20 Janeiro 2012
Quando as nuvens de negação, confusão e pedidos desculpas geradas pelas fotografias se desfizerem, veremos além da insensibilidade e do narcisismo dos afetados posando para as câmeras e veremos o panorama ainda mais feio de um país que perdeu seu senso de lugar na história, de seu povo que apoia guerras apenas porque as tropas foram enviadas para combatê-las, de suas tropas que exibem a sua própria degradação como um distintivo de honra.
A análise é de Jerry Lembcke, professor associado de sociologia do Holy Cross College, em Worcester, Massachusetts. O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 18-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Um vídeo que mostra marines norte-americanos urinando sobre cadáveres de combatentes talibãs tem circulado desde a semana passada. A história liderou a edição do dia 12 de janeiro do programa NewsHour, da rede PBS, um noticiário normalmente cauteloso, até mesmo calmo. Moderado por Judy Woodruff, o programa apresentou Andrew Exum, um ex-capitão do Exército e agora membro do Center for a New American Security, e o repórter do Washington Post David Ignatius como comentaristas convidados.
Exum denunciou os atos, referindo-se aos marines acusados como jovens de 18 e 19 anos que foram desumanizados pela guerra. Ignatius seguiu com observações semelhantes, chamando os marines de "jovens em guerra (...) desumanizados". Ignatius acrescentou que coisas como essa sempre ocorreram em guerras, mas a Internet faz tornam tais atos mais visíveis hoje.
O problema: quase nada do que Exum e Ignatius disseram fazia sentido. Para começar, a própria Woodruff introduziu o bloco identificando os marines como "elite" e "altamente treinados", descrições que, independentemente de suas idades reais, são difíceis de conciliar com as imagens de jovens norte-americanos abaladas pela guerra.
No momento da transmissão da PBS, fontes de notícias identificavam ao menos alguns dos marines como franco-atiradores – uma especialidade em que o projeto de "tirar" a vida humana dificilmente poderia ser recalibrado para torná-los vítimas.
Além disso, Exum e Ignatius, evidentemente, entraram no ar sem saber a idade real dos perpetradores. Seis dias depois, ainda não havia uma divulgação pública de seus nomes e idades. Os convidados da PBS tinham criado as idades de 18 e 19 anos dos "jovens" de sua própria imaginação.
A ideia de que norte-americanos enviem seus filhos para lutar cresceu a partir da experiência da Guerra do Vietnã. Tudo começou com alegações de que a idade média de baixas em combate lá era 18 anos; generalizações a partir disso se transformaram na crença de que a idade média de todos os soldados no Vietnã era de menos de 20 anos.
De fato, nenhuma das informações era verdadeira. E também não o são hoje. Nós só temos as idades dos mortos no Iraque e no Afeganistão, mas a média desses números é de cerca de 26; a mediana, de cerca de 25.
A história mais reveladora do programa da PBS, no entanto, foi a observação de Ignatius de que o comportamento dos marines é o tipo de coisa que acontece na guerra. Apesar de não ser um gracejo "moleque", esse seu comentário, no entanto, ignora uma perturbadora face inferior da sociedade norte-americana.
Acontecem atrocidades na guerra, sem dúvida. Mas a sua encenação em tropa com o objetivo de documentação fotográfica é um comportamento que não faz nenhum sentido fora de um contexto cultural em que a perpetração de atrocidades é confundida com conquistas marciais.
Essa distorção cultural também é um legado do Vietnã. O fato de que a guerra lá não foi popular e resultou no que equivale a uma derrota norte-americana deixou alguns homens – mesmo alguns que nunca estiveram no Vietnã – se sentindo diminuídos pela experiência.
Versões da guerra através da cultura popular deslocaram as suas realidades política e econômica com imagens de veteranos que trouxeram o trauma da guerra para casa junto com eles – seu trauma como um substituto do suposto horror perpetrado sobre eles pelos vietnamitas e das atrocidades indizíveis às quais eles foram levados a retaliar. (...)
Em síntese, uma reivindicação credível à participação em uma atrocidade não deixou dúvidas: o requerente é a questão de verdade, um veterano de "combate", sua reivindicação de trauma tanto como credencial quanto como inoculação contra as perguntas dos céticos.
A geração de lutadores que foi para as guerras no Oriente Médio crescera com representações de guerra e de veteranos derivados da experiência do Vietnã. A carnificina retratada em filmes como Apocalypse Now e Platoon – desprovidos de sentido, sem nada de redentor – esvaziou a imagem do serviço militar de tudo, menos da violência gratuita. Apenas os corpos e psiques quebrados das vítimas de guerra foram deixados como consequências.
Na virada do século XXI, a metáfora da Segunda Guerra Mundial "O que você fez na guerra, papai?" havia mudado para "O que aconteceu com você na guerra, papai?", em que a ausência de dano ou desarranjo era um indício da masculinidade do papai.
As fotografias que documentaram o orgulho dos homens libertando Dachau foram suplantadas pelas fotos autoposadas documentando a tortura de prisioneiros em Abu Ghraib e a profanação de soldados talibãs mortos.
Diz-se que as imagens podem valer mil palavras, mas serão necessários muitos milhares de palavras para escrever a história de fundo das imagens que vêm das novas guerras norte-americanas do século XXI.
Quando as nuvens de negação, confusão e pedidos desculpas geradas pelas fotografias se desfizerem, veremos além da insensibilidade e do narcisismo dos afetados posando para as câmeras e veremos o panorama ainda mais feio de um país que perdeu seu senso de lugar na história, de seu povo que apoia guerras apenas porque as tropas foram enviadas para combatê-las, de suas tropas que exibem a sua própria degradação como um distintivo de honra.
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Soldados urinando em cadáveres talibãs: palavras para explicar a imagem - Instituto Humanitas Unisinos - IHU