Se a Europa se lembrasse de Keynes

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26 Mai 2012

Falta hoje o Keynes da situação, que denuncie as calamidades inevitavelmente provocadas por terapias deflacionárias penitenciais. “Consequências econômicas da paz” intitulava-se o livro publicado em 1919, e hoje poderia ser escrito tal e qual, com as periferias sul-europeias no lugar da Alemanha.

A opinião é da jornalista e filósofa italiana Barbara Spinelli, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 23-05-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Diz-se frequentemente que a Europa unida perdeu poder de atração, agora que os europeus não se fazem mais guerras. Mas é difícil chamar de a paz o que estamos vivenciando.

Belicoso é o modo em que, há dois anos, gregos e alemães se falam. Belicoso é o clima de depressão, de medo. Belicoso, sobretudo, é o tratamento reservado aos países endividados, não por acaso chamados pelo acrônimo Pigs, porcos: considerados no nível de povos vencido pelas armas, a serem ostracizados, punidos. Os planos de austeridade, como a guerra de Clausewitz, estão se tornando a continuação da política com outros meios, e a Europa, associada a esses planos, sofre o mesmo destino. O que quer dizer: austeridade e belicosidade suplantam a política, a suprimem.

Há o domínio alemão, mas a hegemonia não tem projeto de refundação da civilização europeia. Está tragicamente ausência um poder europeu que represente a todos, democraticamente legitimado, que esteja pronto a enfrentar o bom e o mau destino. Faltam instituições supranacionais fortes, que, na calamidade de um Estado, reconheçam a calamidade de todo o sistema. Há inocentes e culpados, vencedores e vencidos: a própria ideia de solidariedade, mais moral do que política, obscurece perigosamente o interesse, as responsabilidades, as obrigações compartilhadas.

Assim foi tratada a Alemanha no Tratado de Versalhes de 1919, e sabemos o que se seguiu, o rancor nacionalista que o castigo suscitou. Hitler explorou esse ressentimento, dando ao povo não só um crescimento arrastado pelos gastos militares, mas também dignidade e sentido de pertencimento perdidos. Falta hoje o Keynes da situação, que denuncie as calamidades inevitavelmente provocadas por terapias deflacionárias penitenciais. “Consequências econômicas da paz” intitulava-se o livro publicado em 1919, e hoje poderia ser escrito tal e qual, com as periferias sul-europeias no lugar da Alemanha.

Keynes participou da conferência de Versalhes como representante do Tesouro britânico, mas, no dia 7 de junho de 1919, renunciou e escreveu o seu livro denúncia. As suas ideias, rejeitadas pelos vencedores, foram extraordinariamente videntes: não se pode pedir o impossível a um povo vencido, desmoralizado, devastado, e dar ao diktat o nobre nome de tratado. Não é a paz, se a crise não é vivida como drama comum a devedores e credores. Nessas condições, era uma farsa a proclamação do presidente dos Wilson: 1914-1918 poriam "fim a todas as guerras". Outras conflagrações viriam, precipitando a Europa em uma guerra de 30 anos.

As recordações pregam más peças, justamente à Alemanha que, depois de 1945, reconstruiu uma democracia modelo, forjada pelas introspecções da política da memória. Mas, com o tempo, a memória se tornou como hemiplégica: como se só uma parte da história fosse retida. Resta a obsessão da hiperinflação entre 1914 e 1923, mas evapora a deflação começada em 1929 e terminada com o advento de Hitler.

O mesmo vale para as reparações que despedaçaram a democracia de Weimar, e para a derrota de Keynes em Versalhes: esquece-se a vitória tardia, mas ainda assim vitória, que estes conheceram depois da Segunda Guerra Mundial. Desta vez, a Europa e a América mudaram de rumo: nasceram o Plano Marshall, o Fundo Monetário Internacional, a unidade europeia. Venceu o New Deal de Roosevelt, não o otimismo cego de Wilson. De nenhuma guerra se podia dizer que seria a última, muito menos na Europa, se entre os ex-beligerantes não se acordavam um crescimento comum e instituições comuns, na consciência de que sempre pode chegar alguém que, em termos de política, prefira outros meios.

O chanceler parece indiferente às lições de ontem, se não ignorante. O cansaço europeu do seu povo também é obra sua. Em parte, talvez, pesa o seu aprendizado na Alemanha comunista. Se excluirmos o atual governo polonês, os governos do Leste tendem a desconfiar de uma União supranacional. São os mais meticulosos defensores das decisões unânimes, dos vetos nacionais, da Europa impolítica. Cultivam soberanias ilusórias e não veem que o presente colapso é um colapso já evidente dos Estados-nação.

Ainda mais submissa é Merkel com relação à Alemanha do Banco Central Alemão e da velha doutrina que permeia: primeiro, vem a casa em ordem, depois a comunhão transnacional. O Bundesbank está tendo a sua vingança contra o internacionalismo de Brandt, Schmidt e depois de Kohl, que quis a moeda única contra o instituto emissor. A história contava ainda naquela época: Kohl disse que era preciso "libertar a Europa do problema alemão" e criar os Estados Unidos da Europa, do qual a moeda única seria a mola propulsora inaugural. O Tratado de Maastricht prepararia transformações institucionais bem mais radicais, e se o projeto naufragou foi porque – por culpa do nacionalismo francês – ficou no meio do caminho.

O próprio pacto de estabilidade e de governo da crise (fiscal compact), aprovado em março por 25 Estados, disciplina as economias individuais com novas transferências de soberania, mas não cria nem as instituições comuns (Comissão que responda aos deputados mais do que aos governos, Parlamento com partidos europeus, verdadeira Constituição) nem os instrumentos financeiros (Eurobonds, project bond), que permitam que a União faça política e una o que se desintegrou. Foi assim que a Grécia se tornou um bode expiatório, que o mal interno se tornou externo, que foram levantadas linhas Maginot falaciosas (o chamado firewall) para impedir contaminações já em vigor.

Naturalmente, é muito arriscado se incomodar apenas com a Europa, até porque ainda são os Estados ou os diretores de Estado que a determinam. A União, assim como Atenas, também corre o risco de se tornar um bode expiatório, inimigo externo. O crescimento invocado por Hollande e pelos social-democratas alemães, pelos democratas italianos pelo Syriza de Tsipras em Atenas terá que surgir de iniciativas europeias, mas também de mutações nacionais, necessárias em uma economia-mundo em que o Ocidente não é mais o centro.

O fato é que as duas coisas – a ordem na casa e a iniciativa europeia – deverão andar juntas: não amanhã, mas logo. Que as reformas estruturais feitas na Alemanha em 2002, apresentadas como exemplares, são impraticáveis em tempos de recessão (é há nada menos do que cinco anos que a Grécia está em recessão). Não há tempo. Ao virar da esquina está a bancarrota não só helênica, mas também europeia, e cidadãos assustados já fogem dos bancos gregos e espanhóis.

O que é necessário são instituições europeias que relancem a economia por conta própria: com Eurobonds, com impostos comuns sobre as transações financeiras e sobre as emissões de dióxido de carbono. Ou, na ausência de Eurobonds, com um pacto significativamente chamado "de redenção", sugerido pelo Conselho Alemão de Especialistas Econômicos: a parte das dívidas excedentes em 60% do produto interno se tornaria dívida da União, gerida por um fundo comum de 2,300 bilhões de euros, por uma duração de ao menos 25 anos.

Comunitarização de uma parte da dívida, relançamento da União: a proposta hoje é de Hollande, de Monti, dos social-democratas e dos Verdes alemães. Obama também pede isso, ele que há anos propugna um New Deal à la Roosevelt: para não naufragar na crise e perder as eleições, ele implora uma rápida retomada europeia. Merkel está isolada, dentro de casa e fora dela. Hoje, na cúpula informal de Bruxelas, veremos se alguma coisa está se movendo.

Uma nova política da memória urge na Alemanha. Não por último, a memória das dívidas bélicas alemãs, extintas em Londres no acordo de 1953, graças também à Grécia, que renunciou às reparações. Não por último, a recordação da advertência de Keynes contra os absolutistas do contrato, levados a transformar os pactos (o fiscal compact hoje) em "usura initerrupta".

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