"Amar a Deus e amar o próximo compõem o mesmo amor que é o núcleo da fé cristã. Este amor fundamenta os critérios que orientam nossas decisões. Tal como Jesus mesmo questionou “Por que chamais ‘Senhor! Senhor!’, mas não fazeis o que eu digo?” (Lc 6, 46), é preciso traduzir em ação a fé que professamos. Amar a Deus é dispor-se a escutar e viver o que Ele nos revelou como caminho de vida em Jesus. É preciso olhar para Jesus e, a partir do que viveu, ensinou e realizou, fazer escolhas e ter posicionamentos coerentes com o Evangelho e que promovam mudanças concretas na vida das pessoas, em particular, na dos pobres. Foi isso que Jesus fez; Ele amou a Deus com todo o seu ser e amou o próximo, em especial, os pobres a ponto de entregar sua vida."
A reflexão é de Carolina Mureb Santos, FC, Irmã da Companhia das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo. Ela é mestranda em Teologia Moral na PUC-SP, graduada em Teologia e Pedagogia, também pela PUC-SP e especialista em Ensino Religioso Escolar pela UNISAL. Membro da Sociedade Brasileira de Teologia Moral (SBTM) e do Grupo de Pesquisa PHAES (Pessoa Humana, Antropologia, Ética e Sexualidade) da PUC-SP. Atua na formação de leigos/as e consagrados/as e na orientação espiritual. Sua pesquisa se concentra em temáticas da Teologia Moral e da Educação Católica.
1ª leitura - Ex 22,20-26
Salmo - Sl 17(18),2-3a.3bc-4.47.51ab (R. 2)
2ª leitura - 1Ts 1,5c-10
Evangelho - Mt 22,34-40
Na oração da coleta deste 30º domingo do tempo comum, rezamos: “dai-nos amar o que ordenais para conseguirmos o que prometeis” e podemos nos perguntar: Deus ordena? E o que ordena? Em geral, um conjunto de palavras com significados semelhantes nos causa incômodo: ordem, ordenar, mandar, mandamento. Há um sentimento de imposição e, portanto, exclusão de liberdade. Diante de Deus, o ser humano sempre permanece livre para escolher como viver (Dt 30, 15-20), inclusive, para recusar-se a reconhecê-lo, a crer nele, a amá-lo e seguir seus mandamentos. Desde a criação (Gn 1), o que Deus diz, afirma, sempre cria vida, portanto, pode-se concluir que tudo o que Deus ordena ao ser humano cria ordem, harmonia, felicidade, vida em abundância (Jo 10,10). E o que Deus ordena ao ser humano?
É sobre isso que os fariseus vão questionar Jesus no Evangelho de hoje (Mt 22,34-40), que se encontra num bloco de disputas entre Jesus e os fariseus, os saduceus e, novamente, os fariseus. Os fariseus querem testar Jesus, pois, considerando que para eles há 613 mandamentos no Pentateuco, chamado de Lei, qual deles Jesus julgaria o mais importante? Jesus, então, sai do registro de compreensão do mandamento como cumprimento de uma regra para a experiência do amor: o mais importante que Deus nos pede é amá-Lo. E este amor não deve ficar restrito a um sentimento (coração) ou a pensamentos (alma) ou ainda a regras lógicas (entendimento), mas é um amor que integra e perpassa a pessoa em sua inteireza. Amar a Deus significa voltar-se para Ele com tudo que se é.
Jesus, então, vai além. Ele indica como o segundo mandamento um mandamento que diz ser semelhante ao primeiro: amar o próximo como a si mesmo. E conclui dizendo que do amor a Deus e ao próximo dependem toda a Lei e os Profetas. Nesse sentido, não é possível separar a prática do amor a Deus e do amor ao próximo, cultivando, por exemplo, um espiritualidade abstrata e intimista, verticalizada que se realiza em momentos orantes privados, e cujo conteúdo do diálogo com o Senhor se reduz às minhas necessidades, preocupações e interesses.
Na fé judaico-cristã o amor a Deus se verifica na vivência daquilo que Ele ordena. E a primeira leitura (Êxodo 22, 20-26) nos recorda que o Senhor proíbe a opressão dos mais frágeis e abandonados, representados nas categorias do estrangeiro, da viúva e do órfão. Além disso, toda exploração das necessidades dos pobres, seja na forma de juros ou de penhor, também é condenada. Deus protege a vida dos pobres e promete intervir em caso de injustiça, de não cumprimento do seu mandamento. O salmo 17 que rezamos hoje, demonstra exatamente a confiança do pequeno, do pobre que reconhece em Deus sua força e proteção, o único que pode vir em seu socorro para salvá-lo da perseguição.
A intervenção divina em favor dos pobres se dá a partir daqueles que amam a Deus e, por isso, se comprometem a fazer o que Ele ensina e orienta. Não é possível ser cristã e cristão sem acolher a Palavra e imitar o Senhor, como diz São Paulo na carta aos tessalonicenses (1Ts 1,5c-10). As palavras e os gestos de Jesus são a fonte da conduta ética de todo aquele que se apresenta como membro de sua comunidade, a Igreja. A liturgia de hoje nos convida a refletir sobre uma grande incoerência que se apresenta na vida de muitos cristãos: afirmar que ama a Deus, que Ele é o centro de sua vida e ser indiferente ao sofrimento dos irmãos e irmãs. São Vicente de Paulo, na França do século XVII, já dizia: “Como! Ser cristão, ver o irmão aflito e não chorar com ele, e não sofrer com ele! É não ter caridade. É ser cristão na aparência. É não ter humanidade. É ser pior que os animais”.
Amar a Deus e amar o próximo compõem o mesmo amor que é o núcleo da fé cristã. Este amor fundamenta os critérios que orientam nossas decisões. Tal como Jesus mesmo questionou “Por que chamais ‘Senhor! Senhor!’, mas não fazeis o que eu digo?” (Lc 6, 46), é preciso traduzir em ação a fé que professamos. Amar a Deus é dispor-se a escutar e viver o que Ele nos revelou como caminho de vida em Jesus. É preciso olhar para Jesus e, a partir do que viveu, ensinou e realizou, fazer escolhas e ter posicionamentos coerentes com o Evangelho e que promovam mudanças concretas na vida das pessoas, em particular, na dos pobres. Foi isso que Jesus fez; Ele amou a Deus com todo o seu ser e amou o próximo, em especial, os pobres a ponto de entregar sua vida.
Assim sendo, fazer o que Deus ordena não é uma renúncia à liberdade, mas exatamente a escolha por ela porque, seguindo o seu mandamento, o ser humano caminha em direção a se tornar o que é chamado a ser. O mandamento maior é amar; e amar é movimento de abertura a Deus e ao outro. Quanto de nossa vida estamos dispostos a entregar ao próximo, em forma de tempo, escuta, renúncia, serviço, como sinal de nosso amor a Deus?