04 Março 2013
“Felizes os que lutam por justiça, dizia Jesus de Nazaré. No início da ocupação, na cruz da Igreja de Dandara, um João de Barro construiu sua casa. O povo viu nisso um sinal do Deus da vida que dizia: 'sigam o exemplo do João de Barro. Construam suas casas'”, diz o Frei Gilvander Luís Moreira.
Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, o frei Gilvander, como é conhecido na Comunidade Dandara, fala sobre a ocupação de uma área de 315 mil metros quadrados a 28 quilômetros do centro de Belo Horizonte. O local que pertencia à Construtora Modelo e que devia R$ 2,2 milhões em impostos, foi ocupado na madrugada de uma quinta-feira Santa, em abril de 2009, hoje abriga mais de 1.100 famílias que lutam e defendem o direito à moradia. O nome da comunidade, Dandara, é em homenagem à companheira de Zumbi dos Palmares, a estrategista que cuidava da segurança interna do Quilombo de Palmares.
Gilvander Luís Moreira (foto abaixo) é frei e padre carmelita. Bacharel e licenciado em Filosofia pela UFPR, fez teeologia no ITESP/SP e mestrado em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. É doutorando em Educação pela FAE/UFMG, assessor da CPT, Cebi, SAB e Via Campesina, em Minas Gerais. Autor dos livros Compaixão-Misericórdia, uma espiritualidade que humaniza (São Paulo: Paulinas, 1996) e Lucas-Atos: Teologia da História (São Paulo: Paulinas, 2004).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como podemos compreender a ocupação Dandara frente à problemática político-social de Belo Horizonte e de Minas Gerais?
Gilvander Luís Moreira – Minas Gerais continua sendo um estado conservador em termos de transformações sociais. Por exemplo, no Rio Grande do Norte já existem 297 assentamentos de reforma agrária. Em Minas, apenas 300. Deveria ter, pelo tamanho do estado, no mínimo, 1.500 assentamentos. Cerca de um terço do território de Minas, estima-se, são de terras devolutas que estão griladas nas mãos de grandes empresas eucaliptadoras. Assim, o êxodo rural tem sido intensificado ultimamente. O déficit habitacional em Belo Horizonte está em torno de 200 mil moradias. Em Minas Gerais, quase um milhão de moradias. O prefeito de Belo Horizonte, Márcio Lacerda (PSB/PSDB/DEM), no seu primeiro mandato, não fez nenhuma casa para famílias de zero a três salários mínimos pelo programa Minha Casa Minha Vida. Além disso, Belo Horizonte é a única capital que não entregou ainda nenhuma casa por esse programa. Apenas no primeiro dia de cadastro para o programa Minha Casa Minha Vida, há quatro anos, 198 mil famílias se inscreveram. No ritmo que a prefeitura está construindo casas populares, serão necessários 200 anos para zerar o déficil habitacional, caso ele não aumente. Uma injustiça que clama aos céus! Os pobres não podem viver no ar. Ainda existe lei da gravidade.
Diante dessa injustiça estrutural, de um Estado violentador dos direitos humanos, dois fatores, dentre outros, têm levado os empobrecidos à luta: a necessidade e o compromisso de centenas de jovens e adultos com a causa dos pobres. Por isso, na madrugada de 09-04-2009, uma quinta-feira da Semana Santa, cerca de 140 famílias sem-terra e sem-casa, organizadas pelas Brigadas Populares e pelo MST, ocuparam, no bairro Céu Azul, região da Nova Pampulha, em BH, um terreno abandonado há décadas, 315 mil metros quadrados (31,5 hectares), um latifúndio urbano que não cumpria sua função social. O primeiro dia foi uma batalha árdua e inesquecível, mas o povo resistiu diante de centenas de policiais com armas nas mãos, com helicóptero, cães, balas de borracha etc. Ao anoitecer, quando a polícia já tinha encurralado o povo em um dos cantos do terreno, na iminência de fazer o despejo pela força militar, muitos jovens da Vila Bispo de Maura, comunidade de periferia existente ao lado, vieram em socorro às famílias da ocupação Dandara e começaram a jogar pedras nos policiais. Assim eles viraram as armas para os jovens da vila. A TV Record apareceu, filmou o conflito social e exibiu no jornal da TV Record. Na madrugada seguinte, começaram a chegar novas famílias que estavam crucificadas pelo aluguel – veneno que come no prato dos pobres – ou humilhadas pela sobrevivência de favor em casa de parentes, implorando para serem aceitas na ocupação. Foi organizada uma fila para o cadastramento. No quinto dia de ocupação Dandara já havia 1.200 famílias, o que levou a coordenação a iniciar o cadastro de uma fila de espera.
IHU On-Line – Como é o cotidiano da Comunidade Dandara? Quais são as maiores dificuldades enfrentadas?
Gilvander Luís Moreira – Dandara nasceu como ocupação, mas hoje já é uma comunidade, um assentamento rururbano, motivo da união do MST com as Brigadas Populares. Essa proposta foi contemplada no Plano Urbanístico elaborado, em diálogo com o povo de Dandara, por arquitetos da UFMG e da PUC Minas. Na Dandara há a Avenida Dandara com 35 metros de largura, artéria aorta da comunidade. Lotes de 128 metros quadrados e ruas com 10 metros de largura, tais como a rua Zilda Arns, rua Milton Santos, rua dos Palestinos, rua Pedro Pedreiro e Maria Diarista, rua Chico Mendes, avenida 9 de Abril, rua Das Flores etc., além da Av. Zumbi dos Palmares.
O cotidiano de Dandara é de muita luta. Mais de 2 mil pessoas de Dandara trabalham como diaristas, faxineira, ajudante de pedreiro, pedreiro, mecânico, motorista, vigia, na limpeza urbana, copeiras, cozinheiras, motoboy, camelôs, na economia informal. Nos dias das cinco marchas já feitas a pé, de Dandara até ao centro de BH, cerca de 28 quilômetros, muitas famílias e empresas tomaram consciência como e onde mora a sua força de trabalho. Além da luta fora de Dandara, há a luta interna pela constante organização da comunidade. Já está sendo discutida e planejada a criação de um banco comunitário de Dandara, com moeda própria, feira de Dandara, enfim, economia popular solidária. Mensalmente são realizadas assembleias gerais, e semanalmente acontecem reuniões de grupos. Além disso, semanalmente é feito e distribuído, com a colaboração da Rede de Apoio, o Jornal de Dandara, que traz os principais informes e notícias importantes da (e para a) comunidade.
IHU On-Line – Quantas famílias vivem em Dandara? Quantas casas foram construídas e quantos barracos existem? Que outros estabelecimentos há no local?
Gilvander Luís Moreira – Já são quase mil casas de alvenaria construídas (ou em construção), duas hortas comunitárias e mais de 250 hortas em quintais, dois centros comunitários, uma Igreja Ecumênica. Há também o Zumbis’ Bar, a Padaria Dandara, a Mercearia Dandara e outros pequenos comércios. Há espaço para praças e campo de futebol já em projeto. Além de casas, Dandara está construindo muitas lideranças de luta. Na comunidade vivem cerca de 1.100 famílias, sendo que em algumas casas há duas famílias. Há ainda alguns barracos de madeira. São grupos que não conseguiram ainda construir suas moradias.
IHU On-Line – Que políticas públicas estão em vigor nessa comunidade? De que forma o poder público interage com a ocupação Dandara?
Gilvander Luís Moreira – Muitas famílias de Dandara estão no programa Bolsa Família. As crianças e adolescentes estão estudando nas escolas públicas da região. No início, os postos de saúde e as escolas públicas da região se recusavam a receber os moradores de Dandara, alegando que eles não tinham endereço. Foi preciso muita luta e pressão para conquistar acesso ao SUS e às escolas públicas. O prefeito de BH, em uma postura intransigente, não aceita dialogar com a Comunidade Dandara. Refere-se ao povo de Dandara como invasores, aproveitadores e forasteiros, que, segundo ele, não merecem apoio da prefeitura, pois “são fura fila” – fila que é uma cortina de fumaça. Assim, Dandara não foi ainda reconhecida pela prefeitura de BH. Falta asfaltar as ruas, fazer saneamento. A Companhia de água e esgoto de MG – Copasa e a Companhia Energética de MG – Cemig se escondem atrás de um Termo de Ajuste de conduta – TAC , firmado entre Ministério Público de Minas, prefeitura, Copasa e Cemig. O tal TAC, inconstitucional e contrário à Lei Orgânica de BH, diz que Cemig e Copasa estão proibidas de colocar água e energia em assentamentos irregulares. As migalhas de água e energia que chegam a Dandara são através de gato, ligações informais. Assim, falta água várias vezes durante o dia, cai a energia com muita frequência, o que provoca estragos em muitos aparelhos eletrodomésticos.
Do governo estadual, o braço repressor – a polícia – está sempre presente na Dandara. Reprimiu muito no início. Durante um ano e meio agiu de forma ilegal tentando impedir a entrada de materiais de construção, mas o povo sabiamente foi driblando a polícia e, como formiguinha, foi construindo suas casas. Hoje, a polícia age em casos pontuais, como na manutenção da preservação da área ambiental de Dandara, cerca de 30% do território. Importante dizer que na Comunidade Dandara, nos últimos 12 meses, não houve nenhum assassinato. O Samu, quando chamado, demora muito para chegar, o que já levou à morte de uma mulher que esperou pelo serviço por várias horas. Um trabalhador de Dandara, enquanto fazia ligação de energia por conta própria para a comunidade, foi eletrocutado e caiu do poste morto. O corpo ficou oito horas na rua esperando o rabecão do IML. A Defensoria Pública de Minas é uma grande parceira de Dandara. Defende com muita competência a causa, atuando solidariamente com os advogados que, aliás, defendem a comunidade gratuitamente. O mercado, interessado no poder econômico de Dandara, já reconhece a existência da comunidade. Um grande número de empresas comerciais entrega mercadorias a domicílio, mas os Correios, empresa pública que cuida de um serviço essencial, não entregam as correspondências na comunidade. Alega que o “bairro Dandara” deve ser primeiro reconhecido pelo poder público.
IHU On-Line – Que avanços em termos de infraestrutura e serviços já podem ser apontados em relação ao início da ocupação?
Gilvander Luís Moreira – As famílias de Dandara, após sobreviver quatro meses debaixo da lona preta, hoje, na quase totalidade, vivem em casas de alvenaria. A construção da Igreja Ecumênica de Dandara está em fase de acabamento. O projeto urbanístico de Dandara foi um dos quatro selecionados de Minas Gerais para participar da 9ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo em 2011. Está sendo respeitado.
IHU On-Line – A participação da Igreja Católica é decisiva em Dandara? Como se dá a relação com pessoas de outros credos?
Gilvander Luís Moreira – A Igreja Católica tem participado da luta de Dandara. O arcebispo dom Walmor visitou a comunidade uma vez. Os bispos dom Aloísio e dom Joaquim Mol visitaram Dandara e celebraram com a comunidade várias vezes. Dom Joaquim Mol e eu conversamos pessoalmente com a presidenta Dilma sobre Dandara pedindo o apoio do governo federal. Algumas freiras e vários seminaristas têm acompanhando pastoralmente a comunidade. Vários colégios católicos, tais como o Colégio Santo Antônio e o Colégio Santa Doroteia, têm ajudado muito e também aprendido muito. Além de pessoas religiosas, Dandara conta com um significativo apoio de jovens universitários, do movimento estudantil, das Brigadas Populares, de militantes de movimentos sociais populares e com pessoas de boa vontade de BH, do Brasil e em mais de 50 países. Dandara é hoje conhecida e reconhecida internacionalmente.
O (neo) pentecostalismo está muito presente também. A luta ocorre de forma ecumênica, respeitando a fé de cada pessoa. Na Igreja de Dandara, que tem o objetivo de ser ecumênica, poucas pessoas não católicas participam. Muitos frequentam outras igrejas que, às vezes, animam a luta e, outras vezes, fomentam a religião da prosperidade e da satisfação individual. Há ainda igrejas, como a do “apóstolo” Valdomiro, que coloca ônibus aos domingos para levar o povo para “adorar a Deus”, dizem. As pessoas têm de estar atentas para o que dizem falsos pastores que usam os pobres, mas não os amam.
Uma conquista em 2012 foi a inclusão da Comunidade Dandara nos quadros da Arquidiocese de Belo Horizonte. Hoje, a Comunidade Dandara pertence oficialmente à Arquidiocese de Belo Horizonte como uma das Comunidades da Paróquia Imaculada Conceição, coordenada pelos padres da Congregação Cavanis, que apoiam e animam a luta de Dandara.
IHU On-Line – Qual é a fundamentação teológica e bíblica para o apoio à ocupação de terras como em Dandara?
Gilvander Luís Moreira – Dandara caminha na perspectiva da Teologia da Libertação, das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs e das Pastorais sociais. A Comissão Pastoral da Terra e a Pastoral da Criança têm atuação na comunidade. Há inúmeras passagens bíblicas que legitimam e animam a caminhada do povo empobrecido na luta pelos seus direitos. Nosso Deus é Deus da vida e da liberdade, para todos e não apenas para uma minoria. Deus quer terra e moradia digna para todos e não só para a classe dominante. Após 500 anos de escravidão sob o império dos faraós no Egito, ao partir para a liberdade, os hebreus empobrecidos chegaram diante do mar Vermelho e se viram encurralados. Na frente, o mar; detrás, o exército do Faraó, querendo trazer o povo de volta para o cativeiro. Moisés, então, mandou o povo dar um passo adiante. O povo deu um passo adiante e o mar se abriu. Assim, na luta, os pobres sempre gritam “mais um passo à frente, nenhum passo atrás. A história é a gente que faz.” Deus disse a Moisés: pegue esta cobra pela cauda. Moisés vacilou. Deus insistiu. Moisés adquiriu coragem e pegou a cobra pela cauda. A cobra se transformou em um bastão, com o qual Moisés bateu no mar e o mar se abriu, bateu na rocha e dela saiu água. É óbvio que isso não aconteceu tal como está na superfície do texto, o que uma leitura fundamentalista sugere. Mas, o povo, de alguma forma, nas brechas da história, experimentou a companhia do Deus solidário e libertador. Assim aconteceu com Moisés, com Mirian, as parteiras, Arão, os profetas e as profetisas e em muitas lutas libertárias do passado. O que era obstáculo se transformou em instrumento de libertação. Ao driblar a polícia, astutamente, e construir mil casas de alvenaria, o mar foi aos poucos se abrindo para o povo de Dandara, como se abriu no tempo de Moisés. Construir as casas em mutirão em um terreno conquistado na força da união é construir sobre a rocha. A casa não cairá se vier uma tempestade. Jesus ensinou e testemunhou que leis só devem ser obedecidas quando forem justas. Não é justo respeitar uma propriedade que não está cumprindo sua função social, enquanto milhares de pessoas estão crucificadas pelo aluguel, melhor dizendo, pelo sistema do capital. O Deus da vida quer de nós desobediência civil e religiosa. Felizes os que lutam por justiça, dizia Jesus de Nazaré. No início da ocupação, na cruz da Igreja de Dandara, um João de Barro construiu sua casa. O povo viu nisso um sinal do Deus da vida que dizia: “sigam o exemplo do João de Barro. Construam suas casas”. O livro do profeta Isaías, ao narrar a utopia de um mundo novo e uma nova terra, diz: “Os trabalhadores construirão casas e nelas habitarão” (Cf. Isaías 65,17-25). Três dias após duas crianças morrerem carbonizadas na Dandara, o que gerou uma dor imensa para toda a família dandarense, eis que apareceu um arco-íris belíssimo sobre Dandara. Emocionadas, muitas pessoas de Dandara, disseram: “Deus está nos visitando. Seremos vitoriosos.” Com essas e muitas outras inspirações bíblicas, teológicas e marxistas, a luta de Dandara vem sendo escrita no chão duro da história.
Confira a entrevista completa aqui
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Vejam! Eu vou criar um novo céu e uma nova terra.
As coisas antigas nunca mais serão lembradas,
nunca mais voltarão ao pensamento.
Por isso fiquem para sempre alegres e contentes, por causa do que vou criar.
Farei de Jerusalém uma alegria, e de seu povo um regozijo.
Construirão casas e nelas habitarão, plantarão vinhas e comerão seus frutos.
Ninguém construirá para outro morar, ninguém plantará para outro comer,
porque a vida do meu povo será longa como a das árvores,
meus escolhidos poderão gastar o que suas mãos fabricarem.
Ninguém trabalhará inutilmente,
ninguém gerará filhos para morrerem antes do tempo,
porque todos serão a descendência dos abençoados de Javé,
juntamente com seus filhos. (Is 65, 17-18; 21-23)
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Comunidade Dandara, exemplo de luta por dignidade. Entrevista especial com frei Gilvander Luís Moreira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU