"Jesus pede aos discípulos que olhem para ele e digam quem ele é. Ora, este olhar para Jesus é o mesmo olhar para Deus do AT, embora os discípulos talvez não percebessem isso em seu tempo. Nós, catequizados por João, lembramos a fala de Jesus: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,9). Ligar-se a Jesus é ligar-se também ao Pai. Mas Jesus insere nessa dinâmica da Aliança uma outra prerrogativa; para reconhece-lo, é preciso, também, olhar para os irmãos. Por isso, ele antes pergunta: quem dizem os homens ser o filho do homem? Para reconhecer Jesus, antes, é necessário saber ouvir os outros e reconhecer o mundo à nossa volta. Jesus se cloca em uma perspectiva horizontal, para demonstrar que o olhar para o alto se alcança quando antes podemos olhar para o lado. Ou, em outras palavras, para mostrar que o olhar para o lado nos conduz ao olhar mais profundo e desafiador que é para o alto. Jesus associa estes dois olhares para mostrar que o discípulo que deseja ligar-se ao Pai não pode estar indiferente ao que acontece à sua volta, para demonstrar que nenhum reconhecimento de Deus é possível de maneira individualista. As alianças individuais não se alcançam no individualismo, mas na sensibilidade ao que está ao redor, a quem está ao redor."
A reflexão é de Mariana Aparecida Venâncio, leiga. Doutoranda em Estudos Literários, ela possui graduação em teologia pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora - ES/JF (2016), especialização em sagrada escritura pelo Centro Universitário Claretiano (2018), mestrado em Letras (literatura Brasileira) pelo CES/JF. Atua como docente da Graduação em Teologia no CES/JF.
1ª leitura: Zc 12,10-11.13,1
Salmo: Sl 62(63),2abcd.2e-4.5-6.8-9 (R. 2ce)
2ª leitura: Gl 3,26-29
Evangelho: Lc 9,18-24
Irmãs, irmãos, divido com vocês algumas reflexões sobre os trechos da Escritura que ouviremos neste 12º domingo do Tempo Comum. Sempre considero importante reconhecer a temática que funciona como fio condutor da primeira leitura ao Evangelho. Neste domingo, podemos dizer que esta temática norteadora é a ligação estabelecida com Deus, a forma como o reconhecemos e nos unimos a Ele. É a partir dessa temática, portanto, que lemos as leituras e buscamos uma atualização.
A primeira leitura (Zc 12,10-11; 13,1) é retirada do livro do profeta Zacarias (Zc 12,10-11; 13,1). Zacarias escreve no pós-exílio, ao redor do ano 520, quando ainda é latente a questão do retorno à Terra como uma resposta divina à expiação dos pecados de Israel pela escravidão. Nessa época, em que as tradições religiosas estavam sendo reorganizadas, as leis de purificação e expiação recebiam destaque. Por isso, o tema da conversão e do retorno a YHWH são importantes.
No v. 10, o Senhor promete sobre a casa de Davi um espírito de graça e oração, que tem como consequência olhar para o Senhor. Isso é bonito, porque o Antigo Testamento é todo costurado pelo desejo de Israel de que o Senhor olhe para ele: assim cantamos no salmo 80, ou na bênção de Nm 6: que ele volte sobre nós o seu olhar, a sua face, e nos dê a paz. Zacarias, porém, fala de um movimento contrário, que é o de olhar para o Senhor. É porque temos a certeza de que Ele olhou para nós que nós também olharemos para ele. É a resposta do povo salvo pela escravidão: o Senhor olhou com misericórdia para o povo sofredor e o povo, agora, cheio da graça do Senhor, olhará de volta para ele estabelecendo uma ligação de via dupla, uma aliança.
Em Dn 4, a conversão de Nabucodonosor se dá quando ele é capaz de olhar para o alto. Ora, olhar para o alto, olhar para Deus, significa dar-se conta de que Ele existe e, mais ainda: dar-se conta de sua própria existência. Olhar para o alto é, portanto, satisfazer o desejo mais profundo e íntimo do coração humano, que é a sede de Deus, como cantamos nesta liturgia, no Salmo 62: A minh’alma tem sede de vós, como a terra sedenta, ó meu Deus. Vosso amor vale mais do que a vida, ansioso vos busco, venho contemplar-vos, meus lábios vos louvam, quero elevar a vós minhas mãos. Olhar para o Senhor nos ajuda a entender as buscas do nosso coração e, então, também nos ajuda a olhar para nós mesmos com aquela compaixão que nem sempre sabemos ter por nossas próprias mazelas. Olhar para o alto é dar-se conta Dele e de si. Para Zacarias, a possibilidade de olhar para o Senhor, essa ligação profunda estabelecida com o Senhor, é resultado do espírito de graça e oração e produz “uma fonte acessível à casa de Davi e aos habitantes de Jerusalém, para ablução e purificação”, uma fonte não material, aquela que está no coração, bem diferente dos rituais de purificação que estavam sendo reconstruídos naquele momento histórico. É sinal da graça que o Senhor dá, mesmo ferido por seu povo com uma ferida tão dolorosa como de morte. Graça que ele dá apesar da infidelidade do povo e do seu coração outrora distante.
No Evangelho de Lucas (Lc 9,18-24), esse olhar para o alto é associado por Jesus a uma outra direção, que é o olhar para o lado. Jesus pede aos discípulos que olhem para ele e digam quem ele é. Ora, este olhar para Jesus é o mesmo olhar para Deus do AT, embora os discípulos talvez não percebessem isso em seu tempo. Nós, catequizados por João, lembramos a fala de Jesus: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,9). Ligar-se a Jesus é ligar-se também ao Pai. Mas Jesus insere nessa dinâmica da Aliança uma outra prerrogativa; para reconhece-lo, é preciso, também, olhar para os irmãos. Por isso, ele antes pergunta: quem dizem os homens ser o filho do homem? Para reconhecer Jesus, antes, é necessário saber ouvir os outros e reconhecer o mundo à nossa volta. Jesus se cloca em uma perspectiva horizontal, para demonstrar que o olhar para o alto se alcança quando antes podemos olhar para o lado. Ou, em outras palavras, para mostrar que o olhar para o lado nos conduz ao olhar mais profundo e desafiador que é para o alto. Jesus associa estes dois olhares para mostrar que o discípulo que deseja ligar-se ao Pai não pode estar indiferente ao que acontece à sua volta, para demonstrar que nenhum reconhecimento de Deus é possível de maneira individualista. As alianças individuais não se alcançam no individualismo, mas na sensibilidade ao que está ao redor, a quem está ao redor.
Assim, a aliança com o Senhor vai permitindo que o discípulo reconheça a Deus e ao outro, mas também a si mesmo. Quem é o discípulo? Aquele que toma a sua cruz, renuncia a si mesmo, perde a sua vida por Jesus. Aquele que pertence a Cristo, conforme o que Paulo diz aos Gálatas no trecho da carta que lemos (Gl 3,26-29). Olhar para Jesus nos faz olhar de novo para a nossa vida e perceber que, com Jesus, não somos mais os mesmos, mas somos diferentes: revestidos de nova dignidade, comprometidos com um novo Reino, promotores de uma nova justiça, serventes em um novo projeto de amor.
O mais belo para mim é que Jesus nos abre um novo horizonte para que reconheçamos a Deus. E essa é a pista de atualização do Evangelho para os nossos dias. No Antigo Testamento, para conhecer a Deus e a si mesmo, olhávamos para o alto. A partir de Jesus, olhamos para o lado, para a frente, para o horizonte. Hoje, quando Jesus já não está mais presente entre nós em uma forma física, nosso olhar encontra a criação, mas principalmente o irmão.
Em tempos de individualismos e egoísmos multiplicados, é imperativo que saibamos olhar o outro, percebendo que ele é alguém que tem uma história, que enfrenta lutas diárias, que sofre e se alegra, que é digno de amor e responsabilidade assim como nós. Nosso tempo nos incentiva a lavarmos nossas mãos diante do outro, mas somos cristãos da esperança e da fraternidade, caminhamos contra a corrente, somos chamados por Jesus a reconhecer seu rosto no olhar comprometido para o outro.
Que a graça do Senhor, que fez o Antigo Israel olhar para o alto, faça-nos hoje saber olhar para o lado e ali, no outro e na criação, reconhecer a Deus!
Fidelidade no seguimento de Jesus