco se deteve, como vimos, muito nessa conversa entre Paulo e os efésios relatado nos Atos. Mas, depois, ele continua comentando: "Se nós perguntássemos a muitas pessoas boas: 'Quem é o Espírito Santo para você? E o que ele faz e onde está?', a única resposta será que é a terceira pessoa da Trindade. Exatamente como aprenderam na catequese. Certamente, elas sabem que o Pai criou o mundo, porque a criação é atribuída ao Pai. E elas também sabem que o Filho é Jesus que nos redimiu e deu a vida por todos nós. Portanto, no que diz respeito ao Espírito Santo, elas sabem apenas que é a terceira pessoa da Trindade, mas e se perguntarmos o que ele faz? Elas respondem que ele está lá. E assim param os nossos cristãos".
Segue a explicação de Francisco: "O Espírito Santo é aquele que move a Igreja, é aquele que trabalha na Igreja, nos nossos corações, é aquele que faz de cada cristão uma pessoa diferente da outra, mas, de todos juntos, faz a unidade. Portanto, o Espírito Santo é aquele que leva adiante, escancara as portas e envia você a dar testemunho de Jesus".
Esse é o "perfeito desconhecido" do qual, na realidade, depois da leitura de Paulo aos Efésios, quase ninguém mais falou em termos doutrinais. Francisco, como em muitas outras ocasiões, rompeu o silêncio e forneceu matéria nova para a sua Igreja, que tem a missão de aculturar do modo justo os missionários e aqueles que seguirão a sua pregação.
Nesse ponto, lemos no jornal L'Osservatore Romano do dia 10 de maio passado, o Papa Francisco alertou contra um perigo: quando não estamos à altura dessa missão do Espírito Santo e não o recebemos assim, acabamos reduzindo a fé a uma moral, a uma ética. E pensamos que cumprir todos os mandamentos é suficiente, mas nada mais. E assim dizemos a nós mesmos: isso pode ser feito, isto não pode ser feito, até aqui sim, até lá não, caindo nas estatísticas e em uma moral fria. Mas, lembrou o papa, a vida cristã não é uma ética, é um encontro com Jesus Cristo, e quem nos leva a esse encontro é justamente o Espírito Santo.
Esse é o "perfeito desconhecido" que Francisco nos faz conhecer muito bem. Paulo abriu a questão, mas Francesco, depois de 2.000 anos, leva-a muito mais para a frente.
Esse tema interessa muito aos cristãos, mas interessa muito também aos não crentes. Vocês provavelmente vão se perguntar por que e, na segunda parte deste artigo, tentaremos explicar.
* * *
Todas as pessoas que pertencem à nossa espécie têm um "eu" dentro do seu próprio "si", e todos também têm um "nós". Somos uma espécie sociável que busca os outros porque precisa deles.
Os animais, dos quais a nossa espécie deriva, também são sociáveis dos modos mais variados e difusos. O "nós" animalesco está estreitamente conectado com o sexo e com a procriação. Eles não têm, ao contrário, o "eu", porque a sua mente (nos limites em que se pode falar de mente) não é reflexiva, não se vê vivendo, não se vê envelhecendo. O "nós" faz parte das necessidades primárias, o "eu" não existe, exceto para alguns animais nobres e domesticáveis: o cavalo, o cachorro, inúmeras qualidades de macacos, os gatos; e pouquíssimos outros. Estes, se saírem da selvageria, aceitam ou até mesmo buscam um líder, um ponto vivo de referência do qual seguem as palavras de ordem e até comunicam sentimentos de afeto e de apego quase sempre correspondidos.
Mas voltemos à nossa espécie, que tem como sinais de distinção a capacidade de se ver vivendo, a vontade consciente, a memória daquilo que aconteceu com ela, com a sua família e até com a própria espécie como história documentada nos vários modos com os quais a ciência capta os traços do passado.
A ciência estuda também o universo em que vivemos, as formas de energia que o permeiam e nos permeiam; em suma, o quadro onde a nossa vida também se desenvolve e as forças astrais que a dominam.
A nossa espécie tem um espírito próprio. Defini-lo não é fácil. O espírito é um elemento imaterial? Assim ele é concebido por um conhecimento elementar, mas está errado. Não o vemos com os olhos, não o escutamos com o ouvido, não o percebemos com o tato. Ele escapa dos cinco sentidos dos quais o nosso corpo dispõe, mas é uma energia, e a energia não é imaterial, ela é medida, desenvolve campos magnéticos, ondas que a transportam, leis da gravidade que determinam a atração recíproca dos corpos astrais, velocidades cósmicas do micro e do macro, e milhares de outras coisas. Tudo isso lhes parece imaterial? Talvez essa palavra é mal usada. Talvez, em todo o existente, naquilo que nós definimos como cosmos, não há nada de imaterial, exceto...
Exceto os pensamentos, as fantasias, a criatividade. O Deus das religiões, aquele que é imaterial porque deriva de um pensamento criativo nosso. É uma invenção, uma fábula que contamos a nós mesmos, e, se não a contássemos, aquele sujeito que chamamos de Deus não existiria.
Eis, portanto, o que é o espírito: a nossa capacidade de inventar pensando, de criar pensando, de nos contar pensando.
Denis Diderot disse uma frase que se tornou célebre em um dos seus diálogos. Chama-se Le Rêve de d'Alembert. Ele estava sentado em um banco nos jardins do Palais Royal e pensava as coisas mais estranhas que lhe vinham à mente e, depois, iam embora. No instante seguinte, outros pensamentos vinham a ele e, depois, desapareciam. E, enquanto esse giro de pensamentos frequentava a sua mente, os seus olhos olhavam para o fundo do jardim, onde algumas "meninas da vida" atraíam os clientes e os levavam para fazer amor em algumas pensões existentes de propósito sob os pórticos daquele jardim. Depois de pouco tempo, saíam e atraíam outros clientes.
Como os meus pensamentos, diz Diderot nesse ponto, e aqui está a célebre frase: "Mes pensées, ce sont mes catins". Os meus pensamentos são as minhas putas. Eu já citei várias vezes essa frase, porque me parece uma definição perfeita do espírito. Mes pensées, ce sont mes catins. Imaterial e materialíssimo ao mesmo tempo. O espírito é assim, e o seu modo de ser não foi definido pela mente.
A mente é imaterial e materialíssima, porque é o cérebro que a cria. Cria-a e modifica-a continuamente. Um órgão do corpo em contato com todos os outros órgãos, substâncias que o modificam, realidade que muda, e, com ela, a mente muda. Essa é a nossa espécie, quando o animal se tornou bípede e ergueu a cabeça para o céu. E viu a si mesmo vivendo.
Portanto, o espírito existe, nós o temos. Ele é condicionado pela mutabilidade do corpo, mas, por sua vez, o condiciona. E se pergunta se, depois da morte, existe um além. Às vezes, ele diz que não, às vezes ele diz que sim e, nesse caso, tenta imaginar o que é esse além. Assim nasceu Deus, que inevitavelmente, vai morrer quando a nossa espécie, assim como todas as coisas que nascem, desaparecer.
* * *
Mas se a mente não se colocar absolutamente o problema do além, Deus, por essa mente, não é sequer imaginado, nem mesmo inventado. A morte, a irmã morte, essa sim, todos nós sabemos que virá e, no momento decisivo, tocará o nosso ombro, e tudo estará acabado. Se todas as mentes pensassem desse modo, Deus não existiria para ninguém.
Mas outra pergunta se coloca: quem criou o Universo em que vivemos? Uma resposta científica explica como ele é feito, mas não como nasceu e como vai morrer. Pode-se pensar que ele é eterno? A palavra eternidade evoca a categoria do tempo.
Eis outra pergunta: o que é o tempo? A nossa espécie pensa o tempo e o aplica a todas as entidades viventes e até mesmo às não viventes. O tempo é Deus? É uma hipótese que a mente é capaz de formular. Os poetas o fundamentaram e o fizeram se tornar um mito.
Os mitos são muitos e nos ajudam a viver. Um é o amor, representado por Eros, senhor dos desejos. O outro é o tempo pensado pela mente. As Parcas tecem a vida com a tarefa de cortar o fio daquele tecido. As Parcas, portanto, são aquelas que nós chamamos de destino. Ou de acaso. Parecem opostas essas duas palavras, mas, examinando-as com atenção, são iguais, expressam o mesmo conceito que a cultura clássica chamava de Destino, a cuja lei deviam obedecer não apenas os homens, mas até mesmo os Deuses. Portanto, o tempo e o destino. Quem os criou? Nós, nós os criamos. E, portanto, somos nós os criadores da nossa vida e das suas leis. Cada espécie tem as suas próprias, mas só a nossa pensa em nós mesmos e também nos outros.
Esse é o espírito, e, talvez, os nossos antepassados também deviam senti-lo, como fez Paulo de Tarso quando interrogou os cristãos de Éfeso. O seu Espírito Santo também inventava a vida do modo como o 13º apóstolo a inventou.
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Espírito Santo, o "perfeito desconhecido" de São Paulo, e a invenção da mente. Artigo de Eugenio Scalfari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU