07 Março 2016
"A Operação Lava Jato, sob a batuta do juiz Sérgio Moro, empurra o país para um clima de suspeição original, algo próximo do Pecado Original, sobrepondo o julgamento divino pelo de um corpo investigatório de tipo especial. Esta noção de “cidadão especial”, aliás, está contida na fundamentação da burocracia pública alemã que define os funcionários públicos de carreira como intocáveis para não serem perseguidos pelos governos, estes sim, partidarizados. Daí a estabilidade do emprego público concursado. O problema é quando o burocrata se sente acima das regras gerais de garantia do Estado de Direito, ou seja, a garantia de todo cidadão não ser considerado culpado sem antes poder se defender de alguma acusação; a garantia de que uma investigação não pode manchar a honra do investigado justamente porque sua conduta só será reprovada após julgamento pelas instâncias competentes, esgotadas todas suas possibilidades de contestação; e, ainda, a garantia da acusação e julgamento serem realizadas por instâncias distintas, garantindo a isenção do julgador que se debruça sobre as provas e não sobre os indícios", o comentário é de Rudá Guedes Ricci, cientista político, publicado em seu Facebook, 06-03-2016.
Eis o comentário.
Wikipédia define, assim, o Estado de Exceção:
“Estado de exceção (AO 1945: excepção) é uma situação oposta ao Estado de direito, decretada pelas autoridades em situações de emergência nacional, como agressão efetiva por forças estrangeiras, grave ameaça à ordem constitucional democrática ou calamidade pública. Caracteriza-se pela suspensão temporária de direitos e garantias constitucionais, que proporcionam a necessária eficiência na tomada de decisões para casos de proteção do Estado, já que a rapidez no processo de decidir as medidas a serem tomadas é essencial em situações emergenciais e, nesse sentido, nos regimes de governo democráticos - nos quais o poder é dividido e as decisões dependem da aprovação de uma pluralidade de agentes - a agilidade decisória fica comprometida. O Estado de Exceção é uma situação temporária de restrição de direitos e concentração de poderes que, durante sua vigência, aproxima um Estado sob regime democrático do autoritarismo.”
Há nítidos sinais que estamos sendo empurrados para esta situação. Qualquer democrata sente-se acuado e indignado neste momento.
A Operação Lava Jato, sob a batuta do juiz Sérgio Moro, empurra o país para um clima de suspeição original, algo próximo do Pecado Original, sobrepondo o julgamento divino pelo de um corpo investigatório de tipo especial. Esta noção de “cidadão especial”, aliás, está contida na fundamentação da burocracia pública alemã que define os funcionários públicos de carreira como intocáveis para não serem perseguidos pelos governos, estes sim, partidarizados. Daí a estabilidade do emprego público concursado. O problema é quando o burocrata se sente acima das regras gerais de garantia do Estado de Direito, ou seja, a garantia de todo cidadão não ser considerado culpado sem antes poder se defender de alguma acusação; a garantia de que uma investigação não pode manchar a honra do investigado justamente porque sua conduta só será reprovada após julgamento pelas instâncias competentes, esgotadas todas suas possibilidades de contestação; e, ainda, a garantia da acusação e julgamento serem realizadas por instâncias distintas, garantindo a isenção do julgador que se debruça sobre as provas e não sobre os indícios.
O pior dos mundos, ainda, é quando há fortes sinalizações de que o burocrata investido de sua condição de cidadania especial desequilibra a balança da justiça como igualdade formal e transforma a investigação em perseguição política, com fortes notas de partidarização.
Vivemos traços desta caminhada cinzenta que nos joga num lodo extremamente perigoso.
O que me deixa em estado de alerta é que vivi tempos em que o Estado de Exceção era justificado pelas armas. Não por outro motivo, os ditadores de plantão jogaram recursos públicos para criar uma rede de televisão que integrasse o país à ideologia da segurança nacional.
No Estado de Exceção que baixou as trevas sobre nosso país, todo cidadão era suspeito. Não por cometer erros, mas por apresentar traços do que os donos do poder consideravam sinais de subversão ou mesmo terrorismo aparente. Que sinais eram esses? Cabelos compridos, bolsas com alças longas, ser jovem e vestir calça jeans, ter cara de estudante, aparentar um olhar inteligente e desolado, ouvir canções de protesto, andar em grupos de mais de três pessoas (que logo gerava a indefectível frase policial: “circulando, circulando”), não portar carteira de trabalho quando andava pelas ruas, ser boêmio, ser intelectual da área de Humanas, gostar de ler. Tudo parecia muito estranho para quem desejava que a população fosse o reflexo do militarismo, a começar pelo corte de cabelo e musculatura distribuída principalmente pela parte superior do tronco (algum fetiche que, até hoje, não consigo compreender a motivação real, se bem que Reich criou uma teoria a respeito).
Se você tivesse alguns traços desses que citei, seria abordado por uma “autoridade”. A autoridade era auto-imune a tudo, incluindo a observação da lei. Era comum o carro da polícia se atirar sobre as calçadas e as autoridades saírem com a arma apontada para a cabeça do “elemento”. A humilhação era um traço banal da “investigação” que se seguia. O interrogatório caminhava para descobrir suas ligações com células comunistas ou a vadiagem como padrão de vida. Não adiantava você se surpreender de ser acusado de algo que nunca passou pela sua cabeça. Aliás, quanto mais veemente e indignado ficasse, mais certeza a autoridade tinha sobre sua culpa.
O Estado de Exceção gera excessos. Aliás, através dele pipocam erros, justamente porque a arbitrariedade elimina o autocontrole e o respeito pelo próximo. Elimina a dúvida, condição para a liberdade. Há registros de torcedores do Flamengo que foram presos e torturados quando ingressavam no Maracanã, confundidos com uma possível campanha da esquerda armada junto aos torcedores de futebol. Houve apreensões do principal livro de Stendhal, cujo título sugeria tintas utilizadas por comunistas e anarquistas. O uso diário de musculatura, sabemos, atrofia o cérebro.
Enfim, estamos prestes a ingressar neste clima de terrorismo de Estado. Todo cidadão é suspeito, principalmente se carregar traços que evidenciam a subversão à ordem definida na cabeça do Torquemada de plantão. Não pode andar em grupos ou se associar com quem pensa da mesma forma. É preciso estimular os “cidadãos de bem” a denunciar os possíveis subversivos, açodá-los, humilhá-los, constrange-los nas ruas e ambientes de lazer. Não pode haver trégua. A delação é estimulada como um erro perdoado para o bem maior. Os meios de comunicação são aliados nesta Cruzada sem fim, importante para criar o clima de justificativa da exceção.
Mas, afinal, o que Lula e o PT fizeram?
Em primeiro lugar, e que fique claro, erraram. Erraram por diversas vezes. A começar pela mudança de projeto e comportamento. O projeto era socialista e sugeria a radicalização da democracia, aumentando o controle do trabalhador sobre o Estado. Criticava-se duramente o modelo soviético – denominado de autoritário e burocrático – e a proposta trabalhista – identificada como populista e demagógica, onde o poder se concentrava em elites políticas. A política, pregava, tinha que ser feita nas ruas e locais de trabalho. Nada de ar condicionado e reuniões e acordos de cúpula, era a palavra de ordem.
Com o lulismo, o socialismo foi substituído pelo social-liberalismo, a crítica ao modelo ortodoxo etapista e concentrador dos soviéticos e trabalhistas foi relativizada, os acordos de cúpula e conciliações de classe tornaram-se a tônica da prática petista. Bandearam, afinal.
Alguns foram além. Primeiro, se fartaram de dinheiro para “equilibrar o jogo” com a opulência dos adversários em época de eleição. Outros acharam que um Land Rover a mais ou a menos não faria diferença e poderia, inclusive, aumentar o giro de algumas concessionárias.
Enfim, traíram a confiança de eleitores e militantes de base. Pelo que conheço, traíram a confiança da maioria esmagadora dos dirigentes petistas.
Então, qual seria o caminho da correção? O ideal seria que o próprio partido tomasse providências. Na origem, o PT expulsava quem desse o menor sinal de conluio com as classes dominantes. Tem experiência, portanto. Mas não foi feito.
Não havendo auto-correção, o caminho é a justiça. Não para combater o partido, o que seria uma tremenda injustiça e um desserviço à democracia (algo que se aproximaria ao casuísmo da criação do “Senador Biônico” do final da ditadura militar). Concentraria a investigação nos sinais claros. E julgaria com a lei, sem invenções como o tal “domínio do fato”. As invenções indicam um desejo íntimo do julgador, em busca de um atalho para imputar a culpa por convicção de foro íntimo, não pela Razão de Estado.
Mas, julgados os culpados, o erro maior seria estender para todos filiados e dirigentes deste partido a sentença dos já julgados. E é isto o que estamos presenciando. Todos são evidentemente culpados para uma parcela histérica da classe média sulina. E para grande parte dos editores que ainda conseguem manter seu emprego nos jornalões em queda de venda.
Enfim, o clima está criado. E nenhum democrata pode se omitir neste momento, assim como não nos omitimos nas etapas mais medievais da história recente do Brasil.
A situação é tão grave que até críticos ao lulismo e aos desvios ideológicos (e conseqüente desvio de práticas políticas) de parte de seus dirigentes pode ser nivelada ao que alguns tentam fazer com estas lideranças e agremiação.
A democracia está em jogo. E não há meio termo. Afinal, o que deseja todo democrata é racionalidade e equilíbrio. O império da dúvida como bússola. Todo democrata refuta qualquer fanatismo e principalmente qualquer sinal de debilidade do Estado de Direito. Com todas as suas forças. Como se combatesse o demônio.
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Meus motivos para me opor à histeria e aos atos do juiz Sérgio Moro. A tentativa de reedição do estado de exceção - Instituto Humanitas Unisinos - IHU