10 Dezembro 2012
Dos Atos dos Apóstolos a Henrique V, a genealogia do "nós" ocidental europeu como sujeito coletivo carismático.
A análise é do historiador italiano Giacomo Todeschini, professor da Universidade de Trieste, em artigo publicado no jornal Il Manifesto, 29-11-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A determinação da genealogia cultural e linguística dos estereótipos que conceitualizam as tipologias da separação e da inferioridade humana, psíquica e racial, e a narração da história dessas representações – assim como a das associações inconscientes entre as imagens que essas retóricas trazem consigo – podem ser definidas a partir de um estudo da formação lexical e teológico-política do "nós" (nos) ocidental europeu como sujeito coletivo carismático. A noção "Nós não somos os maus" – ou seja, "Nós somos os bons" – tem, portanto, uma história própria, que pode ser chamada de história das representações ocidentais (europeias) do diferente de "nós".
Com efeito, é muito útil determinar o nascimento e a genealogia cultural, ou seja, linguística, dessas imagens, ou a cronologia desses modos de dizer, assim como das associações inconscientes entre conceitos que essas imagens ou modos de dizer trazem consigo, para poder compreender que os estereótipos de superioridade ou de inferioridade não são o resultado de uma maldição que pesa sobre a humanidade como tal.
Uma abordagem possível para a questão é constituída pela análise das linguagens cristãs patrísticas e medievais latinas, ou seja, das linguagens episcopais (funcionariais e, portanto, não só teológicas, mas também gerencial-administrativas), como a análise das linguagens dominantes e performativas que concretamente deram forma comunicável a noções compostas, depois latentes ou visíveis, prontas, no entanto, para serem recodificadas até, às vezes, aparecerem como modalidades interpretativas da realidade totalmente automáticas.
A elite sacerdotal que, de fato, governou a Europa entre os séculos XI e XV, se por governar se entende intenção formar e definir as categorias de legítimo e ilegítimo, permitido e não permitido, legal e ilegal, funcional ao bem comum ou contrário a esse bem, dentro da natureza ou contra a natureza, começou a classificar os grupos sociais em termos de vizinhança ou distância ao/do "nós" carismático-apostólico que eles mesmo representavam cotidianamente e ao qual deviam fazer referências as múltiplas configurações sociais e dominadoras que articulavam o Ocidente em expansão econômica e político-militar.
No âmbito dessa cultura sacerdotal compartilhada por poderes seculares em si mesmos orientados a se apresentarem como sagrados no sentido cristão do termo, formou-se uma representação de exclusão/separação, funcional à identificação ou à definição do perímetro de um "nós" no início totalmente elitista (séculos IV-IX).
Um perímetro exclusivo
Esse sujeito de autoridade e iniciático, precocemente enfatizado pela insistência e pela recorrência por meio das quais se caracterizava o pronome "nós" (nos), se transformará gradualmente em um sujeito amplamente coletivo e, portanto, capaz de se representar ou de ser representado no âmbito de discursos resumidos pela expressão sintética "bem comum" (bonum commune), significante tanto no âmbito discursivo do mercado, quanto no das relações interpessoais, entendidas como esfera da política ou da religião.
O nexo entre religião organizada e definição do perímetro constituído por um "nós" carismático e exclusivo, depois capaz de se ampliar a definição social e comunitária, por outro lado, foi destacado no seu tempo por Agnes Heller, na sua Sociologia da Religião (1970).
O "nos" cristão ocidental pode ser identificado na sua primeiríssima origem a partir de algumas específicas raízes textuais. Recordemos aqui apenas duas variantes fundamentais e primárias dessa tradição; a constituída pela autorrepresentação da Comunidade dos Apóstolos como comunidade perfeita, por ser testemunha direta da Encarnação e da Ressurreição divina, assim como está contida em um texto fundador da tradição cristã como os Atos dos Apóstolos; e a constituída pela autorrepresentação da comunidade franciscana original como comunidade, por sua vez, perfeita por ser imitativa da apostólica e por ser testemunha direta da vida do fundador, Francisco, entendido como alter Christus ("um segundo Cristo").
A Batalha de Agincourt
Essa tipologia de base, antiga e extremamente autorizada, configura um "nós" carismático cujo poder e cuja autenticidade repousam sobre o contato direto com o Sagrado. Dela brotarão inúmeras réplicas eclesiásticas e seculares, e nela se fundamentará, entre a Idade Média e a Idade Moderna, uma modalidade de definição linguística da autoridade governativa formalizada nos termos de uma verdadeira mística da elite dominante.
Um exemplo muito conhecido dessa derivação é o "nós" atribuído em 1599 por William Shakespeare, no seu Henrique V, à elite soberana vencedora em Agincourt, em 1415: "E até o fim do mundo o dia de São Crispim e de São Crispiniano não passará sem que sejam mencionados os nossos nomes. Felizes nós, nós poucos, fileira de irmãos, pois quem hoje derramará o seu sangue comigo será meu irmão, e por mais baixa que seja a sua condição este dia a enobrecerá: muitos cavalheiros que dormem agora nos seus leitos na Inglaterra amaldiçoarão a si mesmos por não terem estado aqui hoje e não lhes parecerá nem que são homens quando falarem com aqueles que tiverem lutado conosco no dia de São Crispim".
É nessa fase de modernização do "nós" que – como bem se adverte claramente no texto shakespeariano – a dimensão de sacralidade exclusiva se abre, nas palavras do líder, para compreender em si mesmo um grupo mais vasto, de "irmãos" justamente, capazes de compartilhar o carisma e, portanto, de ter um inimigo comum, capaz, somente eles, de serem homens.
Mas a identificação do "nós" a partir de um inimigo a ser superado e derrotado já havia sido há muito tempo esclarecida, bem antes que Henrique V contrapusesse os "felizes poucos" ao inimigo francês de Agincourt: e foram os "judeus", desde os primeiros séculos da era cristã, que desempenharam esse papel de "não nós", o papel dos outros, aqueles que "nos" ameaçam e que às vezes até mesmo se fazem passar por "nós".
O início dessa polêmica entre "nós" e "eles", onde "eles" é personificado por judaei, já está claramente nas cartas de Paulo (em Gálatas 2, 14-16), para depois se afirmar como tema fundamental em Agostinho (Contra Judaeos VII 9, 57; Epístola 196). De Girolamo a Agostinho, além disso, o texto dos Padres da Igreja segue coerentemente o rastro de um discurso que, nos cristãos, no "nós", vê e representa os "judeus verdadeiros, aqueles segundo o espírito", enquanto nos "judeus" originais, naqueles que não reconhecem o Messias, identifica "os judeus segundo a carne".
O judaísmo, a alteridade, tornam-se verdadeiros se realizados pelo cristianismo, se concretizados por "nós", mas permanecem como falsidade, palavra morta, se encarnados por aqueles que, judeus de todos os dias, não aceitam o Verbo cristão, excluindo-se da comunidade carismática que, nos Apóstolos, via a sua própria premissa. Já aqui ser "nós" significa manifestar plenamente a verdade, ser os protagonistas. "Eles", os falsos, são uma imitação de "nós", uma sombra da verdade; um engano vivo.
Sem tempero
Uma imagem também muito empregada pela tradição episcopal cristã ocidental, e que novamente remonta às Escrituras, se propõe, além disso, como útil exemplo da ênfase deliberada ao "nós" carismático e à sua inexorável recaída em termos de exclusão daqueles que não pertencem ao grupo dos "irmãos". É a metáfora do "sal da terra".
Essa imagem, originalmente (Mateus 5, 13) aplicada aos apóstolos e à sua capacidade, mas também ao seu dever de converter as pessoas ao cristianismo, se transforma a partir do século VI em uma poderosa representação da atitude dos eleitos que formam o conjunto do "nós" a dar sentido e inteligência, a promover ao grau de humanidade plena os "outros", aqueles que, fora do círculo encantado da Graça, ainda não entendem, tateiam nas trevas, pairam como feras na floresta da incredulidade, da ignorância, das paixões.
Do século VI ao século XII, esse modo de escrever sobre a conversão dos pagãos, dos ignorantes, dos infiéis, cunha, para além do tema da conversão, o hábito linguístico, que permanecerá ocidental e europeu, de definir como insensatos (fátuos, "sem sal", insossos, tolos, incompletos) aqueles que, não convertidos, não "temperados" com o sal apostólico, permanecem afundados na sua grave carnalidade, mais feras do que seres humanos.
Burchard de Worms e Ivo de Chartres, entre os séculos XI e XII, poderão escrever, dirigindo-se aos seus coirmãos bispos que, "se o povo dos fiéis é o alimento de Deus, nós somos o seu tempero" (Decretum, VI, cap. 151). O sentido do ser, a humanidade que se comunica com o Divino, a negação da bestialidade são o efeito desse "sal": é por meio desse "tempero" que se chega ao "nós", que se começa a fazer parte do Grupo, assumindo assim uma identidade superior, uma identidade verdadeiramente humana.
Quem não é "salgado" devidamente, ou não sabe distribuir o "sal" que recebeu como autêntico membro da comunidade eleita, será logo comparável – e é aqui que a metáfora se aperfeiçoa – a Judas, o falso apóstolo, aquele que significativamente teólogos e pregadores chamariam desde a Alta Idade Média de o "péssimo entre os mercadores", mas também o "sal enloquecido" (sal infatuatum): a aberração máxima, de fato, é representada nessa história de linguagens e de condenações por quem, aparentemente, membro de pleno direito da fraternidade que constitui o "nós", se revela na prova vazio de intelecto e de sentido, um "sal que não pode salgar", se inverte por fim na nulidade do outro de "nós", um vazio de desespero.
Decompondo a metáfora do "sal" que tempera ou que não tempera, que conserva ou que não conserva, isto é, que dá ou não dá sentido a pessoas e coisas, identificam-se, portanto, elementos capazes de definir um paradigma complexo constituído por: um sujeito coletivo dominante (nos episcopi); uma massa de "gente qualquer" fidelis; uma relação entre os dois sujeitos qualificado como condimentum, a aculturação cristã entendida como "ato de dar sabor", isto é, equivalente ao ato de "conferir capacidades racionais" e de "tornar inalteráveis" (ensopados de uma humanidade definitiva); a qualidade ambígua dessa relação descrita como eventual labilidade da capacidade do "sal" de salgar/temperar por parte daqueles que, supostamente, teria esse dom.
No entanto, é precisamente essa ambiguidade, essa incerteza aninhada no próprio coração do "nós", que desencadeia nos textos e nas políticas soberanas ocidentais uma multidão de estratégias autodefensivas: se o não senso, a bestialitas também pode se ocultar entre "nós", será verdadeiramente obrigatório para se defender, e a qualquer custo.
O sujeito ampliado constituído pelo "nos" da societas christiana no seu conjunto será, portanto, cada vez mais frequentemente, a partir do fim da Idade Média, chamado e induzido a se proteger produzindo modelos e estereótipos de diversidade, ou atribuindo a quem não pertence ou não imagina que possa pertencer ao grupo dos possíveis eleitos uma incapacidade basilar de elaborar o pertencimento, isto é, de se identificar a partir de um sistema de regras estabelecido como sagrado: antigas expressões como "homens animais" e novas codificações da exclusão, como a cifrada pela palavra "infâmia", se tornarão equivalentes semânticos do não pertencimento ao "nós" carismático.
Um resultado importante desse processo histórico-cultural será, nos séculos do crescimento econômico e colonial da Europa, o crescente temor daqueles que participarão em princípio da sociedade do "nós" de não pertencer à sociedade dos cidadãos/fiéis: um temor não apenas fantasiado como medo de uma acusação que desemboca no afastamento do exílio, do banimento, da excomunhão, do aprisionamento ou na definitiva alienação da morte, mas também como terror diante da ambiguidade de um pertencimento social nunca inteiramente confirmado por sinais incontestáveis.
Daí começará a se desenrolar, de formas cada vez cifradas pelas terminologias jurídicas e jurisdicionais, das linguagens da política e da religião, o problema da cidadania real como situação de pertencimento a ser definida em termos o máximo possível objetivos.
Pessoas incompletas
A codificação desses procedimentos discursivos e políticos em termos raciais – que conhecemos há pouco mais de um século – ocorrerá, por fim, na forma de uma racionalização de fundo biológico e nacional de elementos já há muito tempos utilizados para indicar tanto o não pertencimento ao "nós "carismático, quanto uma incerteza desse pertencimento por si só capaz de marcar pessoas e grupos como humanamente incompletos, como aberrações culpadas e perigosas. A serem novamente afugentadas, em suma, para a escuridão de onde provêm.
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No pronome ''nós'', a ideia de um inimigo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU