04 Setembro 2007
O canadense Marcel Messier vive, atualmente, no Recife e dá apoio a uma das maiores favelas do Brasil, conhecida como "O Bode", onde vivem mais de 20 mil pessoas e onde está sendo venerado o corpo do Frei Damião. Ele conheceu e conviveu com Madre Teresa de Calcutá, na Índia. A IHU On-Line pediu e ele escreveu o seguinte depoimento, no dia 3-09-2007. Publicamos o depoimento no dia do 10o. aniversário da morte de Madre Teresa.
D. Hélder Câmara
Depois do meu doutorado em Paris, e que resultou no livro Foi et développement des peuples : deux utopies qui n`en font qu`une [Montréal, Canada : Bellarmin, 1974 161 p.] (1), voltei ao Recife e me tornei professor de teologia. Na ocasião de uma aula inaugural que dei sobre o pensamento de Teilhard de Chardin (2) na presença do Dom Helder Câmara (3), amigo e chanceler da Universidade (4) onde os jesuítas proibiam que ele botasse o pé, fui identificado pelos militares como um subversivo. Assim, tive direito à presença de um oficial do exército que gravava as minhas aulas.
Saí então do Brasil, antes de ser expulso ou morto, como o Pe. Henrique (5), e fui para Paris onde ajudei a preparar os jovens que vinham em cooperação na América Latina.
Convidado em seguida pelo governo canadense a ser o conselheiro do Presidente da Agência Canadense de Desenvolvimento Internacional (ACDI), voltei ao Canadá. De conselheiro, tornei-me, depois de quatro anos, diretor dos programas com o Magreb (Argélia, Tunísia e Marrocos), depois com o Sahel (Mali, Burkina Faso, Senegal, Niger, Chad) e, por fim, diretor do desenvolvimento e da coordenação das políticas de desenvolvimento. Durante este período da minha vida, negociei com o Fundo Monetário Internacional (FMI), com o Banco Mundial e Interamericano e com todos os Bancos Árabes. Dirigi também várias equipes de negociação bilateral e multilateral em vários países da África. Dei aulas de pós-graduação na Universidade de Ottawa sobre a Gestão pública do desenvolvimento. Acabei a minha carreira internacional como embaixador das Nações Unidas (FAO) no Haiti, na República Centro-Africana, na Costa do Marfim e no Vietnã.
Lebret e Chenu
Em 1964, iniciei em Paris um doutorado sobre a teologia do desenvolvimento, dirigido pelo Pe. Chenu (6), um dominicano teólogo do Concílio Vaticano II. Nos seminários da Universidade Católica e no IRFED (Instituto de pesquisa, formação e desenvolvimento fundado pelo Padre Lebret [7]em 1958), sempre se questionava a noção de “subdesenvolvimento”. Acompanhando um grupo de estudantes que iam ajudar na construção de um leprosário em Koviloor na Índia, decidi viver uma experiência humana que me permitiria de sentir e descobrir assim o que constitui um estado do “subdesenvolvido”. Saí de pé no chão e sem bagagem de Madurai, uma cidade sagrada do sul da Índia e andei até o Himalaia no Norte. Fiz isso durante 4 meses. Foi durante esta peregrinação através da Índia que vim a bater nas portas de Calcutá, exausto e moribundo numa rua onde outros, como eu, estavam deitados esperando a morte. Numa dessas noites, fui recolhido por duas Irmãs da Caridade, a congregação fundada pela Madre Teresa. Levaram-me ao “mouroir”, uma sala onde jaziam uns quarenta moribundos. É lá que descobriram que eu era canadense e jesuíta.
Colheradas de arroz
A própria Madre Teresa me recuperou aos poucos me dando colheradas de arroz, legumes e frutas. Depois de quatro dias, eu estava em pé e celebrava a missa para ela e os seus pensionistas numa pequena mesa no meio da sala perto do necrotério, onde estavam recolhidos os corpos dos homens e das mulheres que tinham morrido durante a noite. A Madre Teresa estava ajoelhada ao pé do altar e rezava com as mãos cruzadas. Um dia ela se deu conta, no meio da missa, que um homem estava agonizando e me pediu para batizá-lo. Recusei-me dizendo que ele era hindu e nem sabia nada deste sacramento. Ela insistiu dizendo: se ele soubesse de Cristo, ele quereria se batizar. Batizei o homem para atender ao pedido dela, mas como teólogo sabia que este gesto não fazia sentido para mim. Quando ele morreu durante a missa, ela disse em voz alta: já está com Deus!
Panela vazia... e todos comeram!
Durante a minha estadia na casa da Madre Teresa, uma irmã me contou o fato seguinte. Para o almoço, há cinco semanas, não tinha comida suficiente, pois os homens de negócios que davam o arroz, os legumes e as frutas tinham trazido bem pouco arroz. Então, a irmã cozinheira para poder dar um pouco a todos, mandava pratos contendo apenas uma colher de arroz. A Madre Teresa, que sempre dava de comer aos moribundos, foi à cozinha dizer à irmã que enchesse os pratos, pois as pessoas estavam morrendo de fome. A irmã mostrou a panela com pouco arroz, mas a Madre Teresa insistiu e voltou para alimentar os famintos. Depois de um tempo, a ração diminuiu a tal ponto que a Madre Teresa voltou à cozinha reclamando. A irmã mostrou a panela quase vazia. A Madre Teresa deu ordem de servir maiores porções e voltou à sala. A irmã me disse: servi porções grandes e sobrou arroz na panela!
Cigarros
Outro fato significativo da maneira dela se relacionar com os seus moribundos. Muitos turistas de vários países visitavam o “mouroir” da Madre Teresa. Eu sempre servia de intérprete para quem falava francês, espanhol ou português. Numa tarde, um grupo de franceses comovidos pelo trabalho da Madre deixou uma boa esmola em suas mãos. Logo ela separou uma quantia, chamou uma irmã e pediu que ela fosse comprar cigarros. Os franceses, escutando a palavra cigarro, começaram a fofocar, o que chamou a atenção da Madre Teresa. Ela me perguntou o que diziam. Eu estava envergonhado de dizer que os franceses estavam escandalizados por ela ter mandado comprar cigarros com o dinheiro dado, pois diziam que esta gente morria de fome. A Madre Teresa olhou para eles e disse: vocês acham que eles não têm o direito de se alegrar de um bom cigarro antes de morrer? Neste momento, entendi que ela lidava não com corpos, mas com pessoas.
Depois de um mês, a compreendi melhor quando colocou nos meus braços uma criança recém-nascida abandonada no lixo e deposta na porta, me dizendo: "Coloca esta criança perto do seu coração e assim vai sentir bater o coração de toda a Índia".
A Madre Teresa era uma mulher baixa, toda enrugada e que pouco sorria. Era séria e sempre atarefada. Mas perto dela me sentia invadido de uma grande energia. E procurava ficar perto dela, que sempre me dizia: "Volta para o seu país para ajudar a mudar a mentalidade dos ricos que não querem abrir mão dos seus privilégios. O nosso povo está morrendo de fome por causa disto". "Não se deixe levar por ilusões espirituais", me dizia, pois eu lhe tinha contado a minha intenção de me tornar um saddhu e ir viver como eles numa caverna das montanhas, abandonando a minha tese em Paris. Escutei o que ela me pediu, e voltei a Paris para concluir a minha tese, consagrando a minha vida ao objetivo que ela me apresentou.
As cartas
Não posso comentar o conteúdo destas cartas que ela deixou, mas que ela queria destruir. Não li essas cartas. Mas, ao querer destruí-las, ela devia saber que no contexto em que vivia seria difícil fazer-se entender.
As nossas crenças a respeito das pessoas tornam muitas vezes impossível elas mudarem. Mesmo querendo. Certos artistas conservem o mesmo visual toda a vida para corresponder ao que os seus admiradores querem. As interpretações que estão sendo dadas da Madre Teresa e da sua experiência espiritual mostram com que facilidade se pode recuperar a experiência dela, comparando-a às experiências de grandes místicos do passado. Esta recuperação não resiste a uma análise fria e lúcida, fora do contexto da crença. A Madre Teresa fazia o que ela achava bom para ela. Como professora da elite de Calcutá, ela se comoveu ao ver tanta gente pobre morrendo nas ruas, enquanto no colégio onde ensinava as meninas de famílias ricas tinham de tudo. E certamente ela se sentia culpada. Decidiu se separar desta comunidade que prega a pobreza, mas que de fato vive como se não tivesse feito voto. Ela queria ser autêntica e oferecer às meninas que também se tinham comovido por tanta miséria uma oportunidade de se dar um objetivo na vida. Consagrar-se ao socorro dos miseráveis é uma tarefa altamente valorizada na sociedade e nas nossas crenças uma maneira de identificar-se com Jesus Cristo. Madre Teresa não queria uma vida banal. Ela tinha deixado o seu país para ter uma vida valorizada. E aí encontrou uma ocasião de optar por ela.
Quero dizer que as nossas crenças, ensinadas pelos nossos pais e nas nossas escolas, veiculadas na nossa sociedade brasileira, são apenas crenças. Vivi ao longo da minha vida perto dos muçulmanos (fui diretor das relações do governo canadense com os bancos árabes), dos marxistas (participei ativamente da revolução dos estudantes em Paris no ano 1968 ao lado dos trotskistas, maoístas, leninistas), dos animistas (vivi cinco anos na África), dos budistas e adeptos de Confúcio (vivi quatro anos no Vietnã), dos hindus (andei a pé do sul ao norte da Índia). Para todos eles, e são mais de três bilhões de pessoas, as nossas crenças são as nossas crenças. E a Madre Teresa vivia no quotidiano com esta gente possuindo também outras crenças ricas, uma religiosidade que impregna cada gesto. Não estranho que ela tenha questionado as suas próprias crenças e tenha descoberto que de fato toda esta religião bem podia ser apenas um trampolim que lhe permitia cumprir a missão que um dia ela se deu: ajudar as pessoas abandonadas, os moribundos, sendo levada um dia após o outro no mundo das comunicações, até chegar a receber o prêmio Nobel da Paz e ser considerada pelo chefe da sua Igreja e pelo público em geral como uma santa. Nada mais normal para quem vive uma vida heróica e inspiradora. Ela me tinha pedido de rezar para que a sua Congregação não se tornasse como as outras: presas em regras esterelizantes! Devia perceber que vivia em rituais, mas não podia mais sair-se deles. Todo o mundo colocava a os olhos sobre dela.
Acho que não temos que discutir da fé dela. Ela acreditava ou não? Para mim, pouco importa. Devemos simplesmente nos inspirar na obra dela, pois ela lutava contra a morte e espalhava vida ao redor de si. Crendo ou não, ela atingiu o seu objetivo, vivendo na escuridão das suas crenças, mas foi até o fim das suas escolhas, desmistificando nas suas cartas as interpretações que alguns davam das suas motivações. Pouco deve importar conhecer as motivações se elas constituem a energia indispensável para a pessoa gerar a vida no mundo cada dia. Esta energia bem pode chamar-se Deus que mantém o universo em suas mãos. Ou ter outros nomes.
Quero ler as cartas que a Madre Teresa deixou para saber o que ELA dizia de si. Amei-a porque ela me deu energia para cumprir uma vida extraordinária ao serviço dos povos menos favorecidos do nosso planeta. O teólogo em mim cedeu o lugar ao homem simples, que não questiona os motivos de agir dos outros, mas aprende a ler no quotidiano por onde passa a VIDA. Assim, pode remover os obstáculos para ela passar. A Madre Teresa sabia ler e é isto que fazia.
Notas:
(1) Fé e desenvolvimento: duas utopias que são uma.
(2) Pierre Teilhard de Chardin foi um padre jesuíta, teólogo, filósofo e paleontólogo francês. Como escritor, a sua obra-prima é O Fenômeno Humano, além de centenas de outros escritos sobre a condição humana. Como paleontólogo, esteve presente na descoberta do Homem de Pequim.
(3) Dom Hélder Pessoa Câmara foi um bispo católico, arcebispo emérito de Olinda e Recife. Teve participação ativa no Concílio Ecumênico Vaticano II, sendo um dos propositores e signatários do Pacto das Catacumbas, um documento assinado por cerca de 40 padres conciliares no dia 16 de novembro de 1965, nas catacumbas de Domitila, em Roma, durante o Concílio Vaticano II, depois de celebrarem juntos a Eucaristia. Este pacto teve forte influência na Teologia da Libertação.
(4) A Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP foi criada a 27 de setembro de 1951 e reconhecida pelo Governo Federal através do Decreto 30.417 de 18 de janeiro de 1952. Originando-se da primeira Escola Superior Católica da região, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Manoel da Nóbrega, fundada em 1943, pela Província dos Jesuítas do Nordeste.
(5) Henrique Pereira Neto, padre jovem, assessor de Dom Hélder Câmara, assassinado pela repressão da ditadura militar brasileira, em 1969.
(6) Teólogo dominicano francês, foi professor de teologia medieval (1920-1942) e diretor (1932-1942) da Universidade de Le Saulchoir (Bélgica), cargo do qual foi destituído por decisão do Santo Oficio, que incluiu no Índice sua obra Le Saulchoir, uma escola de teologia (1937). Em suas obras, A fé na inteligência e O Evangelho na história (1964), defende a liberdade na investigação teológica e na ação missionária da Igreja. Aplicou o método sociológico à análise eclesiástica (A doutrina social da Igreja como ideologia, 1979). Seu pensamento influenciou no movimento de reforma que culminou no Concilio Vaticano II, em cujas sessões participou como perito.
(7) Padre Lebret é considerado um pioneiro do movimento teórico do desenvolvimento econômico que surgiu depois da segunda guerra mundial. Sua visão humanista da economia é muito atual até os dias de hoje. Foi capelão de pescadores e promotor de uma economia cooperativa na busca de melhorias para o mundo dos marinheiros. Em 1941 fundou o movimento Economia e Humanismo, a partir do qual, em companhia de François Perroux, construiu e ilustrou a problemática e a prática da Economia Humana, preocupada, fundamentalmente, em gerar uma nova aproximação dos estudiosos sociais à realidade, abrindo-se a uma visão global da dinâmica das sociedades e das culturas. Em 1953 integrou-se a Organização das Nações Unidas para estabelecer os Níveis de Desenvolvimento no Mundo. Em companhia de Josué de Castro, Diretor da FAO, trabalhou para estabelecer uma ação internacional, lutar contra as desigualdades e promover uma nova Ética do Desenvolvimento.
Para ler mais:
- Madre Teresa de Calcutá – a noite escura de uma santa. Artigo de James Martin.
- A noite escura de Madre Teresa de Calcutá. Entrevista especial com Luis González-Quevedo.
- A noite escura de Madre Teresa de Calcutá
- Madre Teresa de Calcutá quis destruir as cartas de sua crise de fé
- O lado menos conhecido de Teresa de Calcutá
- Teresa de Calcutá e os teólogos da libertação
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- Em defesa da legalização e da descriminalização do aborto
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"Ela acreditava ou não em Deus? Para mim pouco importa. O que importa é a sua obra". Um testemunho de Marcel Messier - Instituto Humanitas Unisinos - IHU