11 Janeiro 2016
"Chiara Frugoni não se limita às histórias de São Francisco, e submete a uma análise fechada e escrupulosa toda a decoração da igreja, começando pela área onde se iniciaram os trabalhos, no transepto direito, a partir das obras do jovem Giotto", escreve Marco Mascolo, em artigo publicasdo por Il Manifesto, 27-12-2015. A tradução é de Ivan Pedro Lazzarotto.
Eis o artigo.
A Basílica de São Francisco de Assis, grandioso complexo cultural que detém algumas das mais nobres apreciações da arte ocidental, desperta há muito tempo a atenção de estudiosos de vários tipos, dos historiadores da arte aos historiadores tout court. Os primeiros sinais do conflito que, desde que Francisco ainda estava vivo, começou a dividir a nova Ordem ainda podem ser encontrados na divisão das duas igrejas: a Superior, destinada a abrigar os religiosos da nova Ordem e os fiéis, com um papel mais oficial e mais público com relação a Inferior, com o seu ambiente acolhedor e propício a oração dos peregrinos.
O problema da apropriação e da formalização de uma mensagem um tanto explosiva como aquela de São Francisco de Assis ter encontrado uma das suas maiores expressões pintada próxima à superfície da Basílica Superior. Muito mais do que os memorandos papais, dos tratados destinados a interpretar a vida de Francisco ou as biografias do santo, as imagens tiveram um papel extraordinário para afirmar e estabelecer somente uma imagem única e original do santo.
No seu recente trabalho, Chiara Frugoni aborda e defronta estes problemas. Desde o título, Qual Francisco? A mensagem escondida nos afrescos da Basílica superior de Assis (Einaudi, 612 p., 222 ilustrações), se torna claro o objetivo do grande volume: qual foi o Francisco que se deseja promover das paredes da Basílica de Assis? O pobre frei ascético que pregava a renúncia aos bens materiais e tentava redefinir as relações entre a Igreja de Roma e os fiéis? Ou um Francisco cuja mensagem foi atenuada e de certa forma “adocicada” frente ao rigor inicial, capaz agora de ser absorvido no interior dessa própria Igreja?
A pesquisadora já estava concentrada no seu Francisco e a invenção dos estigmas (Einaudi, 1993), sobre os fatos que levaram a Igreja a se apropriar da mensagem repleta de elementos subversivos tanto para a autoridade pontifícia quanto para sua hierarquia, dos freis da Ordem franciscana. Uma nova Ordem, cuja obediência era devida somente ao sumo Pontífice e que saía, então, da jurisdição dos bispos. Detalhe este que desencadeou uma verdadeira batalha ao som de textos e, como era de se esperar, de imagens.
Este processo, longo e acidentado, vê uma primeira, e substancial, vitória para Roma ao afirmar, em 1266, a Legenda Maior de São Boaventura como única biografia oficial do santo, com a consequente destruição de outras biografias de Francisco, iniciando pela de Tomás de Celano. Exatamente sobre a base de Boaventura, teria sido elaborado o programa iconográfico das histórias do santo na Basílica superior, adornando com afrescos as paredes da nave central no registro mais baixo e, assim, próximo ao olhar dos fiéis.
Mas, dessa vez, Chiara Frugoni não se limita às histórias de São Francisco, e submete a uma análise fechada e escrupulosa toda a decoração da igreja, começando pela área onde se iniciaram os trabalhos, no transepto direito, a partir das obras do jovem Giotto. A pesquisadora rastreia as referências contidas presentes nos afrescos, questiona as razões para as correspondências das cenas pintadas entre as diversas paredes da nave. A narração bíblica procede de cima para baixo: inicia com a Criação, atravessando as histórias do Antigo e do Novo Testamento, chegando por fim na vida de São Francisco. Uma história, porém, naquele momento, bonificada e mitigada, perfeitamente alinhada com as orientações e exegeses propostas por São Boaventura na sua Legenda Maior.
A estrutura do livro de Frugoni, substancialmente bipartida, permite a aproximação às pinturas em Assis com uma instrumentação não usual. E muitas são as personalidades que ao se aproximar das páginas do livro – por teólogos eruditas como Gerardo de Borgo San Donnino ou Guglielmo di Sant’Amore até o herege Joaquim de Fiore, sem esquecer de mencionar os papas e cardeais -, dentre estes um com papel especial oportunamente valorizado, Jerônimo de Ascoli, Ministro Geral da Ordem na década de 1270, que se torna Nicolau IV, primeiro papa franciscano a subir ao trono de Pedro em 1288.
Após cinco capítulos, que seguem envoltos em profundas controvérsias desencadeadas dentro e fora da Ordem Franciscana – e basta mencionar um bom capítulo, o terceiro volume, sobre lutas para tomar as habituais classes da Universidade de Paris, ou aqueles frades que seguiam uma regra, como os franciscanos e dominicanos, e leigos que, ao contrário dos primeiros, não seguiam ordens -, a autora conduz o leitor dentro da Basílica e, com paciência, se dedica à análise de cada uma das cenas, dos seus significados, do seu sentido, à luz dos mesmos instrumentos que apresentou ao leitor nos capítulos precedentes.
A necessidade de “amenizar” a mensagem de São Francisco envolveu a atuação da Cúria Pontifícia, em uma série de contramedidas que neutralizassem a força, de fato explosiva, do seu ensinamento. O livro permite mergulhar nos processos dos quais as obras trazem uma forte mensagem ideológica e se transformam em precursores de valores bem precisos. Ao longo do tempo, o passar dos séculos amenizou, com sempre acontece, os aspectos mais controversos dessas operações, mas as páginas da Frugoni, com a sua visão histórico-iconográfica, permitem de recuperá-las ao vivo.
A pesquisadora avalia posteriormente as datas impressas nas pinturas, voltando aos trabalhos de decoração da Basílica Superior nos últimos anos do século XIII. Essa ideia vale frisar, foi apoiada primeiramente por Luciano Bellosi. Cabe a ele de fato, referindo-se a um estudo de Hans Belting de 1977 (que seria verdadeiramente o caso de traduzir ao italiano), ter reconduzido a essa datação toda a decoração da Basílica, contendo as Histórias de São Francisco, obra de Giotto. Bellosi argumentou a sua intuição com muitos detalhes em 1985 (entre outros, exatamente neste ano foi publicado novamente o seu livro, A ovelha de Giotto) e em 1998.
Mas exatamente sobre um problema de datas, talvez, seria necessário discutir com os posicionamentos da Frugoni quando, um pouco nítido demais, afirma que os afrescos de Cimabue na abside e no transepto seria obra de 1270, e não, como sustenta Bellosi, cuja posição não é única, em anos não distantes do papado de Nicolau IV, que reinou como pontífice de 1288 a 1292. Além de determinados aspectos, porém, sobre os quais é necessário voltar com a devida dimensão, Frugoni reconhece – e isso é uma peça chave – a forte unidade do programa iconográfico, o objetivo de dotar a igreja mãe da Ordem com uma decoração à altura do prestígio do local, alinhado com as intuições e as pesquisas de Bellosi.
Tirando o fato de que não é uma leitura fácil, mas, certamente apaixonante, o leitor chega ao passado longínquo e pode alcançar uma série de nuances que caracterizavam o debate teológico daqueles anos sobre o problema, por exemplo, dos estigmas e de como tratar o milagre surpreendente concedido a São Francisco na história milenar da Igreja. Mas o debate assumia também conotações estritamente políticas, onde um dos governantes mais potentes do mundo, o papa, via uma forte ameaça a sua autoridade por parte de Francisco e seus seguidores.
Muitas são as ilustrações que acompanham o texto e que permitem que se siga, acima de tudo na segunda parte do volume, o raciocínio de Chiara Frugoni. Um livro que deveria fazer refletir, ainda, sobre temas tão atuais e tratados de uma forma inadequada, como o poder que as imagens guardam no seu uso ideologicamente orientado.
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Chiara Frugoni, o de Giotto não é Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU