"Em sua pregação João convida: 'produzi frutos que provem a vossa conversão'. Com isto o evangelho nos convida a trilhar um caminho de discernimento pelo qual ousamos avaliar com honestidade o quanto damos espaço para que a força transformadora da mensagem de Jesus nos alcance em nossa vida cotidiana. Trata-se de buscar um caminho de conversão de modo que possamos viver o Evangelho como um estilo de vida, impregnando nosso ser e agir de qualidade evangélica."
A reflexão é de Cleusa Maria Andreatta, idp, religiosa da Congregação das Irmãs da Divina Providência, teóloga, integrante da Equipe de Coordenação do Instituto Humanitas Unisinos.
Primeira leitura: Is 11,1-10
Salmo: Sl 71(72),1-2.7-8.12-13.17
Segunda Leitura: Rm 15,4-9
Evangelho: Mt 3,1-12
Estamos no segundo domingo do advento. Os textos bíblicos escolhidos para nossa reflexão neste domingo colocam em destaque o tema da conversão.
O Evangelho (Mt 3,1-12) nos convida a deixar ressoar em nossa vida o convite que chega através das palavras do profeta João Batista: “Convertam-se, porque o Reino do Céu está próximo”.
Uma possibilidade que liturgia da palavra de hoje nos oferece é refletirmos sobre a mensagem do Evangelho tendo como pano de fundo o horizonte de esperança apresentado pelo profeta Isaías na primeira leitura (Is 11,1-10). Este texto, escrito a mais de de 2730, tem ressonâncias prenhes de significado para os nossos dias.
Nascido por volta do ano 760 a. C, Isaías começou a profetizar ainda muito jovem. Sua missão profética prolongou-se durante os reinados de Jotam (740-736 a.C.), Acaz (736-716 a.C.) e Ezequias (716-687 a.C.), reis de Judá [1]. Foi uma época de expansão do império assírio, mediante uma política militar agressiva em vista de submeter os povos habitantes da região. Em tal contexto, Judá não escapou de envolver-se nos jogos da política internacional de então. Na visão político-profética de Isaías, Judá não deveria envolver-se nesses jogos políticos e sim abster-se de qualquer aliança política com potências estrangeiras. Entretanto, no reinado de Ezequias, Judá procurou libertar-se da influência assíria envolvendo-se numa coligação anti-assíria com o Egito, a Fenícia e a Babilónia. O profeta Isaías era totalmente contra essa decisão política por ser uma afonta ao poder assírio que conduziria à ruína de Judá. E, de fato, suas previsões futuras se concretizaram quando Senaquerib invadiu Judá, cercou Jerusalém e obrigou Ezequias a submeter-se ao poderio assírio (701 a.C.).
Portanto, o contexto da mensagem profética da primeira leitura é uma realidade é desoladora, atravessada por conflitos violentos, sofrimentos e injustiças, na qual o povo está desiludido e desesperançado. Em meio a essa realidade, o profeta Isaías palmílha as trilhas da vida cotidiana daquele povo como o profeta e poeta da esperança. E na leitura de hoje ele aparece apresentando o projeto de Deus em favor do Seu povo: no tempo oportuno surgirá um “ungido” de Javé, que inaugurará um mundo onde a justiça será restabelecida e onde reinará a paz sem fim.
Esta mensagem permite-nos entrever o anúncio do Menino de Belém, cuja vinda celebramos no Natal. Jesus é o “ungido”, o Messias, sobre o qual repousa o Espírito de Senhor. E na força deste mesmo Espírito, Ele anunciou a alegre e boa notícia Reino de Deus. Em tudo o que fez e ensinou Ele convidou as pessoas para viverem o amor, a solidariedade, a partilha, o compromisso com a justiça e a paz, segundo o projeto de Deus.
Com o que destacamos até aqui, podemos começar a nos perguntar:
- Que apelos à conversão podemos vislumbrar na palavra de Deus que vem ao nosso encontro, ao lê-la em conexão com a realidade da comunidade, da sociedade e do mundo em que vivemos?
- Que mudanças precisamos buscar em nossa vida para podermos colaborar no projeto do reino de Deus, um projeto de justiça, paz e alegria para a humanidade toda?
O evangelho nos desafia a expressar a nossa conversão em gestos concretos, vivendo com autenticidade e coerência o seguimento de Jesus. A conversão, como sabemos, não acontece de modo estanque, de uma vez por todas. Ela é um processo contínuo, um caminho que nos mantém em movimento, pessoal e comunitariamente, em busca das transformações de vida que fazem parte seguimento de Jesus em todas as fases de nossa vida. É um processo que depende da busca pessoal, sim, mas para o qual precisamos contar com da graça de Deus. É um caminho que só tem sentido percorrer na certeza do amor misericordioso de Deus.
O evangelho de hoje nos convida: “produzi frutos que provem a vossa conversão”. Este convite nos provoca a trilhar um caminho de discernimento pelo qual ousamos avaliar com honestidade o quanto damos espaço para que a força transformadora da mensagem de Jesus nos alcance em nossa vida cotidiana. Trata-se de buscar um caminho de conversão de modo que possamos viver o Evangelho como um estilo de vida, impregnando nosso ser e agir de qualidade evangélica.
A imagem do “machado” que “já está na raiz das árvores” e da "palha" que será que queimada, as quais são citadas no evangelho, são imagens profundamente inspiradoras para nossa reflexão neste tempo de Advento. Em um de seus comentários sobre o evangelho, o padre jesuíta Adroaldo Palaoro explora o sentido da metáfora das raízes nos seguintes termos: “O tempo litúrgico do Advento se revela como um momento privilegiado que nos motiva a ‘descer’ em direção às nossas raízes interiores, para ativá-las, cultivá-las e evangelizá-las. (...) É preciso levar as águas vivas do evangelho às profundezas do coração". [1]
Por outro lado, conversão à qual somos chamadas por causa do nosso compromisso com o evangelho estende-se para além da nossa vida pessoal, alcançando também nossa vida em comunidade e nossas relações sociais.
A segunda leitura (Rm 15,4-9) nos ajuda em nossa meditação na perspectiva da vida comunitária ao recordar que o seguimento de Jesus Cristo nos compromete a tornar seu rosto visível no mundo. Pelo testemunho de uma vida comunitária pautada pela busca de unidade e harmonia, acolhendo uns aos outros a exemplo de Cristo e ajudando os mais frágeis, somos convidados a ir colocando sinais concretos do mundo novo anunciado pelo profeta Isaías e que Jesus de Nazaré veio inaugurar.
Indo um pouco mais além, podemos também nos perguntar como a concepção cristã de conversão pode traduzir-se em ações concretas de transformaçao do mundo em que vivemos tendo em vista a instauração de um mundo de justiça e de paz segundo o projeto do Reino de Deus anunciado por Jesus e já sonhado no tempo de Isaías, como já referimos em nesta reflexão . O contexto social, político, cultural e, infelizmente, também o contexto religioso em que vivemos está saturado das "palhas" das dinâmicas inerentes a estruturas de pecado geradoras de violência e de injustiças que de múltiplas formas impregnam o tecido social em nosso tempo. Em tal contexto, certamente, quanto mais enraizarmos na Palavra de Deus a nossa vida na fé, vivida e compartilhada em comunidade, com mais clareza podemos discernir o compromisso sociotransformador decorrente seguimento de Jesus hoje.
Que Espírito de Deus, presente e atuante em nossa vida e na vida de toda a Igreja nos ilumine e nos conduza nesta caminhada de advento. Que ele nos sustente numa abertura à força transformadora do Evangelho em nossa vida!
[1] Advento: tempo para cuidar das raízes.
Referências
PATUZZO, Izabel – LORASCHI, Celso – SILVANO, Zuleica. 2º domngo do advento: O Reino de Deus está perto. In: Revista Vida Pastoral, novembro-dezembro de 2025 - ano 66 - número 366 - pp. 46-49.
Conversão do coração. Comentário de Raimond Gravel, 06.12.13.