01 Março 2011
"Fugir de uma fome ou guerra ou morte certa para encontrar um mar tempestuoso, torturadores impiedosos, uma terra desconhecida, uma acolhida agressiva, uma existência miserável: é um pouco disso o paradigma comum a muitos migrantes".
A opinião é de Gianfranco Ravasi, cardeal presidente do Pontifício Conselho da Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 27-02-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O ser humano pode até ser um homo viator, mas tentem perguntar a um imigrante ou emigrante se a sua experiência de vida e de conhecimento é entusiasmante... Mesmo que ignore quem seja Montaigne e certamente não compartilhe com ele a ansiedade interior, poderia, porém, prosaicamente, transcrever para si mesmo uma nota dos Ensaios: "A quem me pergunta a razão das minhas viagens, simplesmente respondo que sei bem daquilo que fujo, mas não aquilo que procuro".
Fugir de uma fome ou guerra ou morte certa para encontrar um mar tempestuoso, torturadores impiedosos, uma terra desconhecida, uma acolhida agressiva, uma existência miserável: é um pouco disso o paradigma comum a muitos migrantes, assim como para nós o modelo de hospitalidade dominante é frequentemente apenas o da segurança. Embora legítima, ela, porém, se amplia a um guarda-chuva sobre tantos outros medos ou egoísmos.
As consequências são, então, a extenuação dos direitos civis (às vezes também só o dos "humanos"), as políticas restritivas sobre os fluxos, as reações protecionistas, as contradições entre a necessidade dos braços externos e a rejeição da sua presença embaraçosa, as formas sutis de xenofobia encobertas por autodefesa sociorreligiosa para torná-las menos ofensivas e assim por diante. Sobre isso, queremos sugerir a leitura do romance Il fuggitivo, do jornalista dinamarquês Olav Hergel, uma provocativa mas muito realista parábola sobre o fenômeno assim como é vivido na ex-hospitaleira Dinamarca, vítima dos seus medos e dos ímpetos nacional-populistas (o livro foi traduzido na Itália pela sempre benemérita Iperborea, 398 páginas, na sua nova coleção "Ombre").
Mas a verdadeira surpresa que queremos assinalar aos nossos leitores é nada menos do que um dicionário inteiro intitulado Migrazioni, preparado com coragem pela editora San Paolo em 156 vocábulos escritos por 123 autores, segundo um recorte "sociopastoral", mas também amplamente interdisciplinar, com o envolvimento da sociologia, da política, da cultura, da psicologia, da economia, tudo em quase 1.150 páginas, ricas em dados, análises e bibliografias. É uma obra verdadeiramente original e inédita, que revela a sensibilidade reservada ao tema por parte da comunidade eclesial não só italiana.
De fato, são quatro os documentos oficiais, que, a partir de Pio XII em 1952, passando depois por Paulo VI em 1970 e em 1978, chegando a João Paulo II em 2004, são ilustrados nessas páginas. A eles, agrega-se uma constelação de notas, orientações, propostas, indicações oferecidas por cerca de 15 Conferências Episcopais dos mais diversos países do mundo, enquanto – ao lado de figuras de testemunhas apaixonadas como São João Bosco ou Santo Francesca Cabrini ou o beato João Batista Scalabrini (também é scalabriniano o organizador do dicionário, Graziano Battistella) – surgia em 1988 um dicastério vaticano específico, o Conselho Pontifício para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes, atualmente presidido por um arcebispo italiano, Antonio Maria Vegliò.
Os aspectos teológico-pastorais, porém, se cruzam constantemente com as questões socioculturais como a integração, a mobilidade, a cidadania, a cooperação, a criminalidade, os direitos, as discriminações, as expulsões, a globalização, a inculturação, a interculturalidade, a multiculturalidade, as políticas e as redes migratórias, a reunificação familiar, a saúde, a segurança e até os envios dos migrantes, as cauções aos que oferecem trabalho, o tráfico e a venda dos migrantes, as mulheres em emigração e as recaídas demográficas.
Quisemos abundar na exemplificação para fazer compreender o quanto esse subsídio não deve ser relegado às margens das comunidades eclesiais, mas deve ser, sim, consultado também em âmbito sociopolítico (dentre outras coisas, alinham-se vários verbetes sobre as diversas convenções internacionais de Dublin, de Genebra, de Schengen e assim por diante, sobre as diferentes normativas jurídicas e sobre as organizações internacionais dedicadas ao problema migratório).
Certamente, não se pode ignorar que o tema tem o seu referente espiritual no texto bíblico sagrado: ele é totalmente constelado por sujeitos que tornam o assunto capital para a fé cristã. Basta pensar só naqueles eventos fundamentais que são o êxodo de Israel, a terra prometida, a peregrinação, o exílio, a diáspora, a dialética entre Babel e o Pentecostes jerosolimitano. A raiz última da genealogia bíblica é Abraão, um estrangeiro que migra de Ur até a terra de Canaã. Um pacto universal liga Deus a Noé, que precede e excede a área étnica hebraica (o "noaquismo" é, na prática, a teologia das religiões segundo o judaísmo). A antepassada do rei Davi é uma imigrante moabita. Tobias é um hebreu na diáspora. O profeta Jeremias terminará os seus dias exilado no Egito. Jonas é um renitente "missionário" enviado a estrangeiros adversários de Israel (os Assírios de Nínive). O pequeno Jesus é um refugiado com a sua familiazinha em fuga no Egito, e o cristianismo não hesitará em logo acolher em seu seio um centurião romano, Cornélio, assim como o diácono Filipe se transformará em assistente social e educador de imigrantes e estrangeiros (leia-se Atos 6,1-6 e 8, 4-25).
Tudo isso e outras coisas serão descobertos lendo os verbetes bíblicos do dicionários sobre o qual, idealmente, destacam-se dois grandes motes. O primeiro é o que ressoa na legislação vetero-testamentária, frequentemente considerada alérgica ao universalismo e até exclusivista: "Haverá uma mesma lei para o natural e o estrangeiro que peregrina entre vós... Quando um imigrante habitar convosco no país, não o oprimais. O imigrante será para vós um concidadão: tu o amarás como a ti mesmo, porque fostes imigrantes na terra do Egito" (Êxodo 12,49; Levítico 19,33-34). O outro mote é lapidar e é a advertência de Cristo aos seus discípulos: "Era estrangeiro e me acolhestes" (Mateus 25,35).
Para aprofundar:
Traduzido só agora para o italiano, o ensaio do jesuíta francês é de 1969, mas continua sendo de grande atualidade. O ponto de partida de Certeau é a crise das certezas religiosas na sociedade contemporânea e a percepção também de Deus como de um "estrangeiro".
O "diálogo" é, para o prior do mosteiro de Bose, um entrecruzamento de linguagens, de culturas, de éticas. Não tem como fim o consenso, mas sim um recíproco progresso, um avançar juntos. A questão da imigração é muito frequentemente reduzida, na Itália, a termos de emergência, omitindo toda referência à solidariedade e à escuta. Nada mais equivocado, segundo o Bianchi, que convida, ao contrário, a reconhecer que "ser estrangeiro" é parte fundamental da experiência humana.
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A coragem do estrangeiro para afirmar sua existência - Instituto Humanitas Unisinos - IHU