03 Dezembro 2013
Mestre espiritual, profeta manso e severo, autor de inúmeros livros que mostram uma vasta cultura e um estilo literário fascinante, a obra de Arturo Paoli [na foto, à esquerda, ao lado de Vito Mancuso] é uma antecipação profética e uma coerente aplicação da Teologia da Libertação.
A opinião é do teólogo italiano Vito Mancuso, professor de História das Doutrinas Teológicas na Universidade de Pádua, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 02-12-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Cent’anni di fraternità (Chiarelettere) é o novo e belíssimo livro de Arturo Paoli, um título que soa como uma metáfora da existência em contraposição aos Cem anos de solidão, de García Márquez, mas que também certifica uma vida individual que, no dia 30 de novembro passado, completou 101 anos.
Nascido em Lucca em 1912, sacerdote, medalha de ouro de Valor Civil e Justo entre as Nações por ter salvo muitos judeus, Paoli logo se tornou indesejável para a Igreja de Pio XII e foi afastado da Itália. Foi para a Argentina, onde passou 13 anos e acabou entre as listas dos condenados à morte do regime. Salvou-se indo para a Venezuela, onde permaneceu 12 anos, depois ao Brasil, onde passou 20 anos. Voltou para a Itália em 2005.
Mestre espiritual, profeta manso e severo, autor de inúmeros livros que mostram uma vasta cultura e um estilo literário fascinante, a sua obra é uma antecipação profética e uma coerente aplicação da Teologia da Libertação. Em jogo, estão duas libertações.
A primeira diz respeito aos pobres e aos explorados do planeta, porque "todo o Evangelho é uma denúncia contra aqueles que estão em cima", porque "Deus se transforma em uma imagem tirânica se o homem não o alcança pelo caminho da relação com os outros", porque, se é verdade que existe uma dimensão da vida mais profunda do que a esfera econômica, é ainda mais verdade que "renunciar a olhar de frente o econômico é como esvaziar a cruz de Cristo". O sinal mais claro da identificação com Cristo tem muito a ver com a economia, o Evangelho a chama de fome e sede de justiça...
A segunda libertação promovida por Arturo Paoli se refere ao próprio cristianismo, muitas vezes reduzido a ideologia que defende os privilégios dos poderosos e que deve ser resgatado de tal alienação. Esse cristianismo eclesiástico inimigo das libertações dos homens se manifesta nas ideias "que levaram os bispos da Argentina a aderir com um tácito assentimento à fúria diabólica dos militares (...) com a cumplicidade da Nunciatura Apostólica, portanto, do Vaticano".
Ninguém pode ignorar, de fato, que "os generais argentinos se declaravam católicos", "paladinos da civilização ocidental cristã", nem pode ser por acaso que, ao longo da história da humanidade, "as nações cristãs foram aquelas que criaram mais guerras".
Palavras muito duras de um homem sempre pacífico e sorridente, mas que não faz concessões quando se trata da justiça, rato profeta dentro de um catolicismo italiano tão esmagado sobre os cálculos políticos e sempre generosamente obsequioso com relação ao poder.
Arturo Paoli, ao contrário, sempre foi amigo dos pobres, nunca dos poderosos, como demonstram as páginas de crítica explícita contra Karol Wojtyla e Joseph Ratzinger pela obra de demolição da Teologia da Libertação e das comunidades eclesiais de base. Eles temiam a contaminação marxista, "mas aqueles que falam desses perigos talvez não estão no perigo de fazer com que a fé cristã conviva pacificamente com a injustiça e a opressão?".
Hoje, o idoso profeta escreve que, "com o Papa Francisco, parece se inaugurar um novo estilo de vida" e se declara "feliz por receber da Igreja o elogio da Teologia da Libertação, da qual fui um fiel seguidor". Cuidado, porém, nada de meias medidas, porque é preciso "refundar um cristianismo novo", e com relação a isso Arturo Paoli não teme enfrentar o nexo estrutural do cristianismo eclesiástico, isto é, a doutrina pecado original-redenção.
Ele denuncia que Jesus é esmagado demais sob o papel expiatório do pecado, enquanto "a sua verdadeira missão é a de amorizer le monde [amorizar o mundo], não o de pagar o preço de expiação pelos nossos pecados". Jesus é o mestre do amar, não a vítima imolada pela nossa redenção a fim de remediar os danos de um inexistente pecado original.
Mas há mais uma liberação pela qual o coração incansável de Arturo Paoli trabalha: trata-se do nosso tempo aprisionado pela técnica, em particular, a alma dos jovens. Declarando que quer ajudar os jovens "a sair dessa incredulidade geral", ele confessa: "Eu devo ser feliz em um mundo cada vez mais triste". Ele sabe bem, de fato, que só a alegria pode verdadeiramente educar, e por isso ele sela o livro com palavras de grande espiritualidade: "Quanto mais vivemos na maravilhosa profundidade da vida interior, mais descobrimos que ali se encontram os verdadeiros bens do ser humano: a sua liberdade, a sua paz, a sua alegria".
Eu conheço Arturo Paoli há muito tempo. A última vez que eu o encontrei há um mês, ele me disse sorrindo que não se arrepende de nada da sua vida e que faria tudo de novo, e eu penso que essa é a maior bem-aventurança. Se o papa argentino se lembrasse desse padre da Igreja pobre, daria o mais belo presente pelos seus "cem anos de fraternidade".
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Arturo Paoli, teólogo da liberdade. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU