19 Julho 2008
"Convém, pois, que tenhamos necessidade de uma “ética forte” para enfrentar os tempos que nos esperam: para transformar em oportunidade de vida e de salvação a potência da técnica que apenas iniciamos a pôr em campo. Uma ética da responsabilidade global, diria", escreve Aldo Schiavone, intelectual italiano, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 17-07-2008.
Eis o artigo.
A relação que o Deus do Evangelho tem com o tempo e com a história – com a nossa história e com a nossa esperança de salvação, com a história das mulheres e dos homens desta terra – seja talvez o ponto mais enigmático e crucial de todo o cristianismo. A soberania de Deus sobre o tempo é absoluta e única e seu projeto é de todos desconhecido. “Daquele dia e daquela hora ninguém sabe, nem mesmo os anjos que estão no céu e nem o Filho, a não ser o Pai” (Marcos 13, 32-33). No entanto, Cristo decidiu encontrar a história do mundo, imergir totalmente nela, procurando despedaçá-la e revolucioná-la. Sua vida representa, na mensagem evangélica, a intersecção, a conexão entre o infinito e o finito; é o infinito que escolhe, embora não renunciando a si mesmo, fechar-se numa forma – aquela do homem – para resgatar sua existência e seu destino. Desde então, a cada dia, na simbologia comunitária da missa, ou também na solidão da prece, o crente renova a atordoante luminosidade deste contato, estabelecido para sempre.
Entre as muitas razões que me induzem a ter em grande consideração a intervenção que o cardeal Ruini quis dedicar (em Avvenire de 13 de julho) ao meu artigo que apareceu um dia antes em “Repubblica”, a primeira – de caráter puramente teórico – é a plena consciência que aí transparece de toda a problematicidade central deste nó (a uma segunda apreciação, digamos mais política, acenarei em seguida). Ruini escreve que o fato de que o homem seja, para a fé cristã, “imagem de Deus”, revela sua não completa “redutibilidade à natureza como à história”. Além disso, continuaria sempre a projetar algo: a centelha de Deus. O apelo a esta doutrina é perfeitamente pertinente.
Pergunto-me, no entanto, qual seja o significado da semelhança entre o homem e Deus, que encontramos num texto do “Gênesis (1, 26-27), que não cessa jamais de inquietar. Mesmo que a aceitemos como o núcleo de uma revelação (coisa que um não crente pode recusar-se a admitir, mas agora não me interessa esta perspectiva), parece-me que sua interpretação mais fundada nos reconduza novamente – pelo menos do lado dos homens – à história e somente à história. Que homem reflete, de fato, a “imagem” de Deus?
Parece-me que a comparação não possa ser referida a esta ou àquela figura que o humano tem assumido no decurso de sua caminhada, ou a uma insistente imutabilidade antropológica sua (também a antropologia é apenas história, somente mais “fria”, e muda também ela, embora muito mais lentamente).
É muito melhor entender a semelhança como projetividade e como desenvolvimento, tornados atuais pela presença salvadora de Cristo no tempo. Esta diz respeito ao nosso futuro (que é o presente de Deus, a quem é concedido conhecer o tempo como um bloco de gelo, e não como um rio que corre). Assemelhar-se a Deus não é, portanto, uma condição de partida, mas uma potencialidade e uma conquista, também elas, portanto, de certo modo históricas: que assinalam um reencontro e selam uma aliança no interior de um princípio universal de amor, como moral absoluta do divino. Eminência, resolver o humano unicamente em sua história não é “reduzi-lo”, mas exaltá-lo. Uma “redução” seria condená-lo à eterna imitação de uma natureza colocada fora dele.
E chego à apreciação política: o cardeal Ruini admite a importância de “um comportamento mais serenamente aberto por parte da Igreja num âmbito antropológico”: é isto não é pouco, parece-me. Ele a liga à possibilidade de superação da visão materialista do humano. Mas, estamos de acordo. A matéria (entendida modernamente) é somente uma forma – por certo não a única – do ser: baste a física a dizê-lo, sem incomodar a teologia. A história – do Universo como da nossa mente – é outra. Chegamos, portanto, a falar disso, - livres de preconceitos, de ambas as partes. Convém, pois, que tenhamos necessidade de uma “ética forte” para enfrentar os tempos que nos esperam: para transformar em oportunidade de vida e de salvação a potência da técnica que apenas iniciamos a pôr em campo. Uma ética da responsabilidade global, diria.
Para construí-la servem tanto imaginação, como conhecimento e amor. Nenhuma das culturas que nossa espécie elaborou até agora é suficiente para esta tarefa. É necessário pensarmos juntos. O catolicismo pode ajudar de modo determinante. Isto, se soubermos escutá-lo e se a Igreja souber dar-se conta que um intransigente testemunho de amor – ama o teu próximo como a ti mesmo – não necessita proteger-se por trás de nenhuma pretendida imutabilidade da natureza e de seus princípios. Também o amor, do lado dos homens, é somente história. Do lado de Deus, é mistério.
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Deus, a Igreja e a história - Instituto Humanitas Unisinos - IHU