20 Setembro 2013
Guadalajara, estado de Jalisco, no oeste do México, é o berço dos mariachis, dos charros e da tequila. É a sede da maior feira de livros em língua espanhola. Mas não era uma escala no mapa dos 400 mil centro-americanos que todo ano cruzam o México para tentar chegar aos EUA. Nos últimos cinco canos, o número de estrangeiros que passam pela segunda maior cidade do país triplicou.
A reportagem é de Verónica Calderón, publicada pelo jornal El Pais e reproduzida pelo portal Uol, 19-09-2013.
Desde a chacina de 72 pessoas em San Fernando (Tamaulipas) em 2010, cada vez mais pessoas escolhem a rota do Pacífico: o caminho mais longo, mas o menos perigoso. E que atravessa este lugar. São vistos nos cruzamentos próximos aos trilhos do trem, sentados na rua, dormindo nas calçadas. Transformaram-se em uma dor de cabeça para as autoridades locais e avivaram preconceitos em uma sociedade na qual os imigrantes eram invisíveis até anteontem.
O próprio governador do estado de Jalisco, Aristóteles Sandoval, do PRI (Partido Revolucionário Institucional), disse há duas semanas que a população de Guadalajara deveria denunciar "essa gente que está nas esquinas" para "devolvê-la a seu país". Sem citar qualquer estatística, o político afirmou que havia detectado que "quem assalta as casas" são "principalmente centro-americanos ou sul-americanos". Suas declarações provocaram tal polêmica que teve de se desculpar pouco depois.
Até muito pouco tempo atrás, os imigrantes que passavam por Guadalajara eram "invisíveis", segundo Santiago, 25, um voluntário da organização FM4 Paso Libre, que administra um refeitório a poucos passos da ferrovia. O grupo tirou o nome da permissão de residência para estrangeiros no México: FM2 ou FM3. O FM4 não existe, mas os voluntários explicam que se trata de uma situação utópica que garante "passagem livre" a qualquer estrangeiro.
O refeitório abre todos os dias às 4h e fecha às 19h. Um dos voluntários - o mais experiente - entrevista as pessoas que querem entrar. Hoje cabe a Santiago. Pedem-lhes uma identificação. Caso não tenham, "há maneiras de sabermos se realmente são de onde dizem ser", comenta Diego Ramos, 24. "Perguntamos de que departamento são. Ou, por exemplo, qual é o melhor time de futebol de Honduras". O Olimpia de Tegucigalpa, é claro.
Ao cruzar a porta, há quatro bandeiras, todas em azul e branco: as de Guatemala, Honduras, El Salvador e Nicarágua. Diego explica que também servem para reconhecer os imigrantes. Muitos indigentes - palavra que os voluntários se negam a usar por julgá-la "discriminatória" - fazem-se passar por eles. Na cidade, a FM4 é a única organização que se dedica exclusivamente a atender os viajantes de passagem.
Em uma das paredes da sala de espera há um cartaz onde um Tio Sam com bigode mexicano lembra que a lei americana permite não responder a qualquer pergunta em caso de detenção. Em outro há um mapa do México que detalha as principais rotas que os imigrantes seguem para chegar aos EUA. São quatro.
Os principais destinos são duas cidades de fronteira a leste - Reynosa e Nuevo Laredo -, a eterna Ciudad Juárez e Tijuana, no outro extremo do país. Há advertências. "Na temporada de chuvas, as estradas ficam estragadas." "Há pessoas que atravessaram o México em 15 dias, mas outras demoraram até três ou quatro meses." "Tente se agrupar com outros viajantes." "Quando o trem vai sem carga é mais rápido, mas menos estável, aumenta o risco de alguém cair."
O trem é La Bestia [A Fera], a temida máquina que milhares de centro-americanos abordam para tentar atravessar o México, também apelidada de Devoramigrantes. Talvez uma das viagens mais caras - pode custar até US$ 1.100 (cerca de R$ 2.500) entre roubos e subornos- e mais arriscadas do mundo. Há duas semanas descarrilou, deixando 12 mortos.
Na sala de espera do refeitório cerca de seis homens esperam sua vez em silêncio. As entrevistas - que costumam ser rápidas - são feitas em um pequeno escritório. Diego explica que todos os dias atendem cerca de 30 pessoas. Depois passam a um quarto contíguo, onde há uma cabine telefônica. Os voluntários permitem que façam uma ligação internacional de alguns minutos para sua casa, paga por uma fundação francesa.
"Essas ligações são fundamentais. Muitos parentes passam semanas ou meses sem saber deles. É a maneira que têm de lhes dizer que estão vivos", comenta Diego.
A travessia pelo México começa geralmente em Tapachula, em Chiapas, a menos de 10 quilômetros da Guatemala. Diego vem de lá. Conta que por isso se envolveu na ajuda aos imigrantes. "Sou da fronteira. Sempre vivi nesse contexto", explica. Muitos acreditam que a Fera ainda sai dali, mas a passagem do furacão Stan em 2005 danificou a estação e mudou o início do trajeto. Agora sai de Arriaga, a 200 quilômetros. Uma viagem de quase três horas de carro. "Calcule quanto é caminhando", comenta.
Cada um dos homens que esperam na sala entra e deixa suas coisas no "armário". Não os deixam entrar com elas no refeitório para evitar roubos e mal-entendidos, explicam os voluntários. No segundo andar da casa há banheiros, um chuveiro, um lugar para lavar roupa e uma mesa. Dois outros voluntários servem comida. Hoje há espaguete e abobrinha refogada. Um fotógrafo lhes pede autorização para tirar uma foto. Chama-se Óscar Fernández e há algumas semanas trabalha em um projeto para retratá-los e "dar fé de que são pessoas".
Entra Jason Ernesto Boquín, um nicaraguense que sorri quando lhe lembram a música de sua terra. Posa contente para a câmera. Não é o caso de todos. "Há quem saia muito sério ou mesmo prefira não fazê-la. Uma mulher me pediu que não tirasse sua foto porque seu marido, um ex-policial, poderia reconhecê-la e saber que estava tentando chegar aos EUA com seu novo parceiro."
Um estudo do Iteso (Programa Institucional de Direitos Humanos e Paz do Instituto Tecnológico de Estudos Superiores do Ocidente) indica que, todos os dias, em média 20 imigrantes passam por Guadalajara. O governo local calcula que é o triplo de cinco anos atrás. "Há muita discriminação", explica Santiago. "Queixamo-nos de como tratam nossos compatriotas nos EUA e aqui somos piores com os estrangeiros."
A maioria das pessoas que passam pelo refeitório vem de Honduras: 45%. Depois são os mexicanos provenientes dos estados do sudeste do país, como Chiapas, Oaxaca ou Guerrero. Então vêm os nicaraguenses, os salvadorenhos e os guatemaltecos. Quase todos são homens (90%, segundo números oficiais), mas também passaram mulheres e até crianças que tentam cruzar sozinhas.
Diego conta que "gostam de Guadalajara porque pensam que é uma cidade amável, e muitas no caminho não o são. Mas eu creio que não é amabilidade, é indiferença. E isso que Jalisco é um dos estados de onde provêm muitos mexicanos que vão para os EUA."
Mas que a rota do Pacífico seja menos perigosa que a do Golfo não significa que seja um caminho de rosas: 70% dos imigrantes que a cruzam sofrem algum tipo de agressão, segundo o estudo da Iteso. Em Guadalajara ficam muito poucos, relata Santiago. São mais mexicanos sem teto que tentam passar por imigrantes, explica. Isso gerou tensões entre estrangeiros e locais. Há alguns dias um corpo mutilado foi encontrado perto da linha do trem. Estava sem identificação, mas as autoridades creem que se tratava de um centro-americano.
Minutos antes das 19h, os voluntários deixam de receber pessoas. No guichê há indicações para chegar ao albergue para desabrigados da cidade. "Hoje você os vê e amanhã não mais", comenta Diego. Ele conta que um dia atendeu um menino de menos de 10 anos, mas que se comportava como adulto. O menino escondia uma navalha e se meteu em uma briga com outro imigrante. As regras do refeitório obrigam a expulsar qualquer pessoa armada, ainda mais se se envolver em uma disputa. O menino tinha ficado ferido em uma perna e mancava. Diego afirma que foi o mais duro que teve de ver enquanto trabalha ali. "Se subir em um trem que passa a 20 quilômetros por hora é difícil para um adulto, imagine para um menino ferido."
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Para driblar perigos, imigrantes ilegais escolhem caminho mais longo até os EUA - Instituto Humanitas Unisinos - IHU