02 Junho 2016
Retrospecto histórico da violência machista revela: cultura da mulher como objeto vem do escravismo e é alimentada até hoje por elites que jamais saíram da Casa Grande. O artigo é de Inês Castilho, jornalista, publicado por Outras Palavras, 01-06-2016.
Eis o artigo.
A cada 11 minutos uma mulher ou menina é estuprada nalgum lugar do Brasil, por um ou mais homens. Numa cidadezinha do Piauí ou na maior metrópole do país. Em casa ou na rua. Com saia curta, calça comprida ou roupa de mãe de santo. Uma ínfima parte desses crimes chega ao nosso conhecimento, como revela pesquisa do Ipea.
86% das mulheres brasileiras sofreram algum tipo de assédio em suas cidades, com atos indesejados, ameaçadores e agressivos praticados por homens com abuso verbal, físico, sexual ou emocional, conforme pesquisa da ActionAid.
A cada 4 minutos uma mulher dá entrada no SUS por ter sofrido violência física. A cada dia 13 mulheres são assassinadas no Brasil. Uma a cada 1 hora e 50min. As mulheres negras são as maiores vítimas.
Não se trata de homens anormais. São homens criados “para rir e se orgulhar de terem uma arma entre as pernas, uma arma nos olhos, na língua, nas mãos”, diz a escritora Micheliny Verunschk. Para considerar as mulheres como objeto de desejo sexual, de poder, de escárnio. É a “banalidade do mal” de que fala a filósofa Hannah Arendt.
Se não, vejamos.
Enquanto isso, tenta-se derrubar a lei 12.845/13, que garante às vítimas de estupro atendimento hospitalar, policial e psicológico. Eduardo Cunha (PMDB/RJ) é autor do PL 5069/2013, “complementado” por Evandro Gussi (PV/SP), que altera a lei de atendimento do aborto legal a mulher estuprada no SUS: para a mulher provar que “falou a verdade” sobre o estupro terá de passar por exame de corpo de delito e fazer um boletim de ocorrência. Vários outros PL que retiram direitos humanos das mulheres estão em tramitação na Câmara. E o debate de gênero e combate ao machismo é eliminado das diretrizes do Plano de Educação de vários estados e municípios.
“O estupro coletivo a uma menina de 16 anos veiculado por seus agressores é a triste e real metáfora para o país tomado de assalto pelas forças retrógradas, misóginas e canalhas representada por Temer, Bolsonaro, Feliciano, Malafaia, Alexandre Frota e sua súcia”, reafirma Micheliny Verunschk, numa das inúmeras manifestações de repúdio à cultura do estupro pelo caso da adolescente carioca. Forças que vêm fermentando há décadas no alto de ricos edifícios e nos subterrâneos dos morros, nos presídios infectos e nas plantações do agronegócio em conluio com governantes, deputados, delegados, juristas, mídia corporativa.
Memória
1. Corria a noite de 14 de julho de 1958 em Copacabana, Rio de Janeiro. Aída Jacob Curi tinha 18 anos quando foi levada à força por Ronaldo Castro, 19 anos, e Cássio Murilo, de 17, ao topo do Edifício Rio Nobre, na Avenida Atlântica e foi estuprada por eles, ajudados pelo porteiro Antônio Sousa. Revela a perícia que ela foi torturada e lutou contra os agressores por ao menos trinta minutos, até desmaiar. Morreu ao ser atirada do décimo segundo andar, na tentativa de simular suicídio. O corpo de Aída apresentava escoriações e equimoses. No peito, sinais de profundas unhadas. Arranhões nas coxas, ventre, pescoço, abdômen. Ruptura interna do lábio superior por soco. Tentativas de estrangulamento. Houve três julgamentos. Ao final Ronaldo Castro foi inocentado da acusação de homicídio, e sendo condenado apenas por atentado violento ao pudor e tentativa de estupro. Foi solto depois de cumprir a pena de oito anos e nove meses. Mais tarde se tornaria empresário em seu estado, o Espírito Santo. O porteiro, Antônio Sousa, também inocentado da acusação de homicídio, desapareceu. Já Cássio Murilo, menor de idade na época do crime, foi encaminhado ao Sistema de Assistência ao Menor (SAM), de onde saiu direto para prestar o serviço militar. Os estupradores e assassinos viraram celebridades na época. Tudo que usavam virava moda, dos óculos à jaqueta. O nome de Aída é citado por Rita Lee em “Todas as Mulheres do Mundo“, e por Ângela Rô Rô na canção “Mônica“. (As Mina na História)
2. Araceli Cabrera Crespo tinha 8 anos quando, em 18 de maio de 1973, foi raptada na saída da escola, drogada, estuprada e assassinada por dois rapazes de famílias influentes do Espírito Santo: Paulo Constanteen Helal e Dante Michelini Filho, o Dantinho, acobertados pelo pai, Dante de Brito Michelini. Dias depois, seu corpo foi encontrado carbonizado. Ao contrário da família de Araceli, filha de mãe boliviana e pai espanhol, moradores da periferia de Vitória, os Michelini eram grandes proprietários de terra no estado, e os Helal, ricos comerciantes nos ramos de hotelaria e imobiliário. Eles contrataram doze dos “melhores” advogados de Vitória, que destruíram provas e levantaram suspeitas sobre a mãe da menina. Apesar disso, em 1980 o juiz Hilton Silly sentenciou: 18 anos de reclusão e multa de 18 mil cruzeiros para Paulo Helal e Dantinho; e 5 anos para Dante Michelini. Os acusados recorreram, a sentença foi anulada e, depois de segurar o processo durante 5 anos, o juiz Paulo Copolilo absolveu os acusados por “falta de provas”. O caso, de enorme repercussão, foi tema do livro reportagem Araceli, Meu Amor, de José Louzeiro, segundo o qual houve 14 mortes de possíveis testemunhas e pessoas empenhadas em desvendar o crime. O livro foi censurado pela ditadura. A data do desaparecimento de Araceli, 18 de maio, passou a marcar o Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes.
3. “O fazendeiro G.B., de 80 anos, foi preso em fevereiro de 2011 quando mantinha relações sexuais com X, uma menina de 13 anos, dependente de álcool e drogas, em uma camionete estacionada no meio de um canavial. Outra menina, Y, de 14 anos, já havia masturbado o homem e também se encontrava dentro do veículo. Pelo serviço, X recebeu R$ 50. Y ficou com R$ 20. A ordem de prisão em flagrante foi dada pela Polícia Militar. Conta a jornalista Laura Capriglione:
“Como X era, na ocasião dos fatos, menor de 14 anos, a Justiça de Catanduva (384 km de São Paulo) condenou G.B. a oito anos de prisão em regime fechado por estupro de vulnerável. Mas o fazendeiro ficou apenas 40 dias detido. Recorreu da condenação e o Tribunal de Justiça de São Paulo reverteu a condenação, que virou absolvição.
“Isso, apesar de o artigo 217-A, introduzido no Código Penal pela Lei nº 12.015, de 2009, ser claríssimo ao definir o chamado “estupro de vulnerável” como a conjunção carnal ou a prática de outro ato libidinoso com menor de 14 anos. Pena: reclusão, de 8 a 15 anos. (…)
“Leva a assinatura do relator, desembargador Airton Vieira, o acórdão que absolveu o fazendeiro. Airton Vieira, só para lembrar, foi um dos assessores do ministro Cezar Peluso, do Supremo Tribunal Federal (STF), no caso do “mensalão”. O julgamento do fazendeiro pedófilo teve a participação também dos desembargadores Nuevo Campos e Hermann Herschander.
“A Ponte obteve a íntegra do acórdão de absolvição. Como o caso correu sob segredo de Justiça, para preservar as meninas, não será mencionado nenhum apelido ou nome ou endereço que eventualmente permita identificá-las.
“É bem verdade que se trata de menor de 14 anos, mas entendo ser crível e verossímil, diante do que aconteceu, que o réu tenha se enganado quanto à idade real da vítima X, Afinal, partindo-se do pressuposto de que, no presente caso, a vítima X, à época dos fatos, contava com parcos 13 anos, 11 meses e 25 dias de idade, e, levando-se em consideração que era pessoa que se dedicava ao uso de drogas e ingestão excessiva de bebidas alcoólicas, [e que] já manteve relações sexuais com diversos homens, o que significa não ser ela nenhuma jejuna na prática sexual, é que não se pode presumir que o réu tinha conhecimento real da idade da vítima e que tinha o dolo de manter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos”.
(“As duas faces da justiça”, por Laura Capriglione, em 18 de julho de 2014)
4. Para entender a essência da “cultura do estupro”, expressão que tomou de assalto as redes sociais nos últimos dias, é fundamental conhecer a história de Roger Abdelmassih, afirma o jornalista Rodrigo Haidar. “O arcabouço de proteção erguido em torno do médico, a falta de fiscalização e de ação do Cremesp ao engavetar todas as acusações contra ele e o xadrez da investigação para conseguir provas do cometimento de crimes que, em regra, se resumem à palavra da vítima contra a do acusado, expõem a cruel vulnerabilidade imposta às vítimas e o quanto são precárias as respostas que a sociedade oferece ao problema.
“Desde as primeiras queixas feitas ao Cremesp ainda no início da década de 1990 até ser condenado pela juíza Kenarik Boujikian Felippe a 278 anos de prisão por 48 crimes de variados graus, em novembro de 2010, o médico contou com a conivência de um leque de pessoas e instituições só explicável pela cultura do silêncio em relação aos delitos sexuais, por uma espécie de dúvida permanente que paira sobre a palavra das vítimas.”
História
A cultura da mulher como objeto do homem vem de séculos, e no Brasil é herdeira direta do sistema escravocrata – o que faz da mulher negra a sua principal vítima. “Câmara Cascudo, nosso maior folclorista, creio tenha sido ele, escreveu que a expressão “jogar a negra”, que utilizamos no jogo, por exemplo, tem uma origem perversa: vem dos tempos da escravidão, em que os senhores da fazenda, que ganhassem a terceira partida no baralho, tiram direito à “negra”, isto é, de manter relações sexuais com uma escrava que escolhesse. Em outras palavras, estuprá-la.” afirma o procurador de justiça aposentado Roberto Tardelli, no artigo “A cultura do estupro vem de séculos e precisa ser combatida”.
Olhar para ela de olhos bem abertos é missão inadiável da parcela progressista da sociedade brasileira. Desnaturalizar a desigualdade de gênero e o lugar subalterno reservado às mulheres, em particular às mulheres negras e às mulheres trans. Combater o estigma do feminino onipresente na mídia e na publicidade, nos tribunais, no parlamento, na universidade, nos consultórios, nos transportes, nas casas, nas ruas. Na mente e no coração de muitos homens e de algumas mulheres.
A propósito, pela primeira vez um número significativo de homens levantou a voz contra a cultura do estupro, que lhes confere tantos privilégios e que eles têm tanta dificuldade de reconhecer. Parece claro, finalmente, que essa é a cultura dos homens que tomaram o poder por um golpe, violentando a democracia. Brancos, ricos, heterossexuais e corruptos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Estupro, ato político - Instituto Humanitas Unisinos - IHU