18 Dezembro 2014
"No desfilar das casas nos chamou a atenção que não existe sobra de madeira porque qualquer pedaço é reaproveitado. Entre tons de marron e cinza, uma roseira esguia, esbanja rosas que, de tão cor-de-rosa, fazem o passante sentir-se feliz, pois assim eu me senti", escreve Matilde Cechin, educadora popular e professora.
Eis o artigo.
Final de dia comprido em horário de verão, na Vila Dique – região norte da cidade de Porto Alegre. Nos tempos de antanho havia sido batizada, pelos primeiros moradores imigrantes, com o significativo nome de Vila Santíssima Trindade, em cuja capela comunitária havíamos sonhado colocar o dístico “a Santíssima Trindade é a Melhor Comunidade” com referência explícita ao Deus uno e trino dos cristãos.
Trata-se da Vila popular que teve de ser removida pela INFRAERO para dar lugar aos aviões, gigantescas aves de aço consumidoras de nosso oxigênio e deixando atrás de si somente gases venenosos e aquecimento da atmosfera. Eis que depois de removida a metade da vila, o projeto da INFRAERO abortou. A segunda metade, desde o pontilhão dos automóveis na Avenida das Indústrias até a Free-way, ali continua como sempre esteve, com um porém: no arrastão da metade que foi embora, foram também todos os serviços e instituições essenciais à Comunidade, conquistados pelo povo um a um: Posto de Saúde, Praça de Brinquedos, Galpão de Reciclagem Coletiva, Creche “Galpãozinho”, Capela Santíssima Trindade, Sede da Associação, Escola Imigrantes, etc.
A estreita e comprida estrada - hoje bem mais comprimidinha - corre de este a leste. De um lado e de outro da ribanceira do barranco de contenção de águas contra possíveis cheias inundadoras do aeroporto, as casinhas estão bem mais apertadinhas, devido à quantidade de materiais recicláveis, materia-prima que é para o ganha-pão “ao suor do próprio rosto” e que enche absolutamente todos os desvãos entre as casinhas.
No desfilar das casas nos chamou a atenção que não existe sobra de madeira porque qualquer pedaço é reaproveitado. Entre tons de marron e cinza, uma roseira esguia, esbanja rosas que, de tão cor-de-rosa, fazem o passante sentir-se feliz, pois assim eu me senti.
Anoitecia aos poucos. Vento fresquinho ainda de primavera. Meninos brincando na estrada, nem fazem caso do carro pedindo passagem. Menos ainda se prontificam para retirar as garrafas plásticas servindo para marcar as goleiras.
- Onde fica a Associação de Moradores?
- Perto do galpão do Vavá - é o que todos sabem e respondem.
Depois de muito solavanco pelos buracos da estrada, mais acostumada ao andar de carroças do que de automóveis, finalmente chegamos a uma casinha igual a qualquer outra, assoalho recém lavado, três bancos de madeira, algumas cadeiras, mesa com toalha natalina onde espera uma cafeteira com café, presa a um raboquente exalando um rico perfume e alguns bolinhos fritos.
Uma das mulheres ali presente nos recebe. Esqueci o nome. Simpaticíssima, por sinal, logo nos deixa à vontade. Vai contando:
- Estou aqui, na luta, para não cair na depressão pelo assassinato do meu filho de 17 anos, há oito meses. Chegou em casa do trabalho, se arrumou e saiu para encontrar a namorada na vila transferida. Foi assassinado. Não quero que outras mães sofram o que estou sofrendo.
Moradores vem chegando, mais mulheres do que homens, umas oito pessoas. Não tem banco suficiente nem cadeira para todos. A própria casinha nem comporta. Chegam mais apoiadores de fora da vila.
A reunião foi bem conduzida, com método: todas de caderno em punho. Há quem coordene, quem anote. Começam organizando a pauta dos assuntos: o Posto de Saúde, as reuniões do Orçamento Participativo, recapitulam a avaliação da Assembléia da semana que passou e o trabalho em mutirão da fundação da AMODIQUE (Associação de Moradores da Vila Dique). A reunião flui normalmente. E que vontade, como nos primeiros tempos da organização da Comunidade , 25 anos passados, em momentos de “sintonia fina”, da unidade entre as pessoas, entoar: “Irá chegar um novo dia, um novo céu, uma nova terra, um novo mar!”
Quem são os do grupo de apoio? Que “mística libertaria” os trouxe até as casinhas remanescentes?
Ali estava palpitante a Teologia da Libertação. O céu, o próprio Deus, feito humano para divinizá-lo. Naquele grupo, sonhando com tempos melhores para todos, resplandecia o HUMANO que, de tão humano só podia mesmo ser expressão do DIVINO.
21 horas e a reunião continuava. Pedimos licença para nos retirarmos com a desculpa da idade. Eu, 78 anos, meu irmão, 87. Mas na verdade em nossa memória inconsciente estava aquela frase: “Um dia, as árvores maiores vão embora para que a sua sombra não impeça as sementes de germinar.”
Nossas palavras de despedida:
- Agora a luta é trazer o Posto de Saúde de volta (um container, no terreno limpo, em mutirão, 12 dias antes, na fundação da AMODIQUE). Depois será o galpão de reciclagem, a igrejinha…Contem com a gente.
Pensei: um galpão?... Todo aquele material ali visível, trabalho de formiguinha de quantos? Nem meia dúzia de galpões seriam suficientes, nos meus cálculos…
A estrada escura, estreitíssima para a saída da Vila até o pontilhão. Crianças àquela hora ainda brincando na estrada. Aqui e ali, em alguma casinha suspensa na barranca do dique, uma COROA DE ADVENTO na porta, algumas luzinhas de Natal pisca-piscando!
Acabávamoss de viver completa CELEBRAÇÃO de ADVENTO, RITUAL COMPLETO com LITURGIA DA PALAVRA , LITURGIA EUCARÍSTICA e… principalmente VIDA RENOVADA através da comunhão com aquelas VIDAS
A que grupo pertencem aqueles apoiadores?... Não decobrimos.
Nós e eles, até aí desconhecidos, como uma SINFONIA orquestrando a MESMA “MÍSTICA LIBERTÁRIA UTÓPICA”, porém, em ONDAS diferentes. Nós em FM. Eles – os apoiadores – em AM? Não importa!... A ALEGRIA dos anjos ao anunciar o Natal, cantando do alto, trouxe uma mensagem universal: PAZ A TODAS AS PESSOAS DE BOA VONTADE!
Ao chegar em casa, no computador, a mensagem de D. Pedro Casaldáliga encheu nais ainda nossas Vidas:
“Sobe a nascer comigo,
diz o poeta Neruda.
Desce a nascer comigo,
diz o Deus de Jesus.
Tem que nascer de novo,
irmãos Nicodemos
e tem que nascer subindo desde baixo.”
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Tempo de chegança...(advento) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU