12 Março 2012
Há hoje uma separação dos seres humanos em duas classes novas: as "classes produtivas", louvadas e importantes, e "os outros", improdutivos e, portanto, resíduos inúteis, supérfluos, voluptuosos. Esse é um ponto crucial ao qual deve se opor um "mas eu vos digo" por parte de todas as pessoas de boa vontade e, entre elas, dos cristãos.
A opinião é da filósofa e teóloga italiana Maria Cristina Bartolomei, professora da Università Studi di Milano, na Itália. O artigo foi publicado na revista Jesus, de março de 2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Na versão do Sermão da Montanha própria do Evangelho segundo Mateus, as "Bem-aventuranças" são seguidas por uma longa lista de antíteses entre "o que foi dito" e "mas eu vos digo". Essa seção apresenta a justiça anunciada e exigida pelo Evangelho como nova e excedente aos limites dentro dos quais até então havia sido identificada a vontade de Deus; a compreensão antecedente não é, assim, desmentida, mas sim dilatada.
Além da especificidade das referências aos mandamentos e prescrições individuais, o texto ensina uma atitude e um método essenciais para os cristãos de todos os tempos: é o convite a comparar sempre de novo as suas próprias atitudes e orientações do tempo em que se vive com a novidade e as exigências do evangelho. De fato, seria totalmente errado pensar que "antiga" era apenas a mentalidade dos contemporâneos de Jesus. O velho "Adão" está sempre vivo, o coração não convertido ao Evangelho está sempre presente, as formas pelas quais a humanidade caminha, os critérios de julgamento da civilização são – como é evidente e visível a todos –, nesse sentido, muitas vezes antigos, antiquíssimos, até mesmo arcaicos, mesmo e particularmente na nossa contemporaneidade, tornando em certos casos até mesmo ferinos, muito distantes da medida da lei do talião, que visava a pôr um freio à vingança.
Portanto, devemos, sempre de novo, deixar que o Evangelho nos liberte das traves nos olhos, para obter um olhar construtivamente crítica da realidade, de forma que o nosso anúncio seja – como deve ser - profético, ou seja, na encruzilhada, no ponto de intersecção entre a vontade de Deus e a especificidade das situações históricas, captando nestas últimas os aspectos "antigos" em contraponto aos quais o Evangelho se coloca.
Atualmente, um valor é creditado com particular autoridade: o da produtividade e, portanto, do pertencimento às "classes produtivas". Mas a viabilidade de tal "imperativo categórico" agora parece estar minada: o ponto crítico em que o mundo e particularmente alguns países (pense-se na extremo, e também injusto, sofrimento da Grécia, mãe da nossa cultura e democracia) se debatem denuncia não só uma falha no sistema financeiro, econômico e social, mas também manifesta – como também foi apontado nos recentes documentos da CEI [Conferência dos Bispos da Itália] – uma crise, talvez insanável, do sistema como tal, no coração do qual há justamente a obrigação de um indefinido (e impossível) crescimento perene de produção de "riqueza", ou seja, de mercadorias.
Que fique claro: só um mal-entendido e irresponsável espiritualismo poderia rir disso, já que trabalho, vida, dignidade de milhões de pessoas e de famílias dependem dele. Mas é precisamente a concretude do cuidado e da preocupação com a vida humana e o ecossistema, aos quais toda a economia deveria estar finalizada, que impõe uma revisão radical e crítica desse posicionamento que, moderníssimo nos meios, esconde o coração antigo, arcaico, pré-humano do descomedimento no acúmulo, verdadeira do poder, justificando a esse fim todos os meios, incluindo os "sacrifícios humanos": as vítimas do amianto, ainda produzido em muitos países, são um exemplo disso. Que esconde o coração arcaico da identificação da "riqueza" nas coisas: um profundo materialismo, já despercebido por ser metabolizado, endêmico, ao qual é difícil fugir.
Entre as consequências, está a separação dos seres humanos em duas classes novas: as "classes produtivas", louvadas e importantes, e "os outros", improdutivos e, portanto, resíduos inúteis ou, no melhor dos casos, supérfluos, voluptuosos.
É uma distinção que já se encontra na boca de muitos expoentes políticos, até mesmo daqueles que se declaram cristãos. Entre as classes "improdutivas", estão: todos os ministros do culto, os médicos, os enfermeiros, os professores, as mães de família (a menos que se queira exumar novamente para elas o animalesco atributo de "fêmeas reprodutoras" de filhos, de memória fascista), os maquinistas, os motoristas de ônibus, pilotos de aviões e capitães de navios, os empregados de todos os escritórios, os artistas, os assistentes sociais, os jornalistas, os responsáveis políticos, as forças da ordem, os comerciantes etc., etc., etc.
É preciso dizer mais?! O conjunto de tudo isso não é riqueza, ou a sua falta, miséria? E, ao invés, produzir armas é riqueza? Pode-se imaginar vida e sociedade humanas sem pessoas que "produzam" e cultivem beleza, saúde, conhecimento, cultura, harmonia, afetos, serviços, organização social, vida religiosa, vida política, informação, assistência, comunicação, segurança?
Certamente, por sua vez, todos estes precisam de comida, de casas, de estradas, de roupas, de instrumentos e de máquinas de todos os tipos e, portanto, daqueles que produzem tudo isso. Que miséria a nova divisão imperante, tão enganosa para a estima social de cada um e para a formação da consciência de valores nas gerações jovens. Sobre esse ponto, o nosso hoje regrediu muito em comparação com a "antiguidade" à qual a novidade do Evangelho serve de contraponto. Esse é um ponto crucial ao qual deve se opor um "mas eu vos digo" por parte de todas as pessoas de boa vontade e, entre elas, dos cristãos.