25 Janeiro 2016
Pesquisas feitas logo após a visita histórica do Papa Francisco aos Estados Unidos mostraram que, embora no geral os americanos ficaram com uma impressão mais positiva do papa, a sua popularidade entre os católicos, conquanto ainda bem alta, decresceu levemente. Segundo o Centro de Pesquisas Pew (Pew Research Center), 81% dos católicos viam o papa de modo favorável em outubro, abaixo dos 86% em junho, diminuição liderada principalmente pelos que frequentam a missa regularmente.
O comentário é Rafael Luciani (Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.) e Félix Palazzi (Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.) publicado por America, 02-01-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Em junho de 2015, pesquisas feitas pelo [Instituto] Gallup também registraram uma queda no índice de favorabilidade do Papa Francisco, atribuível ao apoio em declínio entre os católicos e conservadores políticos. A queda coincidiu com dois eventos: a publicação da encíclica sobre o meio ambiente, Laudato Si’, e as fortes críticas contra o capitalismo desenfreado que o papa proferiu em sua viagem de julho à América do Sul.
Como teólogos latino-americanos, gostaríamos de tentar explicar o que chamamos de “a opção teológico-pastoral” do Papa Francisco, que ainda é pouco conhecida fora do ambiente teológico falante do espanhol. Isso exige certa familiaridade não só com a evolução do magistério da Igreja latino-americana, mas também com os movimentos religiosos e sociopolíticos dos países da região. A inadequação das muitas das tentativas de compreender a orientação do papado de Francisco deve-se ao desconhecimento destes fatores e pode explicar por que alguns católicos não têm gostado da crítica do papa às estruturas sociais e econômicas.
Virada pastoral
A viagem do papa ao Equador, Bolívia e Paraguai em julho de 2015 marca um importante desenvolvimento em nossa compreensão de seu pontificado. Aí, Francisco delineou o seu programa de resgate da humanidade em sua angústia presente: a) evitando o “espiritualismo abstrato”, isto é: pensar que podemos ter fé à parte do nosso contexto social; b) rejeitando o “funcionalismo metódico”, quer dizer: justificar o emprego de quaisquer meios para atingir determinados fins, como permanecer no poder, por exemplo; c) aplicando uma hermenêutica crítica às “ideologias abstratas” que reduzem a práxis evangélica e cristã a princípios vazios; e d) desmantelando o “clericalismo e o carreirismo eclesial”, que são sinais de uma fé imatura, que não consegue corresponder ao Evangelho.
Em sua visão de Igreja, estamos começando a ver com mais clareza a conexão entre o conteúdo teológico e pastoral dos discursos do papa e o que se conhece como “Teologia do Povo” (ou às vezes chamada “Teologia da Cultura”). O uso que o papa faz deste ramo teológico, que surgiu dentro do contexto da assimilação e aplicação do Concílio Vaticano II por parte da Igreja latino-americana, deixa claro que ele está propondo algo mais do que uma simples mudança de foco no trabalho pastoral da Igreja. Ele está interessado em fazer mais do que apenas renovar a linguagem católica ou atualizar as formas e práticas religiosas existentes. O objetivo do Papa Francisco é estabelecer um jeito todo novo de ser Igreja, um modo que reconhece os efeitos graves da atual crise estrutural e que se volta ao caminho traçado pelo Concílio Vaticano II.
Este novo modelo de ser Igreja se baseia numa qualidade profética inspirada na Teologia do Povo, que compreende a ação pastoral em relação com a inserção da Igreja na realidade dos pobres e sua apreciação dos valores que emergem dos setores populares. Este novo modo de ser Igreja surge de uma opção preferencial pelos que vivem nas margens e de um desejo de fazer uso da capacidade dessas pessoas de gerar processos de conversão em todos nós que pertencemos à Igreja e à sociedade em geral.
Esta abordagem teológica evita a tendência de separar e isolar aspectos da vida da Igreja, com fé e a pesquisa acadêmica de um lado, e com o envolvimento social e pastoral de outro. Tal separação provoca uma relação disfuncional entre o mundo acadêmico e a realidade dos pobres, conforme Francisco escreveu em Laudato Si’:
“Isto deve-se, em parte, ao fato de que muitos profissionais, formadores de opinião, meios de comunicação e centros de poder estão localizados longe deles, em áreas urbanas isoladas, sem ter contato direto com os seus problemas. Vivem e refletem a partir da comodidade dum desenvolvimento e duma qualidade de vida que não está ao alcance da maioria da população mundial. Esta falta de contato físico e de encontro (…) ajuda a cauterizar a consciência e a ignorar parte da realidade em análises tendenciosas” (parág. 49).
Conceber a identidade e a ação da Igreja dessa maneira é consequência da recepção que a América Latina deu ao Vaticano II, especialmente conforme interpretado pelos bispos na Conferência de Medellín, em 1968. Enquanto que na Europa o Concílio deu luz à teologia política de Johann Baptist Metz e Hans Küng, na América Latina ele inspirou a Teologia da Libertação, de Gustavo Gutiérrez, Ignacio Ellacuría e Jon Sobrino. Na Argentina, no entanto, surgiu ainda uma outra compreensão conciliar e que se fez presente no documento final da Assembleia Extraordinária dos bispos argentinos em San Miguel, em 1969.
Os documentos de Medellín e San Miguel inspiraram-se, em parte, nas propostas da “Mater et Magistra” (1961) de São João XXIII e “Populorum Progressio” (1967), do Beato Paulo VI. Esses dois pontífices pediam aquilo o que São João XXIII descrevera como uma “Igreja dos pobres” (palavras suas em uma transmissão de rádio em setembro de 1962) e como um reconhecimento do “rosto de Cristo em cada pobre, como o seu sacramento” (conforme o Papa Paulo VI disse durante a visita a Bogotá em 1968).
Agora chega Francisco, que quer uma “Igreja pobre para os pobres”, tirando esta sua inspiração do assim-chamado “Pacto das Catacumbas”, subscrito por 40 bispos, incluindo Dom Hélder Câmara, na conclusão do Vaticano II em 1965. Nesse pacto, os bispos declararam a necessidade de voltar novamente aos modos do Jesus histórico ao serem “uma Igreja serva e pobre”, que se distinguiria por sua prática da “fraternidade, justiça e compaixão”. É esse o contexto no qual a opção teológico-pastoral do Papa Francisco se desenvolveu.
Do povo
A teologia do povo como uma forma da Teologia da Libertação latino-americana foi, primeiramente, elaborada como tal por dois sacerdotes teólogos, Lucio Gera e Rafael Tello, e em seguida foi adotada pela Conferência Episcopal argentina em 1969. As suas origens, entretanto, remontam a 1966, quando uma comissão pastoral dos bispos definiu “o povo” em termos da “existência de uma cultura comum enraizada em uma história comum e comprometida com o bem comum”.
A teologia do povo recebeu forma nas mãos do Pe. Gera, em seu trabalho intitulado “O sentido da mensagem cristã no contexto de pobreza e opressão”. Para ele, essa teologia não defende a transformação das estruturas sociais e políticas por ela mesma; pelo contrário, busca discernir a missão e a identidade da Igreja com base na opção pelos pobres. Essa opção fomenta o diálogo sociopolítico e promove o ministério pastoral inspirado pelo ideal de justiça social a ser encontrado concretamente no “povo fiel”.
Esta opção teológico-pastoral não se fundamenta na análise marxista das condições sociais e econômicas que foi encontrada em outros tipos da Teologia da Libertação. O Pe. Gera sustentou que o seu ponto inicial deve ser a ligação direta com o povo e um estudo sério da cultura e do ethos comum desse mesmo povo. Esse esforço possibilita descobrir o que está, na realidade, obstruindo o desenvolvimento socioeconômico, político e religioso do povo e ajuda a preservar a identidade positiva desse povo contra as influências externas que tentam impor uma ideologia alheia.
Porque, como o Papa Francisco disse na Bolívia, “um povo que esquece o seu passado, a sua história, as suas raízes, não tem futuro”; é por isso que “a Igreja faz uma opção de cuidar dos que hoje são descartados e preservar sua cultura preciosa”. Da mesma forma, a teologia do povo é um tipo de Teologia da Libertação que presta especial atenção à evangelização da cultura por meio da transformação social, política e religiosa. A transformação do povo acontece por meio de um desenvolvimento integral da pessoa humana, da promoção do diálogo sociopolítico e da prática da justiça social.
Já na década de 1970, Jorge Mario Bergoglio, SJ, tinha uma visão clara de qual deveria ser o exemplo político dos cristãos e da ação pastoral da igreja. Em uma alocução dirigida a uma assembleia jesuíta em 1974, ele explicou que a prática cristã – tanto religiosa como política – deveria se centrar na fraternidade, na solidariedade, na justiça social e no bem comum, em vez de se focar em noções como pátria, revolução e oposição entre conservadores e progressistas. Ele criticou os “confrontos infrutíferos com a hierarquia e os conflitos entre as alas ‘progressista’ e ‘reacionária’ dentro da Igreja, que acabam dando mais importância às partes do que ao todo”.
Justiça em ação
Para combater a polarização institucional e a divisão ideológica na Igreja de hoje, o Papa Francisco vem propondo alguns princípios de discernimento que se inspiram, em parte, em Juan Manuel de Rosas, governador de Buenos Aires no final do século XIX. Os princípios são “a unidade e não o conflito” em face das realidades institucionais polarizadas, e “as realidades e não as ideias”, em face das tentativas de transformar a mensagem evangélica em ideologia. (Cf. “A Alegria do Evangelho”, parágrafos 217-237.)
Falando no Paraguai em julho, o papa declarou que as prioridades principais da comunidade cristã deveriam ser: “tornar-se inseridas e encarnadas na experiência das pessoas comuns e discernir entre o formato da ação libertadora, salvífica da Igreja e a perspectiva das pessoas e suas preocupações”. De outra forma, afirmou, as ideologias irão ganhar terreno, como aconteceu recentemente na América do Sul, “e elas não serão de nenhuma utilidade porque as ideologias, uma vez que não começam com o povo, têm uma relação incompleta, prejudicial com as pessoas”.
No primeiro ano de seu pontificado, perguntaram a Francisco sobre os sacerdotes de favelas que haviam sido membros do Movimento de Sacerdotes para o Terceiro Mundo; um deles era o Rev. Carlos Mugica, morto em 1974. A sua resposta foi: “Eles não eram comunistas. Eram sacerdotes que lutavam por justiça social. Realmente, a justiça social é um dos temas mais importantes na opção teológico-pastoral do papa. O mundo pode se reumanizar e o bem comum pode ser garantido somente unindo-se justiça social, teologia e ação pastoral. Conforme o papa declarou em seu discurso aos movimentos populares em Santa Cruz: “O sistema dominante continua a negar a milhares de milhões de irmãos e irmãs os mais elementares direitos econômicos, sociais e culturais. Este sistema atenta contra o projeto de Jesus”.
Francisco convoca os católicos a viverem um cristianismo profético que seja capaz de discernir a validade ética e a verdade moral das forças sociais e religiosas em jogo na sociedade. Tal discernimento vai determinar a mudança da orientação necessária tanto na vida política de um país quanto nas formas eclesiais para que a Igreja recupere a credibilidade no mundo de hoje. O papa descreve a obrigação da Igreja em contribuir para este processo de mudança no documento Evangelii Gaudium:
“Mas, juntamente com as várias forças sociais, [a Igreja] acompanha as propostas que melhor correspondam à dignidade da pessoa humana e ao bem comum. Ao fazê-lo, propõe sempre com clareza os valores fundamentais da existência humana, para transmitir convicções que possam depois traduzir-se em ações políticas” (parág. 241).
Em uma homilia em Quito, no dia 7 de julho, o papa nos desafiou a pensar em termos de uma Igreja que é chamada a “optar pelos pobres” e a “afasta-[se] da tentação de propostas unicistas, mais parecidas com ditaduras, ideologias ou sectarismos”. Ele convidou a uma Igreja que se distancia do elitismo e se engaja diretamente na realidade. Conforme disse em 2001, quando era arcebispo de Buenos Aires:
O princípio antivalor de hoje, em meu juízo, é o marketing das pessoas, isto é, transformá-las em merchandising. Homens e mulheres são transformados em mais uma outra commodity para projetos que vêm de lugares diferentes, que se instalam em nossa sociedade e que degradam a dignidade humana. Eis é o antivalor: a pessoa humana como um merchandising nos sistemas político, econômico e social dominantes.
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As origens latino-americanas da teologia do Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU