Por: Jonas | 02 Março 2016
O presidente Evo Morales não poderá se candidatar nas eleições de 2019, após o triunfo do Não, na consulta de domingo, dia 21. Os fatores locais e regionais que contribuíram com a ajustada vitória da oposição e os desafios que o governante Movimento ao Socialismo (MAS) terá pela frente são debatidos, abaixo, por Oscar Laborde, diretor do Instituto de Estudos da América Latina, e pela cientista política Ayelén Oliva, da Universidade de Buenos Aires. As análises são publicadas por Página/12, 29-02-2016. A tradução é do Cepat.
Tempo para reverter a derrota, por Oscar Laborde
O triunfo do Não no plebiscito na Bolívia, no qual se levou em consideração a possibilidade de que Evo se candidatasse para um novo mandato em 2019, não previsto pela Constituição, traz uma grande apoio para este momento de avanço da direita sobre os processos populares que se iniciaram há alguns anos.
E apesar da particularidade do processo boliviano, a influência do triunfo de Macri, na Argentina, e da oposição a Maduro nas recentes eleições legislativas tiveram sua influência em uma derrota que possui muitas causas.
O presidente do Equador, Rafael Correa, vem falando da tentativa de “restauração conservadora” que levam adiante os Estados Unidos, as direitas locais e os meios de comunicação concentrados, que articulam argumentos, críticas e ataques desestabilizadores. É claro que estes ataques não são de uma elevada discussão acadêmica. São os fundos abutres atacando a Argentina, são os paramilitares colombianos intervindo na Venezuela, são as difamações, é o poder judiciário perseguindo os governos populares com causas sem o mínimo de amparo legal.
Quando ocorre o Não à ALCA, em Mar del Plata, em novembro de 2005, os Estados Unidos imediatamente se colocam em ação para reverter esse triunfo das vontades soberanas de alguns presidentes e de todo o povo latino-americano. Criaram uma proposta de integração alternativa ao Mercosul, a Aliança do Pacífico. Impulsionaram com argumentos, ideias, recursos e articulação uma nova direita que pudesse cumprir o papel que os dirigentes aliados ao império não conseguiam por estarem com sua credibilidade esgotada. Desse modo, atacou, sem piedade, o governo do Brasil, Venezuela e Argentina, considerados os pilares da nova integração com conteúdo regional, soberano e popular.
Contudo, para além das operações e acertos da direita e de seus chefes, os norte-americanos, quais foram as insuficiências e dificuldades do Movimento ao Socialismo e de Evo Morales, que o levaram a sua primeira derrota eleitoral, desde que assumiu em 2006?
Em primeiro lugar, este tipo de consulta reúne todo um arco heterogêneo e contraditório, que soma votos “contra”, desde racistas até setores críticos à falta de aprofundamento do processo indigenista. Por outro lado, há um desgaste da figura de Evo pelos anos de gestão e pela agressão interna e externa. Há críticas de setores internos do MAS a certo personalismo de Evo e a um exagero na centralidade em todos os temas, o que provoca uma excessiva exposição, o pagamento de todos os custos e o ofuscamento de outros dirigentes.
Há também um cansaço dos setores médios da população (originários ou não) diante da reiteração de alguns temas, que embora sejam aceitos, irritam em razão da permanente repetição, como o anti-imperialismo e o indigenismo. A oposição trabalhou com inteligência a ideia do “perigo da eternização” e o medo de que caso o Sim triunfasse, Evo poderia depois querer ficar mais um período.
Por outro lado, gerou-se uma dissidência que militou pelo Não, integrada por agrupamentos juvenis, pensadores de esquerda, dirigentes sociais e políticos que apoiam o processo, que reconhecem o conquistado nestes anos, mas que têm várias críticas, reivindicando mais debate e participação.
A derrota eleitoral está longe de significar o fim do processo revolucionário na Bolívia. Sua fortaleza, suas conquistas e o nível de consciência adquirido permitem pensar em uma recuperação para as eleições presidenciais de 2019.
O sociólogo Salvador Schavetzon expõe que “esta derrota pode significar uma oportunidade para corrigir erros, fortalecer-se e reverter a desconexão do governo com tudo o que representa”. Além disso, será quase impossível à oposição conseguir um só candidato a presidente que represente o heterogêneo, díspar e contraditório concentrado no interior do voto pelo Não.
O MAS e Evo Morales têm o tempo suficiente, a experiência adquirida e o respaldo popular para evitar esta derrota. E estão conscientes de sua responsabilidade histórica.
O fantasma de um país fragmentado, por Ayelén Oliva
Na noite em que Evo Morales foi à sacada do Palácio Quemado para confirmar que por decisão da maioria dos bolivianos estaria na presidência pela terceira vez, cometeu o erro de agradecer ao povo de La Paz pelos próximos nove anos de governo. Rapidamente, corrigiu o engano, não eram nove, mas, sim, cinco, no entanto, a frase já havia caído como a primeira peça de dominó que derruba a seguinte até apresentar, poucos meses depois, uma iniciativa de reforma constitucional para habilitar seu quarto mandato.
A diferença de menos de três pontos alcançada pela rejeição à proposta de reforma, somada ao amplo apoio eleitoral que o MAS recebeu nas últimas eleições gerais, faz com que supomos que o ocorrido no domingo, dia 21, não coloca em risco a governabilidade do presidente da Bolívia, que ainda conta com quatro anos de gestão e uma maioria intacta no parlamento.
Porém, algo valioso se perdeu nesta aposta. O Governo deixou escapar a ilusão do fim do país dividido, a maior conquista simbólica deste último tempo, que o governo soube construir conscientemente e em silêncio, uma meta que nenhum outro governo progressista e de esquerda conseguiu alcançar na América Latina. Enquanto as últimas eleições presidenciais da Venezuela, Brasil e Argentina desenharam paisagens políticas de uma geografia fragmentada, quase sem pontes entre as partes, os resultados das últimas eleições presidenciais na Bolívia, com mais de 60% dos votos a favor do governo, somado à expansão hegemônica que marcou o último triunfo do MAS em oito dos nove departamentos, demonstram que essa ilusão social, contraditória de fato, mas necessária, estava do lado de Evo.
Os resultados do referendo junto à antessala do incêndio na prefeitura de El Alto, que provocou seis mortes, despertam os fantasmas da velha Bolívia fragmentada e violenta que havia sido sepultada. Ainda que esteja distante o empate catastrófico de 2008, os resultados deixam um país partido ao meio, em blocos quase idênticos, ainda que de um lado esteja um grupo organizado, ao passo que do outro lado os atores se mantenham dispersos. Mais uma vez, os eleitores do oriente boliviano, liderado por Santa Cruz e Beni, viraram as costas à consulta, ao mesmo tempo em que as zonas rurais e os departamentos tradicionalmente aliados, como La Paz, foram aqueles que encurtaram a distância.
Provavelmente, a decisão dos eleitores que rejeitaram a proposta de reforma constitucional, mas que elegeram os nomes do MAS na última eleição à presidência, tem menos a ver com o desencanto com a gestão de governo do que com o apoio a uma institucionalidade democrática, cada vez mais parecida com sua gente, que soube exigir a sociedade boliviana, estimular o partido no poder e terminou por formalizar este governo. Essa institucionalidade necessária para criar normalidade dentro da excepcionalidade que envolve todo processo de mudança é também sinônimo da estabilidade política e social da qual fala Evo.
Por outro lado, embora o eleitor do MAS seja disciplinado, também mantém até hoje certas margens de autonomia em relação aos deveres eleitorais demandados pelos líderes políticos, por causa de sua essência de movimento que se diferencia em sua lógica de qualquer dispositivo eleitoral criado por cima. Isso ficou refletido na incongruência eleitoral que se originou em distritos como La Paz, entre os resultados das eleições presidenciais de outubro de 2014, com um apoio ao partido no poder superior a 70% e a surpreendente derrota eleitoral nas eleições departamentais e municipais, em inícios do ano seguinte.
O Movimento ao Socialismo, com Evo Morales à cabeça, arriscou muito mais do que o conveniente com esta aposta, mas mesmo assim conserva uma ampla margem de manobra e tempo suficiente para preparar um candidato para 2020 que emerja como expoente de sua própria força política.
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Desafios para a Bolívia. Duas análises - Instituto Humanitas Unisinos - IHU