"Em tempos de necropolíticas em que vivemos um espírito de guerra, de inverdades e de acusações inverídicas em que a cultura do ódio e do cancelamento aponta para julgamentos e indiferenças, encontramos ainda hoje um cenário propício para pessoas terem 'pedras na mão'. Portanto, acolher essa mensagem de hoje em nossa vida é aceitar a proposta de mudança de rumos; é viver desafios que nós, mulheres e homens da atualidade, estamos acostumados a trilhar de outra forma; é olhar bem o nosso entorno e reparar o novo que pode estar surgindo; é abandonar caminhos e hábitos de outrora para conhecer a real mensagem de Jesus e as propostas que ele nos faz; é transformar projetos velhos, estruturas obsoletas e leis arcaicas em novas metas; é acolher uma vida nova assegurada pela misericórdia do Deus Libertador presente na nossa história diária."
A reflexão é da teóloga leiga Ivenise Santinon. Ela possui doutorado em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2009), mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2003) e Graduação em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1999). Atua como professora da Faculdade de Teologia, na PUC-Campinas, com atividade docente nas áreas da teologia, com ênfase na pastoral e na antropologia teológica. Estuda temas de teologia, ciências da religião, relações de gênero e da humanização.
1ª Leitura - Is 43,16-21
Salmo - Sl 125,1-2ab.2cd-3.4-5.6 (R. 3)
2ª Leitura - Fl 3,8-14
Evangelho - Jo 8,1-11
A liturgia deste final de semana nos remete à reflexão sobre nossas atitudes diante de condenações, impunidades e injustiças. A falta de esperanças em tempos obscuros, de violências e feminicídios que nos atingem, direta e indiretamente encontram a esperança na palavra de Deus, diante de revisão de decisões e de caminhos já percorridos. É uma palavra que nos dá coragem, força e esperança para trilharmos outros rumos, fazermos novas trajetórias. Propostas de transformação, de libertação e de busca por justiça estão nas leituras. Podemos nos esperançar com a personagem da mulher do Evangelho de João, esta que é acolhida e convidada por Jesus a viver uma vida nova. Que resiste ao contexto da sua época após escutar a declaração libertadora do Mestre.
Na primeira leitura (Is 43,16-21) o profeta Isaías nos convida a construirmos novas trajetórias. O texto se situa no séc. VI a.C., no contexto da Babilônia, cujos judeus exilados andavam muito apegados a fatos passados, e decepcionados também ficavam indignados com a própria fé. Neste momento da história surge esse grande profeta da esperança que confirmando as expectativas do Povo anuncia a libertação. Ele fala para não ficarem relembrando fatos antigos, pois Deus abrirá novas estradas, até no deserto. Mostra a saída do povo da Babilônia, a chegada à Terra Prometida e mostra sinais concretos da trajetória que culmina no êxodo do Egito.
Ao recordar a saída do Egito, a fonte de todas as libertações, ele alerta para não permanecer em um saudosismo que impacta a vida e impede de ver o novo acontecer. Diz: “Não vos lembreis mais dos acontecimentos passados, não presteis atenção às coisas antigas. Olhai: vou realizar uma coisa nova, que já começa a aparecer; não a vedes? Vou abrir um caminho no deserto e fazer brotar rios na terra árida”. Não mais teremos as terras secas, pois novas surgirão. Assim, as pessoas escravas no Egito deverão se lembrar que não há mais lugar para coisas obsoletas. Um novo caminho surgirá e se encarregará de libertar o povo. Basta enxergar adiante, reconhecer o que pode surgir à frente.
Assim o Salmo 126 (125) mostra o povo celebrando as maravilhas que Deus fez em suas vidas. Na volta à terra prometida se manifesta novamente a fidelidade e a justiça de Deus e ao cantar a recondução dos cativos, celebram a ação libertadora de Deus presente na história: “O Senhor fez maravilhas em favor do seu povo. Quando o Senhor fez regressar os cativos de Sião, parecia-nos viver um sonho. Da nossa boca brotavam expressões de alegria e de nossos lábios cânticos de júbilo”.
Na carta aos Filipenses (Fl 3,8-14) Paulo se encontrava preso. É um texto marcado por ternura e gratidão, onde os cristãos de Filipos enviaram-lhe um membro da comunidade para cuidar dele e levar recursos para as suas necessidades. Preocupado com os judaizantes que semeavam discórdias e colocam em dúvidas as atitudes relativas à própria fé, pregando regras e rituais que deveriam cumprir, mesmo que não mais tivessem sentido. Nesse sentido, para muitos, isso já acontecia com a circuncisão e obediência a lei de Moisés. Ele pede aos filipenses que não se deixem enganar na fé e dá o seu testemunho de adesão total ao projeto de Jesus Cristo (Fl 3,8-14). Motivado pelo grupo de Jesus, ele deixa tudo para trás tudo e prossegue com firmeza a sua nova meta.
Compreender a conversão de Paulo, a sua adesão plena ao projeto de Jesus Cristo significava “entrar em comunhão de vida e de meta”, numa adesão ao plano de Deus, de justiça e de anúncio de um Reino definitivo. Este indica uma busca incessante para alcançarmos novos caminhos, esquecendo os antigos. Este é um caminho contínuo em que tomamos consciência de situações injustas. E nos mostra a identificação total com Jesus Cristo para seguirmos em frente por novos trilhos de libertação. Nestes Deus nos acolherá e mostrará a sua força.
Alguns estudos sobre o Evangelho de hoje apontam que o trecho da leitura da “mulher adúltera” não constava originalmente no Evangelho Joanino. Este que, não fora escrito de uma só vez, mas em um processo ao longo de anos, onde sofreu acréscimos de episódios. Um destes acréscimos é o da mulher que ia ser apedrejada (Jo 8,1-11). Depois de uma discussão descrita no fim do capítulo 7, como Jesus não tinha casa em Jerusalém, ele foi para o Monte das Oliveiras, em um horto onde costumava passar a noite em oração (Jo 18,1). Mas o que será que Jesus tinha de tão motivador para ensinar a todas e todos que ali vinham antes do nascer do sol para poder escutá-lo?
Na questão da mulher Jesus ensina diante um contexto onde a centralidade da sua mensagem encontra-se na estratégia feita com a personagem da chamada adúltera. Jesus nos ensina diante do contexto preocupante e desafiador da época, e que o AT descrevia: desde Esdras e Neemias, a tendência oficial era de excluir a mulher de toda a atividade pública e de considerá-la inapta para qualquer função na sociedade, a não ser para a função de esposa e mãe.
Nesse sentido, grupos adversários de Jesus, preocupados em coloca-lo à prova, fosse quanto a seguir as leis fosse quanto a acusações e blasfêmias, quanto a colocá-lo em contradição diante dos legalistas da época. Para os escribas e fariseus, naquela realidade patriarcal e machista, a mulher não era o foco principal, o que desejavam realmente era encontrar motivos para condenar Jesus. E a mulher é usada como meio para chegar ao fim desejado por eles.
A acusação a Jesus causa indignação por ser parcial, injusta, pois o homem que comete adultério era poupado de julgamento. De acordo com a Lei (Lv 20,10 e Dt 22,22-24), ele não é culpado, mas sim a mulher. A atitude silenciosa de Jesus de se inclinar e escrever no chão dá aos seus adversários um tempo para pensar. E ao se erguer ao invés de uma resposta a pergunta deles vem uma provocação: “Aquele dentre vós que nunca pecou atire-lhe a primeira pedra”. E inclina-se novamente e continua a escrever no chão. O silêncio desconcertante, seguido por esta clara interpelação, leva aqueles homens e a nós hoje, a uma reflexão mais crítica nos julgamentos. Jesus não condena aquela mulher, mas dá a ela uma oportunidade nova, de conversão e de vida nova.
Em João 8,3-6ª, os escribas armam uma cilada com Jesus. Repentinamente chegam os escribas e os fariseus, trazendo consigo uma mulher pega em flagrante de adultério. Eles a colocam no meio da roda entre Jesus e o povo. Conforme a lei, esta mulher deveria ser apedrejada (Lv 20,10; Dt 22,22.24) e eles perguntam a Jesus: “E qual é a sua opinião?” Se Jesus dissesse: “Apliquem a lei”, eles diriam: “Ele não é tão bom como parece, porque mandou matar a pobre da mulher”. Se dissesse: “Não matem”, diriam: “Ele não é tão bom quanto parece, porque não observa a lei!”. Assim, sob a aparência de fidelidade a Deus, eles manipulam a lei e a mulher é usada para poderem acusar Jesus. Em João 8,6b-8 a reação de Jesus é escrever no chão. Jesus não discute a lei. Apenas muda o alvo do julgamento. Em vez de permitir que eles coloquem a luz da lei em cima da mulher para poder condená-la, pede que eles se examinem a si mesmos à luz do que a lei exige deles.
Em João 8,9-11, a resposta de Jesus desmonta os adversários que programavam uma emboscada, uma estratégia. Os fariseus e os escribas se retiram envergonhados, pois acontece ali o contrário do que esperavam. A pessoa condenada pela lei não era a mulher, mas eles mesmos, que pensavam ser fiéis à lei. No fim, Jesus fica sozinho com a mulher no meio da roda. Ele se levanta e olha para ela: “Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou!” Ela responde: “Ninguém, Senhor!” E Jesus: “Nem eu te condeno! Vai, e de agora em diante não peques mais!” Jesus não permite que alguém use a lei de Deus para condenar a mulher. Este episódio revela que Jesus é a esperança e a luz para enxergarmos a verdade. À luz da sua palavra, os que pareciam defensores da lei se revelam pecadores e eles mesmos o reconhecem, pois vão embora, a começar pelos mais velhos. E a mulher, considerada merecedora da pena de morte, fica em pé e diante de Jesus é absolvida e dignificada (cf. Jo 3,19-21).
Dentro do contexto da época, a situação da mulher do povo da Bíblia era a cultura geral. Mas até hoje, em muitos povos continua essa mesma mentalidade. Mulheres são mais julgadas e discriminadas do que os homens. A resistência da mulher crescia com a acolhida do exemplo de Jesus, mas na mesma proporção a sua marginalização ficava mais pesada a ponto de vermos a estrutura patriarcal e machista perdurar até hoje. Vemos que não é diferente, pois em muitas estruturas e circunstâncias se ouve palavras de consideração para conosco, mas vemos aumentar as desconsiderações sobre as mulheres, sobre os feminicídios e as situações de misoginia.
Conclusão: Em tempos de necropolíticas em que vivemos um espírito de guerra, de inverdades e de acusações inverídicas em que a cultura do ódio e do cancelamento aponta para julgamentos e indiferenças, encontramos ainda hoje um cenário propício para pessoas terem “pedras na mão". Portanto, acolher essa mensagem de hoje em nossa vida é aceitar a proposta de mudança de rumos; é viver desafios que nós, mulheres e homens da atualidade, estamos acostumados a trilhar de outra forma; é olhar bem o nosso entorno e reparar o novo que pode estar surgindo; é abandonar caminhos e hábitos de outrora para conhecer a real mensagem de Jesus e as propostas que ele nos faz; é transformar projetos velhos, estruturas obsoletas e leis arcaicas em novas metas; é acolher uma vida nova assegurada pela misericórdia do Deus Libertador presente na nossa história diária.