26 Março 2012
"A semana em que estamos fazendo esta reflexão é comemorativa dos 240 anos de Porto Alegre. A toda hora, em algum grande meio de comunicação, rádio ou TV, ecoa o canto “Porto Alegre é demais!..., escreve Antonio Cechin, irmão marista, miltante dos movimentos sociais, autor do livro Empoderamento Popular. Uma pedagogia de libertação. Porto Alegre: Estef, 2010.
Segundo ele, no entanto, "só que de tanto ser, não há um só jornalista que assinale que os casais açorianos que há duzentos e quarenta anos atrás (1772) fundaram a cidade, era gente pobre recrutada pelo rei de Portugal e seu ministro Marquês de Pombal, a fim de vir ocupar os Sete Povos das Missões do Rio Grande do Sul"
Eis o artigo.
Ser gaúcho, entre tantas outras coisas, significa viver dentro de uma cultura que é a menos religiosa do Brasil quando comparada com as demais culturas existentes dentro da federação nacional. Esta é a tese central da dissertação de um professor da universidade de Caxias do Sul, à guisa de conclusão de Mestrado em Letras e Cultura Regional, defendida em julho de 2006, posteriormente sintetizada em livro (Título: Deus morto no Pampa – subtítulo: Um olhar sobre a cultura gaúcha a partir da religiosidade no mito fundador – edição da Biblioteca Pública Municipal Dr. Demétrio Niederauer – Autor: Nivaldo Pereira – Caxias do Sul – 2008).
O autor de livro com título tão estranho, para não dizer atrevido, é baiano de origem. Em viagens pelo Brasil, ficara impactado, no Rio Grande do Sul, pela fraca religiosidade local, se comparada com os demais estados. Intrigado com o fato, quis saber a respeito das causas. Fixou residência aqui. Tomou como base de leitura a obra “O Continente” de Érico Verissimo” considerada entre os estudiosos de nosso usos e costumes, como a que mais aprofunda nossa cultura típica.
O pano de fundo do livro de Érico, é a história dos primeiros 200 anos de colonização das terras deste extremo sul do Brasil. Verissimo é considerado o autor que melhor estabelece o perfil da nossa identidade, isto é, do que significa cullturalmente “ser gaúcho”. Aliás, nosso governador atual, Tarso Genro, em seu discurso de tomada de posse a 1° de janeiro de 2011, citou três nomes de pessoas ilustres que haveriam de pautar seu governo: Nélson Mandela, Raimundo Faoro e Érico Verissimo. Este último “como o que caracterizou com perfeição o estado de alma do gaúcho, ou seja, aquilo que faz a nossa cultura gauchesca.
Por estas bandas, ultimamente levamos alguns sustos dentro da conjuntura do nosso entorno, o que nos fez retornar à leitura do autor caxiense, cuja estranha tese nos havia impressionado sobremaneira, pelo simples fato de estarmos, uma vida inteira de sete dezenas de anos, fortemente ligados ao trabalho de evangelização e catequese, neste “garrão do Brasil”.
Para início de conversa, temos o fato do autor do livro acima citado, não ser aqui dos pampas. Nascido na Bahia o que significa não ter nascido gaúcho, talvez tenha contribuído com o fato que o livro lançado não tenha feito cócegas em outros muitos catequistas ou evangelizadores dos nossos pagos. Em oposição a esse possível argumento, há o contrapeso de que se trata de um professor universitário e logo em Caxias do Sul, a italianíssima e a não menos cristianíssima cidade, apontado proporcionalmente ao número de habitantes, como o maior viveiro de vocações religiosas de nosso estado.
Alem do mais, Caxias é considerada a capital do gauchismo pelos tradicionalistas de todas as querências. Parece exagero mas é verdade estatística que, só no município caxiense, existem em pleno funcionamento, nada menos que 86 Centros de Tradição Gaúcha (CTGs) que são os principais propulsores da avassaladora civilização gauchesca. O referido professor e pesquisador vive portanto, atolado até o pescoço dentro do gauchismo. É como se fosse uma ilha rodeada de água por todos os lados, a facilitar-lhe enormemente a pesquisa e a atividade docente sobre tema de tamanha relevância para as igrejas e religiões do “continente” segundo Érico Verissimo.
Além do susto da pouca religiosidade dos pampas, ultimamente tivemos algumas outras surpresas na mesma linha da fé e da religião aqui do sul.
No passado ano de 2011 o ateísmo militante do país decidiu fazer uma campanha no Brasil inteiro. Uma campanha em favor de uma das mais minoritárias correntes filosóficas e teológicas da nação. Começariam por onde? Pelo norte do Brasil? Pelo centro? ou pelo sul?... Surpreendentemente decretaram começar pela “mui leal e valerosa” Porto Alegre, a capital de todos os gaúchos nacionais e internacionais, estes útimos, cultivadores cetegistas em todos os cantos do universo.
Em Porto Alegre, os partidários da corrente atéia, pensaram primeiro que o lugar mais propício para a propaganda, seriam os ônibus, baseados certamente nos olhares vagos de passageiros sentados ou em pé, fixados em poucos segundos em alguma frase chamativa, escrita a esmo. Durante uma única viagem todos os passageiros sem exceção não apeariam dos coletivos sem ter tomado conhecimento da campanha. Não conseguiram realizar seu intento nas empresas transportadoras particulares e nem mesmo na carris, empresa pública. Partiram então para ruas e praças, disseminando pelos logradouros públicos seus painéis e chamadas de atenção. Teria sido a escolha do nosso estado sulino meramente aleatória, ou teria sido acoplada a uma pesquisa de “mercado” relacionada com a força da religiosidade local?
Na semana passada outro susto, dessa vez maior e mais sensacional. Uma notícia totalmente inesperada e insólita, sobre a qual o grande advogado, ex-deputado federal, ex-membro do Supremo Tribunal Federal, ex-professor de Direito de várias universidades, o conhecidíssimo jurista Paulo Brossard de Souza Pinto, escandalizado tanto quanto nós, talvez até um pouco mais, imediatamente publicou um artigo no maior jornal da cidade.Transcrevo a notícia nos próprios termos em que a veiculou Paulo Brossard:
“O douto Conselho da Magistratura do Tribunal de Justi¬ça do Estado, atendendo postulação de ONG represen¬tante de opção sexual minoritária, em decisão admi¬nistrativa, unânime, resolveu determinar a retirada de crucifixos porventura existentes em prédios do Poder Judiciário estadual, decisão essa que seria homologa¬da pelo Tribunal. Seria este o caminho que responde aos princípios constitucionais republicanos de Estado laico e da separação entre Igreja e Estado”.
Uma quarta invectiva pública contra fé e religião, violenta sob todos os títulos, porque dessa vez contra a educação de crianças e jovens. Já divisamos no horizonte a notícia da possível abolição do ensino religioso nas escolas, aliás já sugerida, porém de modo impreciso, de soslaio, em algum cantinho de jornal.
Para onde é que caminha este nosso Rio Grande do Sul?... As pessoas com quem convivemos tem a sensação de que, se não alcançamos ainda o fundo do poço, estamos chegando muito perto dele. Parece até que o mundo cultural e religioso, cada dia mais, desmorona pedra por pedra ao nosso lado, assim como a natureza seriamente agredida pelos humanos, ultimamente também parece que decidiu gritar suas dores através de tormentas, tsunamis, mudanças climáticas, terremotos, etc.
Sobre a retirada dos crucifixos dos tribunais pelos membros do Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado através de total unanimidade, em assunto de tamanha relevância, não seria o caso de iniciar com a frase do teatrólogo Nelson Rodrigues tantas vezes citada que virou dito popular: toda a unanimidade é burra?...
De todos os artigos que conseguimos ler e que apareceram em jornais e revistas a respeito do assunto sobre os crucifixos, o mais digno de apreço foi o de Paulo Brossard porque o abordou pelo lado daquilo que Paulo Freire, em seu método de alfabetização de adultos chama de palavra geradora, e que em educação em geral, chamou de tema gerador.
A palavra geradora tanto quanto o tema gerador, segundo o pensamente freireano, interessam e muitíssimo, tanto ao oprimido quanto ao opressor. Palavra e tema expressam, de um lado, a situação-limite do oprimido que não agüenta mais o estado de coisas em que vive porque, como sofredor, quer ultrapassar os limites ou as fronteiras da situação em que se encontra, rumo à libertação. Porém a arrancada do oprimido em seu esforço de se libertar, de ocupar um espaço maior e um pouco mais confortável no mundo e na sociedade, corresponde, de outro lado, a uma pressão contrária do opressor que vê, na libertação dos pobres, uma diminuição de seu espaço de dominação.
Em termos micro e macroprocesso, no fundo, é a luta de classes. A luta da humanização contra a desumanização tema gerador mais amplo, mais global e mais universal que existe e que abarca passado, presente e futuro da humanidade inteira. Na questão da retirada dos crucifixos, antes de um debate de caráter religioso, está em questão, um debate entre humanistas e anti-humanistas.
Todas as religiões de todos os povos do mundo, adoram o mesmo Deus. É verdade que cada qual tem um caminho próprio e diferente, para chegar até Ele. A diferença do cristianismo com todas as demais religiões, está no fato que estas adoram a um Deus transcendente, sobrenatural, e tem um profeta ou um mediador na terra como porta-voz. Assim, dos islamitas, Alá é Deus e Maomé o seu profeta.
O cristianismo se diferencia no fato de ter como seu Deus, um Homem. Fora dele não sobra nada que seja cristão. Trata-se do Homem Jesus de Nazaré. Nada de buscar o Deus dos cristãos lá fora ou lá em cima na sobrenaturalidade ou na transcendência. Jesus é totalmente homem, igual a nós. Só que um Homem tão perfeito, que, de tão absolutamente humano que é, concluímos só pode ser Ele o próprio Deus encarnado. Quem vive fé cristã sabe que sua Caminhada aqui na terra é uma caminhada rumo ao mais alto grau de humanização. O plenamente humanizado realizou ao mesmo tempo o plenamente divinizado. Além de viver sua própria fé o cristão se esforça por inculturá-la como serviço a seus irmãos.
É o que, em suma, diz o Paulo Brossard: No crucifixo está pregado um homem injustiçado que sofreu vários processos e acabou condenado, apesar de inocente, por juízes iníquos, a lembrar aos tribunais que juiz não pode ser injusto a ponto de condenar inocentes. A rigor, mais que uma religião, o cristianismo tem que caminhar rumo a um humanismo sem jaça.
Um argumento muito usado pelos que estão escrevendo em favor da retirada dos crucifixos dos tribunais e logradouros públicos, com base no estado leigo, é que a laicidade permite a igualdade de todas as religiões como se, no caso de implantação de laicidade absoluta os únicos que se beneficiariam em grau máximo não fossem os minoritários ateístas militantes. Ser contra a existência de Deus é tomada de posição religiosa. Acaba sendo também uma religião.
A causa fundamental da pouca religiosidade da cultura gaúcha, segundo o professor caxiense, residiria no fato da cultura sulina ter matado seu mito originário, ou seja, o paraíso terrestre inicial construído pelas Missões Jesuíticas dos Sete Povos, que Érico Verissimo chama a Fonte do Continente Rio Grande do Sul. Quem estanca a fonte, mata a vida.
A semana em que estamos fazendo esta reflexão é comemorativa dos 240 anos de Porto Alegre. A toda hora, em algum grande meio de comunicação, rádio ou TV, ecoa o canto “Porto Alegre é demais!...” Só que de tanto ser, não há um só jornalista que assinale que os casais açorianos que há duzentos e quarenta anos atrás (1772) fundaram a cidade, era gente pobre recrutada pelo rei de Portugal e seu ministro Marquês de Pombal, a fim de vir ocupar os Sete Povos das Missões do Rio Grande do Sul. Vieram em levas sucessivas e foram ficando pelo caminho ao longo de todo o litoral catarinense, daí descendo rumo à cidade de Rio Grande para finalmente adentrar no continente de Verissimo, através da Lagoa dos Patos, atingindo o Guaíba. Ao porto em que fundearam e às terras ocupadas, deram o nome de Porto dos Casais, depois melhorado para Porto Alegre.
O paraíso terrestre guarani, semelhantemente ao paraíso terrestre inicial descrito no livro do Gênesis da bíblia, a Terra Sem Males guaranítica – o mito segundo a tese do caxiense – recém acabava de ser morto na chacina dos Missioneiros. A Adão e Eva expulsos do Jardim do Éden, correspondem, no Rio Grande, os açorianos começando sua história no novo mundo, dentro de um paraíso terrestre destruído a ferro e fogo. De então a esta parte nossa saga na história local é muito parecida com uma farsa da epopéia inglesa the lost paradise. Qualquer semelhança, é simples coincidência.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Deus morto no Pampa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU