10 Mai 2016
“O problema fundamental deste documento, Amoris Laetitia, é metodológico: existe somente um ideal – o sexo heteronormativo que não usa métodos contraceptivos em casamentos monogâmicos – em relação ao qual todo o resto é derivativo, menor, carente e/ou proibido”, escreve Mary Hunt, teóloga feminista, em artigo publicado por Religion Dispatches, 11-04-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Segundo ela, “o problema é que este documento se baseia na noção de uma família ideal patriarcal: mãe, pai e tantos filhos quanto o Senhor enviar, com todo o resto referido como “complexo” ou “irregular”, “imperfeito” ou o resultado da “fragilidade humana”. Na melhor das hipóteses, defende-se uma família homoafetiva intacta; um casal divorciado e recasado de qualquer orientação sexual é também algo a se evitar. Existem também alguns esforços débeis em fazer tais pessoas se sentirem acolhidas na Igreja Católica Apostólica Romana, mas somente na medida em que elas se percebam numa situação limítrofe”.
“Na pós-modernidade – continua a teóloga -, as famílias se apresentam em todos os tamanhos e formatos. Ou você reconhece isto e entra no processo tipicamente jesuíta de “discernimento” sobre as inúmeras formas existentes de se viver moralmente, ou você não entra.
Mary E. Hunt é teóloga feminista e uma das fundadoras e diretoras da Women’s Alliance for Theology, Ethics and Ritual (WATER), organização sem fins lucrativos sediada em Silver Spring, Maryland. Ativa no movimento católico de mulheres, ela profere palestras e escreve sobre teologia e ética, com ênfase em questões libertárias. A WATER é uma rede mundial, um espaço educacional e espiritual, além de um centro para se dialogar sobre feminismo, fé e justiça.
Eis o artigo.
Amoris Laetitia, a exortação do Papa Francisco sobre o amor na família, deixa muito a desejar.
Se você é heterossexual, casado, divorciado e voltou a se casar na presença de um pároco compreensivo, então tem motivos para ter esperanças de que a sua “situação irregular” vai ser corrigida. Já se você usa as formas mais eficazes de controle de natalidade, se já se submeteu a um aborto, ou é um fiel LGBTIQ sexualmente ativo, então o melhor é ir ler um livro ou buscar uma outra denominação caso espere ser tratado com igualdade, dignidade e respeito.
A “Alegria do clube” [alusão ao subtítulo da exortação, A alegria do amor] é fechada somente a alguns membros.
Este documento reflete um dilema papal de realizar um trabalho pastoral realista no mundo contemporâneo sem alterar nenhuma doutrina ou ensinamento importante da Igreja. O resultado é uma oportunidade desigual, ambígua. Algumas coisas podem ser analisadas – como no debate sobre a comunhão – enquanto outras estão fora de questão, tais como o matrimônio homoafetivo. A lógica por detrás de tais decisões não traz mais do que referências a outros ensinamentos católicos. Recordo-me da abertura de Francisco aos gays (“Quem sou eu para julgar?”) e a sua afirmação de que a ordenação feminina é um assunto encerrado. Encerrado por quem? Uma vez mais, o paradigma do poder patriarcal está ancorado por uma autoridade que gosta de ter as duas coisas. Certas tomadas de decisão são deixadas aos padres e bispos, mas não é assim como as coisas funcionam efetivamente. A teologia segue a prática.
O problema fundamental deste documento, Amoris Laetitia, é metodológico: existe somente um ideal – o sexo heteronormativo que não usa métodos contraceptivos em casamentos monogâmicos – em relação ao qual todo o resto é derivativo, menor, carente e/ou proibido. Ao mesmo tempo, o Papa quer acolher e ser um agente pastoral de todo mundo. A parcela católica de mercado tem diminuído grandemente ao redor do planeta devido em parte a este modo “único, sagrado, universal e apostólico” de olhar para a sexualidade. Fiéis católicos pós-modernos pensantes simplesmente não levam em conta tais generalidades infundadas diante de tantas provas que corroboram o contrário.
Amoris Laetitia, resultado das reflexões do papa que se seguem aos Sínodos dos Bispos sobre a família de 2014 e 2015, dá novas oportunidades para o emprego do termo “jesuítico”. Embora tentaram evitar os extremos, os escritores não conseguiram evitar algumas incongruências: somente um novo método que pressuponha uma ampla gama de boas maneiras de viver sem dar preferência a um estilo de vida e que não despreze os demais pode fazer isso. Neste documento, há uma lista de incoerências. O que se pede é a acolhida direta de todos aqueles que amam na infinita variedade de formas que o amor pode se manifestar.
Publicado sob o nome do atual papa jesuíta, o documento é, na verdade, um conjunto de peças um tanto desconexas escritas provavelmente por vários autores: um estudo bíblico que cita textos sobre as famílias sem nenhuma coesão organizadora; algumas reflexões sobre as famílias que incluem tropos tradicionais; conselhos aos que foram abandonados pela pessoa amada; uma reafirmação dos ensinamentos católicos institucionais sobre o matrimônio e a família; vários capítulos sobre o amor e os filhos; algumas tentativas provisórias de mudanças pastorais que refletem o que os padres eficazes já estão fazendo; e um coda espiritual com oração acerca da Família Sagrada.
Existe uma certa retórica pungente, por exemplo sobre a adoção e os jovens que olham para o futuro com esperança. Mas existe um monte de material sermônico, em grande parte tirado das homilias semanais do próprio papa em que ele antecipou muitas das ideias presentes neste documento.
Desde o início o leitor já tem uma ideia do que é central. Um editor com boa vontade reduziria pela metade este texto de 261 páginas. Que eu saiba, ninguém estava esperando algo de consequências enormes; ninguém de nós ficou decepcionado. Mas os ventos da mudança e da realidade estagnada são desanimadoros. Palavras como “misericórdia” e “ternura” não mudam, em si e por si, muita coisa se o paradigma não muda também.
Referências repetidas a Humanae Vitae, a chamada encíclica sobre o controle de natalidade, sublinham que somente as técnicas do planejamento familiar natural são lícitas. Nada de novidade aqui. Os autores foram capazes de acenar em oposição ao aborto (chamado de “um mal”), à fertilização in vitro e até mesmo à eutanásia. Os critérios da ortodoxia ética católico-romana estão firmemente em vigor. Mas eles fazem conexões entre imigração, tráfico humano e salários injustos que rompem o tecido das famílias. Isso sugere que pode haver mais fatores numa análise ética amorosa do que Daniel C. Maguire vem chamando de “questões da zona pélvica”, às quais uma demasiada atenção institucional católica tem sido dada.
O problema é que este documento se baseia na noção de uma família ideal patriarcal: mãe, pai e tantos filhos quanto o Senhor enviar, com todo o resto referido como “complexo” ou “irregular”, “imperfeito” ou o resultado da “fragilidade humana”. Na melhor das hipóteses, defende-se uma família homoafetiva intacta; um casal divorciado e recasado de qualquer orientação sexual é também algo a se evitar. Existem também alguns esforços débeis em fazer tais pessoas se sentirem acolhidas na Igreja Católica Apostólica Romana, mas somente na medida em que elas se percebam numa situação limítrofe. Na pós-modernidade, as famílias se apresentam em todos os tamanhos e formatos. Ou você reconhece isto e entra no processo tipicamente jesuíta de “discernimento” sobre as inúmeras formas existentes de se viver moralmente, ou você não entra.
A um serviço de inculturação: ideia segundo a qual princípios gerais serão vividos de formas variadas em culturas diferentes. Mas não há praticamente nenhuma indicação de como, por exemplo, um casal homoafetivo em Silver Spring, Maryland, possa se ver como moralmente equivalente ao seu casal vizinho heterossexual, apesar do fato de que as legislações estaduais e federal, os códigos tributários e as crianças do bairro não percebam diferença alguma.
Aparentemente nada do que foi dito pelos leigos nos Sínodos (pessoas que não mereceram nenhuma menção no texto) passou pela consideração dos escritores da encíclica, mas somente o que foi dito pelos Padres Sinodais. Setores inteiros de pesquisas recentes sobre sexo e gênero são rejeitados sem discussão. Permanecem noções antiquadas sobre os filhos que necessitam de uma mãe e de um pai para aquele bom e velho condicionamento masculino/feminino. A repetição do “gênio feminino” é um indicativo de que algumas coisas não mudaram mesmo. Mencionam-se a paternidade compartilhada e tarefas domésticas, mas os homens ainda são vistos como ajudantes, enquanto as mulheres fazem o trabalho pesado. Imaginemos se dois homens criassem filhos. Alguns criam, e muito bem apesar dos estereótipos. Infelizmente, as pessoas transgêneros não encontrarão as suas realidades neste texto.
Em algumas passagens, achei o texto um tanto problemático. Por exemplo, “convém uma salutar reação de autocrítica…” especialmente à luz de “uma ênfase quase exclusiva no dever da procriação”. Há um reconhecimento claro de que a instituição tem afastado os seus membros. Mas, na medida em que o documento se desenvolve, especialmente nas seções sobre o matrimônio que serão usadas para a preparação matrimonial, a procriação ainda predomina.
Num outro exemplo, o texto diz: “quanto aos projetos de equiparação ao matrimônio das uniões entre pessoas homossexuais, que não existe fundamento algum para assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimônio e a família”. Pergunto sobre a ideia que têm os autores do que vem a ser um casamento entre pessoas do mesmo sexo. Temo que eles protestem demais, sem saber do que faltam. Esta luta foi vencida em 22 países e o número de vitórias só continua a crescer.
Numa outra seção também dúbia, diz-se que a “a educação sexual concentra-se no convite a ‘proteger-se’” para “[transmitir] uma atitude negativa a respeito da finalidade procriadora natural da sexualidade, como se um possível filho fosse um inimigo de que é preciso proteger-se. Deste modo promove-se a agressividade narcisista, em vez do acolhimento”. O quê? Não ensinar o sexo seguro porque isso pode implicar que todo o ato heterossexual não está pré-ordenado à procriação?
O que os autores apresentam com elogios floridos sobre as maravilhas do matrimônio, eles tiram fora com infindáveis repetições de como, ao longo do tempo, os parceiros se tornam menos atraentes uns aos outros. Por favor, a vida se desenvolve e nós com ela. A atração física desempenha um papel relativamente menor com o passar dos anos, pelo menos para as mulheres. O que importa é como nos amamos nas muitas formas de amizade, algumas das quais podem incluir o casamento. Se se tem um ideal romântico com pessoas heterossexuais que não usam contraceptivos como o pináculo da vida relacional, muitas – se não a maioria – das pessoas estão fadadas a se decepcionar.
Se, diferentemente conforme venho dizendo há muito tempo, a amizade é normativa, então as pessoas podem ser amigas, amantes, parceiras, vizinhas, membros comunitários ou familiares – até mesmo eremitas. Daí, a “Sagrada Família de Nazaré”, Jesus, Maria e José (nessa ordem), em vez de ser o modelo principal de amor, seria uma entre tantas outras. Eu estava ansiosa para ver uma referência a Aristóteles e à amizade como algo fundamental – um vislumbre de esperança para as futuras gerações. Mas, por enquanto, o modelo matrimonial hétero reina supremo.
Simpatizo inteiramente com as pessoas, especialmente as jovens, que vão ler este documento e decidirão olhar para outros lugares em busca de uma comunidade religiosa e de orientação moral. Felizmente, a maioria das pessoas contam com seus amigos e colegas de trabalho, vizinhos e parentes para modelar o que seria viver uma vida saudável e integrada. Este documento pode juntar poeira sem representar grande perigo a elas.
A meu ver, Amoris Laetitia é uma oportunidade perdida do Papa Francisco de demonstrar que existe algo novo sob o sol. Talvez não exista. Além do documento, acho que esta oportunidade perdida pode não voltar. Liderança exige criatividade intelectual e coragem. Não é preciso ser a pessoa mais inteligente da turma, porém é preciso ter bom senso para “lidar com a sua vida até onde for possível”, no dizer da filósofa feminista Mary Daly aconselha.
Com este documento, temo que o Papa Francisco corra o risco de ser um cara legal em termos pastorais, alguém que deixou a sua marca no movimento ecológico com a encíclica Laudato Si’ (um tratamento claro e construtivo dos problemas globais prementes). No entanto, sobre assuntos de família, acho que ele será visto como o papa que não fez alteração alguma na linha iniciada por João Paulo II e Bento XVI.
Eu prefiro que o papel do papa seja o de simbolizar a unidade, e não o de exercer a autoridade. Não obstante, estou impressionada com a escolha de Francisco em agir como alguém que deseja ser uma figura unificadora na questão do amor e uma forte autoridade quanto ao meio ambiente. Alguns irão sustentar que estes documentos têm pesos eclesiais diferentes, a exortação sendo menos definitiva do que a encíclica. Talvez Francisco tenha, de fato, uma encíclica debaixo da manga que vá responder às muitas coisas esplendorosas chamadas de amor hoje. Duvido muito.
Infelizmente, nada nesta exortação muda as regras do jogo, nem nivela os campos éticos onde os atores se encontram, tampouco remodela as estruturas de tomada de decisão na Igreja assim como não inclui mais pessoas, especialmente as mulheres e a comunidade LGBTIQ no diálogo sobre a alegria do amor. O seu texto continua sendo apresentação de cima para baixo, às vezes propositalmente ambígua, de como agir sem mudar o quadro geral em que tais ações acontecem. Nem mesmo os papas podem fazer o impossível.
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“Carta de amor” do Papa Francisco é uma oportunidade perdida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU