31 Outubro 2011
Na cúpula eclesiástica, finge-se que não se vê a realidade de uma catolicidade dividida, onde se multiplicam fiéis que, em termos de fé, moral, doutrina e relação com a sociedade contemporânea, têm abordagens distantes do magistério pontifício.
Publicamos aqui um trecho do livro Joseph Ratzinger. Crisi di un papato, do vaticanista italiano Marco Politi, publicado no jornal Il Fatto Quotidiano, 08-10-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
As polêmicas sobre o caso Williamson (o bispo lefebvriano negacionista ao qual Bento XVI removeu a excomunhão em 2009, junto com outros três prelados cismáticos) coloca em discussão explicitamente o modo com o qual Bento XVI governa a Igreja. Os observadores denunciam uma Curia em desordem, um papa encerrado no seu palácio e constrangido a enfrentar uma tempestade que o L"Osservatore Romano define como inaudita nos tempos recentes.
São dias em que um veterano de Cúria confia em off: "Embora ele tenha estado no Vaticano por mais de 20 anos na qualidade de prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Ratzinger não conhece a cúria de fato. Ontem, ele estava trancado na sua sala no Santo Ofício, hoje está fechado no seu escritório de pontífice. Ele é um teólogo, não um homem de governo. Ele passa metade do dia se ocupando com os problemas da Igreja e a outra metade, concentrado nas suas pesquisas sobre Jesus".
Certamente, existem em torno dele os "fidelíssimos". À frente, o cardeal secretário de Estado Bertone. Mas a fidelidade não basta. Os sinais de que algo não funciona sobre a ponte de comando no Vaticano foram logo entrevistos. Se o conflito com o mundo islâmico que explodiu em Regensburg ainda podia ser considerado como um incidente dos mais indulgentes, as coisas mudaram em 2007: quando entra em cena, em Varsóvia, a nomeação sem precedentes – e depois a precipitada revogação – de um bispo informante dos serviços secretos comunistas, a opinião pública sente a ausência de uma liderança segura.
Comentam no Herald Tribune os enviados Craig S. Smith e Ian Fisher: "Embora a sua grande experiência em doutrina e teologia seja indiscutível, alguns críticos afirmam que (o Papa Bento XVI) carece de um pleno domínio da habilidade política necessária para uma organização tão grande e complexa como a Igreja Católica... Há quem sugira que o papa não é bem auxiliado pelos seus conselheiros, ou tem a tendência de tomar decisões importantes principalmente por conta própria".
Bento XVI estuda atentamente os processos que lhe são submetidos, mas o seu modo de trabalhar é tendencialmente solitário. Os contatos com os seus colaboradores se concentram principalmente nas chamadas "audiências de tabela", os regulares encontros semanais com o secretário de Estado, o Substituto, o ministro do Exterior, o prefeito das Congregações para a Doutrina da Fé e dos Bispos.
Só duas vezes por ano, ocorre a reunião colegial dos responsáveis de todas as congregações. É como se o chefe de Estado ou de governo de uma potência internacional reunisse o conselho de ministros unicamente a cada seis meses. João Paulo II recebia individualmente, a cada dois anos, os embaixadores papais para tomar o pulso da situação internacional. Bento XVI concede-lhes uma audiência protocolar por ocasião da transferência para uma nova sede.
Sem líder político
Bento XVI não utiliza nem os almoços de trabalho, instrumento que João Paulo II aproveitava largamente. "Wojtyla governava ouvindo", comenta o historiador Andrea Riccardi, líder da Comunidade de Santo Egídio, e "jamais comia sozinho".
Assim, criou-se um clima no Vaticano, cuja característica dominante é de "não perturbar o motorista". Um cardeal no Norte da Europa defende que Bento XVI "é tímido, mas hesita em defender suas próprias ideias". Por isso é difícil fazer com que ele as mude.
O cardeal Tarcisio Bertone, secretário de Estado, não pode ou não consegue se opor a esse conjunto de fatores. Desde o momento da sua nomeação, ele foi considerado pela Cúria como um forasteiro e assim continua sendo percebido. Na Cúria, ele é considerado responsável por não ter mão política (no sentido técnico do termo) na condução do governo da Santa Sé. Muitos curiais tem saudade do punho de ferro do ex-secretário de Estado, Sodano, e sentem falta da era wojtyliana, era em que "havia uma linha, uma visão, orgulho de fazer e palavras de ordem precisas".
Bertone é julgado com perplexidade por ter envolvido excessivamente o seu papel nos jogos da política italiana. É recordada a sua participação em um jantar, organizado no dia 8 de julho de 2010 por Bruno Vespa. A presença do cardeal acabou avalizando um favor do apresentador de televisão [Vespa] ao hóspede príncipe da noite, o primeiro-ministro Silvio Berlusconi, que tentou convencer o comensal Pier Ferdinando Casini, líder da UDC, a entrar no seu governo. Saber que o máximo colaborador do pontífice aceitou (acabou por) servir de moldura para um tête-à-tête tipicamente político suscita muitos maus humores na cúria.
O teólogo que não ouve
Em Bento XVI, reconhece-se uma inteligência particularmente aguda, um estilo de vida austero, uma vasta formação teológica, uma rejeição de qualquer familismo de aliança. A observação que lhe é dirigida é a de enfrentar os problemas exclusivamente segundo uma impostação teológica.
Um problema essencial, que desnuda as dificuldades do governo central da Igreja, refere-se ao insuficiente debate sobre as decisões a serem tomadas. Com relação às dimensões da comunidade católica mundial e ao cenário internacional, em que a Santa Sé opera, a discussão é praticamente asfixiante. Mais de um cardeal defende a urgência de deixar que os "bispos falem livremente, ouvindo o que eles dizem".
Uma outra crítica diz respeito à instauração de um clima de excessiva apologia ao pontífice. O historiador Giovanni Miccoli observa: "É como se não houvesse quem tem nas mãos o timão do comando do governo .O Papa Ratzinger escreve livros, documentos, discursos, concentra-se sobre a relação entre fé e razão". O sociólogo católico Franco Garelli acrescenta: "Percebe-se uma fraqueza do governo institucional. Muitas vezes, mais do que o consenso, prevalece a reverência".
Teoricamente, desde o início, Ratzinger teve presente a exigência de não vincular a Igreja do terceiro milênio ao modelo absolutista. "Uma Igreja de dimensões global, e nesta situação do planeta, não pode ser governada de modo monárquico", garantiu ele cinco meses antes de ser eleito. Não foi assim. Em seis anos, foram realizadas somente três reuniões plenárias do Colégio Cardinalício.
Uma catolicidade dividida
O papa de 84 anos viaja, publica documentos, faz seus discursos, mas, além dessas atividades, muitos fiéis percebem uma situação de imobilismo. Enquanto isso, aprofunda-se, dentro da comunidade católica, a ruptura entre duas grandes tendências. Aqueles que se encastelam na reafirmação da "identidade católica", e aqueles que esperam uma Igreja capaz de lidar com as novas temáticas. Na cúpula eclesiástica, finge-se que não se vê a realidade de uma catolicidade dividida, onde se multiplicam fiéis que, em termos de fé, moral, doutrina e relação com a sociedade contemporânea, têm abordagens distantes do magistério pontifício.
Depois de uma primeira explosão de consensos, a atração pelo Papa Ratzinger diminuiu. O declínio começou no terceiro ano de pontificado. A Itália, com sua cobertura jornalística quase cotidiana, continua sendo um caso à parte. Na arena internacional, Ratzinger continua sendo percebido como personalidade de alto perfil que afeta as elites culturais. No entanto, diminuiu a ressonância planetária do papado.
É sobretudo a concepção da relação entre Igreja e sociedade que abre interrogações sobre o atual pontificado. Este mundo tão multiforme em suas crenças, tão secularizado, tão irredutível ao velho esquema de "uma fé – um povo – uma autoridade de Igreja" e, ao mesmo tempo, tão vital nas suas pulsões religiosas, aparece, para a Igreja ratzingeriana, sob a máscara do inimigo.
Bento XVI entrevê no cenário contemporâneo uma "ação multiforme que visa a destruir as raízes cristãs da civilização ocidental". Às vezes, a situação atual lhe parece semelhante – e ele diz isso abertamente – ao declínio do Império Romano.
Ratzinger jamais apresentou um programa de governo. Com o passar dos anos, essa impostação – o fato de ter deslocado a ênfase do planejamento à pregação – pesa. O Papa Wojtyla criou o seu projeto ao longo do caminho. Paulo VI havia se colocado a missão de levar a termo o Concílio Vaticano II e de completá-lo com os documentos e as instituições necessárias. Pio XII, depois da Segunda Guerra Mundial, tinha o claro objetivo de reorganizar a "sociedade cristã", modernizando-a nas suas formas de ação. Bento XVI, no fundo, permaneceu um pensador, mais do que um homem de governo.
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Crise de um papado: a solidão de Bento XVI - Instituto Humanitas Unisinos - IHU