16 Fevereiro 2016
"Há dois anos, Francisco instituiu a Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores. Ela é composta por clérigos, teólogos, psiquiatras, terapeutas e – o mais significativo – dois sobreviventes de abusos sexuais. O participante mais atuante era Peter Saunders, fundador da Associação Nacional para as Pessoas Abusadas na Infância e um dos ativistas antipedofilia mais dispostos a falar publicamente. Na primeira reunião em maio de 2014, o presidente da Comissão, o Cardeal Sean O’Malley, arcebispo de Boston – aquele que limpou a bagunça exposta no filme Spotlight –, surpreendeu os seus membros ao revelar que o estabelecimento do grupo havia desencadeado mais oposição dentro do Vaticano do que qualquer outra reforma papal, até mesmo das finanças vaticanas", escreve Paul Vallely, autor do livro Pope Francis: the Struggle for the Soul of Catholicism, em artigo publicado por The Guardian, 15-02-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Até mesmo de acordo com os padrões do Vaticano esta comparação é espetacularmente inadequada. As seis indicações ao Oscar para o filme Spotlight focaram a atenção do mundo numa questão envolvendo padres pedófilos dentro da Igreja Católica – quase certamente o maior escândalo a assolar esta instituição no século passado. E, no entanto, com desdém ou desconsideração pela opinião mundial, a apenas duas semanas antes da entrega do Oscar o membro mais franco da comissão papal de combate a casos de abuso sexual clerical foi expurgado dela.
O Papa Francisco está ocupado com outros afazeres. Após o encontro histórico de sexta-feira com o chefe da Igreja Ortodoxa Russa – o primeiro em quase mil anos –, ele tem feito o que sempre fez: visitar prisioneiros, migrantes, indígenas e famílias de vítimas da violência do narcotráfico, desta vez no México.
Mas, em sua ausência, uma guerra civil oculta dento do Vaticano continua. De um lado estão os reformadores que querem uma responsabilização pública dos padres pedófilos e dos bispos que os supervisionam. Do outro lado está a reincidente velha guarda romana cujo instinto de acobertamento continua se fazendo presente.
Há dois anos, Francisco instituiu a Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores. Ela é composta por clérigos, teólogos, psiquiatras, terapeutas e – o mais significativo – dois sobreviventes de abusos sexuais. O participante mais atuante era Peter Saunders, fundador da Associação Nacional para as Pessoas Abusadas na Infância e um dos ativistas antipedofilia mais dispostos a falar publicamente.
Na primeira reunião em maio de 2014, o presidente da Comissão, o Cardeal Sean O’Malley, arcebispo de Boston – aquele que limpou a bagunça exposta no filme Spotlight –, surpreendeu os seus membros ao revelar que o estabelecimento do grupo havia desencadeado mais oposição dentro do Vaticano do que qualquer outra reforma papal, até mesmo das finanças vaticanas.
Ao longo dos dois anos seguintes, a comissão antiabuso se viu diante de várias tentativas visando enfraquecê-la. Importantes dicastérios vaticanos competiram para assumir o controle do órgão. A sua decisão em criar escritórios do lado de fora do Vaticano foi revogada. Burocratas buscaram subverter a sua tentativa de escrever o seu próprio estatuto. A comissão chegou a estar com falta de dinheiro.
Os seus comunicados de imprensa foram adulterados e diluídos – como aconteceu com o anúncio do Vaticano sobre Saunders, que foi apresentado como um fato consumado apesar da insistência de Saunders de que simplesmente lhe haviam pedido que ponderasse sobre se os seus pronunciamentos públicos críticos eram compatíveis com a sua função de assessor papal. “Não foi um voto de desconfiança”, uma outra participante da comissão, Marie Collins, revelou.
Ao mesmo tempo em que veio a público a história, veio também a notícia de que a Igreja Católica havia ministrado cursos de formação para os novos bispos onde estes ouviam que “não era necessariamente” dever deles relatar as acusações de abuso infantil clerical à polícia. A comissão, pelo que parece, não recebeu função alguma para ajudar na formação dos novos prelados durante os dias de curso, muito embora uma outra participante, a psiquiatra inglesa Sheila Hollins, insistiu na sexta-feira (12 de fev.) que o seu objetivo era “auxiliar as igrejas locais em todas as partes do mundo” a desenvolverem iniciativas no sentido de proteger as crianças e os adultos vulneráveis.
Os analistas católicos se apressaram para ir à internet sugerir que a remoção de Saunders, com o seu lobby público constante em nome das vítimas, deixaria livre a comissão para se ocupar somente com o trabalho de produção e sistematização de políticas a serem sugeridas ao papa. Isso é o oposto da verdade.
Com certeza, Saunders era uma pessoa desconfortavelmente irritante para muitos no Vaticano. Na véspera da reunião desde mês, ele contou a um jornal que a sessão anterior do grupo, em outubro, fora um “não evento”. Afirmou publicamente o que uma série de membros da comissão me disseram em privado, que o órgão – que se reúne duas vezes por ano – está movendo-se muito devagar.
Isso não é tudo. Saunders vem se manifestando publicamente sobre uma variedade de temas. O mais intemperado foi o seu ataque ao chefe financeiro do papa, o Cardeal George Pell, após alegações de que Pell não teria agido corretamente no sentido de proteger as crianças quando era bispo na Austrália. Saunders chamou Pell de insensível e cruel, dizendo que ele demonstrava uma desconsideração “quase sociopata” pelas vítimas.
Dito isso, Saunders era o grão de feijão estragado no conjunto da comissão papal. Sem ele, esse grupo tem menos probabilidade de produzir as resoluções que irão redimir a Igreja Católica aos olhos dos fiéis comuns e limpar aquilo que o Papa Bento chamava de a “sujeira” dentro da Igreja.
Se se quer alcançar isso, não somente se precisa fazer justiça, mas também ela deve ser vista sendo feita. A indignação das vítimas e sobreviventes tais como Saunders é essencial aqui. Se a comissão papal não pode conciliar-se com a justiça, então o seu objetivo precisa ser revisto.
O fato de remover Saunders envia a mensagem negativa de que a Igreja Católica é um paraíso do silêncio e da cumplicidade. Foi revelador que, depois da retirada de Saunders, Marie Collins veio dizer que possuía confiança nos demais membros da comissão, porém “Não tenho a mesma confiança naqueles cuja tarefa é a de trabalhar conosco dentro do Vaticano e implementar as nossas propostas quando aprovadas pelo papa”.
Sem dúvida, ela tem em mente aqueles no Vaticano que insistem que o abuso infantil é uma coisa do passado. Não é. Só na última semana a comissão ficou sabendo de dois padres que recentemente alertaram o seu bispo quanto a um padre pedófilo – os quais ouviram que deveriam permanecer em silêncio.
Um outro problema é que Francisco parece ambivalente na problemática dos abusos sexuais cometidos pelo clero. Passaram-se dez meses de negociações privadas feitas por O’Malley até ele concordar em criar a comissão. Várias das pessoas próximas a Francisco me disseram que, embora ele deteste os abusos, ele também mantém certa cautela para com acusações falsas que são feitas contra os padres.
Isso pode explicar por que ele demorou mais de dois anos para aceitar a renúncia do bispo americano Robert Finn, de Kansas City, depois de sua condenação em 2012 por falhar em comunicar um padre pedófilo à polícia. Os participantes da comissão pediram pela remoção de Finn, mas isso aconteceu quase três anos depois de sua condenação.
Em seguida, de modo ainda mais polêmico, Francisco promoveu um bispo no Chile, Juan Barros, acusado de acobertar um padre pedófilo.
Nada disso cai bem com uma política de tolerância zero a que Francisco convidou em 2014 – depois que os membros da comissão o haviam pressionado a acolher uma tal abordagem.
Roma poderá vir a lamentar o seu juízo de que Saunders é mais um incômodo interno a gritar do que ele vai ser do lado de fora. Desde a sua destituição, ele tem condenado o “sistema vaticano” como “essencialmente corrupto e indisposto a fazer a coisa certa”. A decisão de fechar fileiras para excluir Saunders vai parecer, para muitos, como uma volta aos instintos católicos de colocar a proteção da instituição acima do cuidado dos indivíduos.
A ironia é que o Papa Francisco tem buscado enviar a mensagem contrária sempre que possível. Sem dúvida, o primeiro papa do hemisfério sul irá continuar o seu ministério junto aos marginalizados no México e alhures. Porém as suas falhas em agir com eficácia na questão dos abusos sexuais pode seriamente estragar este seu papado radical.
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O Papa fala sério quanto ao combate à pedofilia? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU