16 Mai 2016
"Como aconteceu com muitas de suas palavras e ações, proferir um tal discurso naquela época não era muito estratégico, conduzindo a críticas generalizadas e interpretações equivocadas. Da mesma forma, as suas detenções posteriores, levaram a muitos meses de prisão", escreve Stephen Zunes, professor, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 09-05-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Stephen Zunes, professor de política e estudos internacionais na Universidade de San Francisco, é professor visitante no Centro Nacional de Estudos sobre Paz e Conflitos da Universidade de Otago, na Nova Zelândia.
Eis o artigo.
O padre jesuíta Daniel Berrigan, falecido no final de abril, não só desafiou a Igreja Católica e os EUA sobre os perigos do militarismo e da necessidade de reafirmar os ensinamentos de Cristo sobre a não violência. Ele desafiou também aqueles que se opõem à guerra a envolverem-se em ação direta para detê-la.
O padre jesuíta Daniel Berrigan, à direita, e o ator Martin Sheen, terceiro a partir da direita, participam do protesto anual à Escola das Américas em 1999 em Fort Benning, na Geórgia, EUA. (CNS/Quirin, The Messenger)
Daniel Berrigan foi um católico devoto em meio à esquerda contrária à guerra que, em grande parte, era laica. Ele opôs-se ao aborto como uma forma de violência enquanto a maior parte de seus colegas no movimento pacifista identificavam-se como “pró-escolha”. Permaneceu sacerdote enquanto muitos dos seus contemporâneos, inclusive o seu irmão Philip, abandaram o sacerdócio para se casar ou em decorrência de disputas doutrinais. Berrigan orientava-se não pela adesão a uma ideologia particular, mas por uma fé profunda em Deus por meio do testemunho não violento de Jesus Cristo.
Ao longo das décadas, rezei com ele, parti o pão com ele, fui preso com ele e discuti temas de política, teologia e movimento pacifista. Nem sempre concordávamos. No entanto, o seu calor humano, o seu humor, a sua fé, a sua sabedoria e o seu compromisso sempre me inspiravam.
As suas ações o levaram a se tornar um dos padres mais conhecidos do século XX. Todavia, ele não tinha o desejo de ter pessoas seguindo-o. Simplesmente queria que as pessoas seguissem o Evangelho.
Como muitos americanos, conheci os irmãos Berrigans em 1968 quando eles e outros sete ativistas católicos entraram no escritório do Serviço de Alistamento militar em Catonsvillle, Maryland, apreendendo centenas de registros de alistamento e depois, usando explosivos caseiros semelhantes aos que estavam sendo jogados em aldeias vietnamitas, queimando tudo no estacionamento.
Num comunicado emitido após o incidente, o grupo, que ficou conhecido como os “Catonsville Nine”, declarou: “Nós discordamos da Igreja Católica de Roma, de outros organismos cristãos, das sinagogas dos Estados Unidos com o seu silêncio e covardia diante dos crimes que o nosso país comete. Estamos convencidos de que a burocracia religiosa neste país é racista, cúmplice nesta guerra e hostil aos pobres”.
Tradicionalmente, os pacifistas acreditam que a ação não violenta deve evitar danos à propriedade. Dorothy Day, por exemplo, achava que a defesa dos Berrigans da destruição de propriedades e outras táticas militantes tinha alcançado um limiar teológico perigoso.
No entanto, os Berrigans acreditavam firmemente que algumas propriedades – tais como ogivas nucleares e registros de alistamento – não tinham o direito de existir e eram da responsabilidade dos pacifistas destruí-los, conquanto que pessoas não fossem prejudicadas. As ações deles tinham a intensão de chocar, na medida em que o povo americano precisava se conscientizar do perigo enorme que advinha do militarismo de seu país.
Enquanto a maioria dos ativistas daquele período condenados à prisão por resistência não violenta iriam acabar se transformando em autoridades, Berrigan e seu irmão, Philip, estavam dispostos a continuar na clandestinidade, até mesmo aparecendo sem avisar para discursar em mobilizações públicas e em cerimônias religiosas e, em seguida, desaparecendo antes de serem detidos. Eles se transformaram em heróis populares, aparecendo na capa da revista Time e sendo os primeiros padres a aparecer na Lista dos Dez Mais Procurados pelo FBI.
A mesmo tempo, jamais cederam na oposição à violência, em particular quando o Weather Underground e outros grupos extremistas contrários à guerra começaram uma campanha de bombardeio. Em “The Village Voice”, Berrigan escreveu: “A morte de uma única pessoa é um preço muito caro a pagar pela defesa de quaisquer princípios, mesmo que sejam sagrados”.
A primeira vez que me encontrei com Berrigan foi em outubro de 1973 durante a Guerra Árabe-israelense, quando eu tinha 16 anos, numa fala que ele fez em Washington, DC. Enquanto muitos dos ativistas pacifistas da época evitavam a questão em geral divisora do conflito entre Israel e da Palestina, ele decidiu abordá-la de frente. Diferentemente de muitos progressistas daquele período que se opunham ao militarismo americano, mas que racionalizavam quando se tratava do militarismo israelense, ele não defenderia o militarismo de ninguém. A análise que fazia era sem rodeios e ele não tentou ser “equilibrado”, fazendo, todavia, uma análise acurada e honesta. Em suma, era o típico Dan Berrigan que estava ali.
Ele notou que Israel estava, como estavam os EUA e a África do Sul, “buscando uma justificativa bíblica para os crimes contra a humanidade”. Berrigan manifestou o seu pesar de que “no lugar da visão profética judaica”, Israel lançou “um pesadelo orwelliano de conversa enganosa, racismo, jargão sociológico de quinta categoria, visando provar a sua superioridade racial ao povo que esmagou”.
Fazendo notar também as semelhanças do “complexo militar industrial” de Israel com o dos EUA, observou como “Israel não libertou os cativos, o país expandiu o sistema prisional, aperfeiçoou a sua espionagem, está exportando para o mercado mundial aquela commodity sangrenta oculta: o triunfo selvagem do Ocidente tecnologizado, a violência e os instrumentos de violência”. Também falou que “estava bastante triste com o silêncio de minha própria Igreja a respeito de Israel”.
Como aconteceu com muitas de suas palavras e ações, proferir um tal discurso naquela época não era muito estratégico, conduzindo a críticas generalizadas e interpretações equivocadas. Da mesma forma, as suas detenções posteriores, em grande parte relativas à invasão de instalações de armamento nuclear, o que por vezes incluía danificar componentes de ogivas e mísseis, levaram a muitos meses de prisão sem muita publicidade ou crescimento discernível no movimento. No entanto, a eficácia estratégica realmente não lhe importava. Para Berrigan, era um imperativo moral. De fato, quando um repórter notou que ele não estava recebendo tanta atenção como outrora havia recebido, respondeu: “Eu não acho que a nossa consciência alguma vez esteve vinculada ao outro fim do cabo de uma tevê”.
E, no entanto, embora alguns o acusavam de estar agindo mais a partir da “culpa católica” do que para a construção de um movimento, o testemunho de Berrigan tinha, com efeito, um impacto profundo. Ele encorajou o movimento mais amplo de oposição à guerra, que antes do caso de Catonsville havia se focado principalmente em protestos de rua, em ação direta não violenta e em outras formas de resistência ativa. O testemunho de Berrigan trouxe muitos jovens católicos, que haviam estado distanciados por causa do apoio da hierarquia à Guerra do Vietnã e ao militarismo americano, de volta ao envolvimento ativo na Igreja. Como padre de meia idade, as suas ações trouxeram uma credibilidade maior aos opositores da Guerra do Vietnã, que frequentemente eram retratados como desajustados furiosos, jovens e de cabelos compridos.
E ele indubitavelmente desempenhou um papel no sentido de levar a Igreja Católica a um testemunho mais ativo em nome da paz e da justiça. A Igreja acabaria se opondo à Guerra do Vietnã, renunciando a legitimidade das armas nucleares e desafiando a ocupação israelense e a repressão aos palestinos.
Na verdade, poucos dias antes de ele morrer, o Vaticano realizou um encontro histórico que levantou dúvidas sobre a Doutrina da Guerra Justa e analisou alternativas não violentas. Será que um evento assim seria possível, não fossem as vozes proféticas como Berrigan?
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Pe. Berrigan e seu testemunho não violento mudaram a Igreja e o país - Instituto Humanitas Unisinos - IHU