Por: André | 02 Dezembro 2014
O homem afável e humano sentado em uma poltrona um tanto surrada, rodeado de livros que mal cabem no estreito escritório que ocupa na Escola de Economia de Paris, pouco se parece com o homem dos cartazes que o semanário Le Nouvel Observateur espalhou por toda a Paris: “Piketty, guru mundial”, dizem os cartazes que anunciam o número da revista consagrado ao economista francês e ao seu livro.
Thomas Piketty não tem nada de guru, mas uma amabilidade comprometida e um humanismo que emana de seus gestos e tom de voz. O Capital no Século XXI (Editora Intrínseca, 2014), chega às bancas argentinas editado pela Fondo de Cultura Económica. Apesar de seus mais de 1.000 páginas e de certa complexidade técnica converteu-se em um best-seller mundial e um desses livros que marcam um antes e um depois na história das ideias.
Fonte: http://bit.ly/1rMDcVF |
A obra marcou a época, ao mesmo tempo que derrubou alguns mitos que pareciam eternos, tanto mitos marxistas como liberais. Durante uma década e meia o economista francês de 43 anos trabalhou reunindo os dados fiscais de mais de 30 países desenvolvidos desde o século XVIII até hoje. Dessa pesquisa emerge uma constante: o capital, sem a intervenção reguladora do poder público, gera somente desigualdades. Esta desproporção é muito mais visível a partir da década de 1980.
O quadro é devastador: nos Estados Unidos, os 10% mais ricos detêm 45% dos ganhos. O mérito, ou seja, o trabalho, perdeu seu valor em relação à “herança” e os proprietários de bens imobiliários substituíram os proprietários de terras. A desigualdade é a marca do século.
Thomas Piketty recebeu o jornal Página/12 em seu escritório de Paris, e esta entrevista, na qual expõe os princípios do livro que revolucionou o pensamento econômico, inevitavelmente começa com uma pergunta sobre a atualidade argentina e mundial.
A entrevista é de Eduardo Febbro e publicada no jornal argentino Página/12, 30-11-2014. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
A Argentina enfrenta hoje um antagonismo atravessado pela desigualdade que raia o mafioso. Trata-se de seu enfrentamento com os fundos abutres e o imperialismo judicial dos Estados Unidos.
A Argentina sofre hoje a evolução recente e caótica da jurisprudência norte-americana sobre a dívida pública argentina. Há, aqui, uma situação de hegemonismo jurídico norte-americano que é um problema da Argentina e que pode ser um problema também para outros países. Isto é pior que a ausência de justiça. Em muitas partes do mundo assistimos a uma espécie de privatização do direito com fundos de arbitragem e interesses financeiros que constroem seu próprio direito, suas próprias cortes de arbitragem e seus próprios tribunais. Com isto escapam completamente da soberania dos Estados Unidos. É uma realidade que a Argentina enfrenta de forma extrema. De alguma maneira, todos estão confrontados com o que a Argentina atravessa. Estamos diante de um fenômeno geral de privatização do direito, de captação do direito, de construção de espaços jurídicos à parte para proteger interesses privados, o que é muito preocupante. A problemática que a Argentina enfrenta hoje ultrapassa em muito seu próprio caso. Creio que necessitamos de um mundo muito mais multipolar, um retorno a certa soberania nacional e popular, um mundo onde nem sempre se aceitem os ditados dos Estados Unidos, onde se possa propor uma visão do direito e do desenvolvimento internacional diferente daquele dos Estados Unidos.
Você compartilha hoje um privilégio raro: junto com o Papa Francisco, os meios liberais qualificam-no de novo apóstolo do marxismo.
Eu não sou marxista. Faço parte de uma geração que cresceu com a queda do Muro de Berlim, em 1989. Nasci muito tarde para ter uma tentação marxista em sua variante soviética do comunismo. O êxito do livro mostra que há um apetite por conhecimentos em torno destes temas que tocam o dinheiro, os ganhos e o patrimônio. Esses temas são muito importantes para deixá-los nas mãos de um grupinho de economistas, técnicos ou especialistas. Meu livro é uma história legível do dinheiro. Meu livro traça a história da distribuição dos ganhos e do patrimônio ao longo de três séculos e em mais de 30 países.
A síntese do seu monumental trabalho é claríssima: a posse patrimonial, ou seja, a desigualdade, impôs-se em todo o mundo.
Depende muito do país, da amplitude e da época. Não há um mecanismo exclusivo que possa explicar tudo isso. Há forças que vão em todas as direções. Isto quer dizer que existem vários futuros possíveis e não uma única dinâmica na distribuição das riquezas. Há forças que às vezes levam à redução das desigualdades, como, por exemplo, a difusão do conhecimento ou a educação, que vão nesse sentido. E também há outras forças que conduzem ao aumento das desigualdades, em particular a tendência de longo prazo que faz com que os benefícios do capital estejam acima da taxa de crescimento. Mas diria que tudo depende das instituições, das políticas que os países decidem aplicar.
Você demonstra outra ilusão errônea de Marx e prova que os benefícios do capital podem manter-se acima da taxa de crescimento. Também cai outro discurso: o do economista e prêmio Nobel de Economia Simón Kuznets. Marx pensava que a desigualdade levaria ao colapso e Kurnets, que se reduz com o avanço das sociedades.
Marx dizia que “as desigualdades vão aumentar até a revolução final”, enquanto que Kuznets escrevia nos anos 1950 que as desigualdades se reduzem naturalmente nas sociedades industriais avançadas. Ambos se equivocaram, porque há forças que podem ir nas duas direções e não sabemos qual delas irá se impor. Neste princípio do século XXI há um risco muito sério de que voltemos às desigualdades do século XIX. Isto já é uma realidade em alguns casos e em outros não. É verdade, na teoria de Marx havia uma saída econômica para o processo. Havia uma contradição entre a queda da taxa de benefícios que iria conduzir a uma catástrofe final e ao colapso deste sistema. Pode ser que minhas conclusões ainda sejam mais pessimistas porque, do ponto de vista estritamente econômico, não há saída. O rendimento do capital pode manter-se em um nível elevado, em particular porque sempre há ganhos oriundos da produtividade, das inovações tecnológicas, do crescimento da população. Apesar de uma acumulação crescente do capital, o rendimento mantém-se em um nível superior à taxa de crescimento. Em todo o caso, seria um erro pensar que uma saída puramente econômica – ou seja, a queda dos benefícios – vá resolver esta contradição. Minhas conclusões são pessimistas do ponto de vista econômico, mas otimistas do ponto de vista político. Há soluções políticas para este problema. A instituição fiscal, social ou educativa permite organizar esse processo de acumulação do capital de uma forma mais igualitária e pelo bem comum.
Como romper, então, o ciclo claro da desigualdade quando fica demonstrada em seu trabalho a constante deste mal.
Minha principal conclusão consiste em que necessitamos de instituições públicas de transparência democrática em torno dos ganhos e dos patrimônios capazes de adaptar as nossas instituições e as nossas políticas à realidade. A propriedade privada, o capitalismo e as forças do mercado devem estar a serviço da democracia e do interesse geral. O capitalismo deve tornar-se o escravo da democracia, e não o contrário. É preciso utilizar as potencialidades do mercado para demarcá-lo severamente, radicalmente se for necessário, para colocá-las na direção correta. É perfeitamente possível.
Você cita um personagem de Balzac, cuja frase é aplicável ao mundo de hoje: frente aos ganhos gerados pelo capital, não faz sentido trabalhar. É melhor casar-se com uma herdeira.
Boa parte das minhas interrogações e das minhas motivações neste trabalho de pesquisa provém da literatura, porque a literatura tem uma espécie de potência para expressar as consequências do dinheiro e das desigualdades na vida e nos laços sociais que é incrível. Com a linguagem das ciências sociais nunca teria essa potência expressiva. Creio que essas diferentes formas de expressão são complementares. É verdade que esse discurso de Balzac nos mostra um jovem ambicioso quando estuda Direito em Paris, em 1820. Mas poderia ser na Paris deste ano, ou em Buenos Aires em 2014, ou em Nova York ou no México. É um tipo de personagem eterno de jovem ambicioso que quer devorar a vida e a quem se explica que, finalmente, os estudos, o trabalho, o mérito, não levam a parte alguma e que a melhor coisa a fazer é casar-se com uma moça que, mesmo não sendo muito encantadora, tem um milhão de francos da época, cerca de 30 milhões de euros de hoje. Por acaso, o mundo de hoje é como aquele descrito por Balzac? É diferente, mas se aproxima em alguns lados. A herança nas sociedades ocidentais de pouco crescimento – e talvez algum dia para o conjunto do Planeta – recupera um nível que não tínhamos no pós-guerra, mas no século XIX. Hoje temos o que no livro eu chamo de “retorno à sociedade patrimonial”. Não é exatamente o mundo de Balzac, mas é intermediário entre o mundo de Balzac e o mundo encantado da meritocracia dos chamados Trinta Gloriosos do pós-guerra, onde se acreditou que se havia chegado a um capitalismo sem capital, sem patrimônio. Mas isso, no longo prazo, não é possível. Isso foi unicamente uma fase de reconstrução, temporária, uma fase onde o poder público soube inventar regulações. A queda do Muro de Berlim e a entrada nessa nova fase de confiança infinita na autorregulação dos mercados contribuíram muito para a repatrimonialização das nossas sociedades. Esse é o mundo que temos hoje diante de nós neste século XXI.
Você assinala que nos últimos 10 anos a capitalização mundial das bolsas cresceu 147% e o PIB mundial 80%. A desproporção é esmagadora. Para você, essa concentração do poder econômico é incompatível com os valores das nossas sociedades democráticas.
Quando a desigualdade, em particular a desigualdade patrimonial, se torna extrema, essa desigualdade não é apenas inútil para o crescimento, mas, inclusive, pode prejudicá-lo. Essa desigualdade torna-se um freio à mobilidade, um fator de perpetuação da desigualdade no tempo e, também, converte-se em uma verdadeira ameaça para as nossas instituições democráticas. Uma concentração importante do poder do dinheiro leva a uma concentração muito importante do poder de influência nos meios de comunicação e na vida política. Cada parte do mundo tem sua própria história com a desigualdade, suas próprias interrogações. Às vezes, as instituições públicas, isto é, as regras que limitam o poder do dinheiro privado na vida política, as regras que organizam o financiamento público dos partidos políticos, podem limitar esse poder do dinheiro. Mas não se deve ver essas regras e essas instituições como algo dado. Não. São instituições frágeis que podem ser postas em dúvida. Temos que levar muito a sério a questão de saber como se limita, através do Estado de Direito e de instituições muito fortes, esse controle do dinheiro.
A desigualdade, o crescimento patrimonial sem freio coloca em perigo o fundamento da democracia. Por quê? Rompe o contrato social, produz violência institucional ou social?
A desigualdade rompe o contrato social, rompe o princípio da igualdade diante da lei, da igualdade diante do sufrágio universal. Quando temos uma desproporção extrema dos meios financeiros temos também uma desproporção extrema dos meios de influência na vida política. A desigualdade também rompe o laço social e cívico por meio do qual se aceita que se coloquem em comum importantes recursos para financiar o bem público, a proteção social, os serviços públicos. Se as classes médias e as classes populares têm a duradoura impressão de que pagam mais impostos que os ricos, o consenso fiscal se rompe, ou seja, o consenso que torna possível que todos aceitem pagar uma parte importante dos recursos produzidos para financiar o acesso à educação, à saúde, às infraestruturas. Toda essa aceitação da vida em comum acaba potencialmente sendo questionada com a secessão aos mais ricos. Se quisermos uma democracia real necessitamos de instituições sociais e políticas que enquadrem a propriedade privada, que limitem a acumulação em poucas mãos. Desconfio muito dos discursos – muitas vezes hipócritas, que se ouve em muitos países – sobre a ideia abstrata da igualdade. Às vezes se servem deles para rechaçar o imposto progressivo, para justificar – na França e em outros países – que se invista três ou quatro vezes mais nos setores educativos onde vão os filhos das elites antes que ali onde vão os filhos das classes populares. E tudo isso com uma boa consciência republicana. O princípio abstrato da igualdade é proclamado muitas vezes para justificar desigualdades perfeitamente reais, extremas. Sempre que é preciso colocar em dúvida esse princípio, desconstruir essa proclamação. Essa é um pouco a meta do meu livro.
Outro mito que você desconstrói é que o crescimento diminui as desigualdades. Essa ideia é a bíblia dos liberais, que também veem na globalização uma panaceia contra as desigualdades.
Acontece que para que seja assim faltam condições. Houve fases históricas em que o crescimento era compartilhado, era equilibrado, em especial durante as décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial – em todo o caso nos países europeus e nos Estados Unidos. Aqui, sim, o crescimento correspondia a certo enriquecimento geral. Há fases como a dos últimos 30 anos nas quais temos uma parte desproporcional do crescimento que é abocanhada pelos ganhos mais altos. Aqui, um crescimento elevado não é sinônimo de enriquecimento geral. Creio que devemos superar o crescimento, devemos nos acostumar com o fato de que um crescimento de 5% anual, como ocorreu nas décadas do pós-guerra, não continuará eternamente. Devemos nos acostumar a viver com um crescimento estruturalmente mais lento, mais limpo. O que falta, sobretudo, é mais transparência na distribuição social do crescimento. É absolutamente necessário contar com mais informações democráticas e verificáveis sobre a forma como os diferentes grupos sociais, os diferentes grupos de ganhos e de patrimônio se beneficiam ou não com o crescimento. Não se pode fazer uma hipótese sobre o fato de que a taxa de crescimento maximiza sempre a ascensão social em todas as partes. Não é o caso.
Você assinala que a fase atual do capitalismo transformou as relações sociais. Estas são agora relações patrimoniais.
As relações de propriedade podem ser, do ponto de vista social, extremamente violentas, porque colocam certos grupos em dependência uns em relação aos outros. Quando uma parte dos ganhos gerados pelo trabalho devem ser pagos a quem detêm o patrimônio, seja a casa onde se mora ou o material necessário para uma empresa, isto cria uma tensão que, muitas vezes, é deixada de lado nos modelos econômicos abstratos, nos quais tudo é harmonioso e do interesse geral. As relações de propriedade são sempre complicadas, mais ainda quando o nível global do patrimônio, a capitalização imobiliária, a capitalização bursátil, recupera níveis muito elevados em relação ao nível nacional. E essas relações de propriedade são ainda mais complicadas quando essas relações de propriedade se expandem em nível internacional. Sempre é complicado pagar o aluguel ao proprietário, mas quando se trata de países que pagam juros ou dividendos a outro país, é ainda pior. Organizar relações justas e democráticas para essas relações de propriedade, no caso de uma comunidade política e democrática nacional, já é muito complicado. Com os atores internacionais é pior. Deste ponto de vista, é certo que a situação da América Latina em seu conjunto em relação com os Estados Unidos é o exemplo número um de uma relação complicada de dominação econômica. Há fluxos de capital, de juros e de dividendos que saem da América Latina para alimentar os proprietários norte-americanos. Trata-se de uma situação que está longe de ser o caminho para a harmonia e o enriquecimento geral descrito pelos modelos econômicos. Tanto no passado como hoje, esse foi o caminho de um conflito que gira em detrimento do desenvolvimento social e econômico harmonioso.
Essa bela ideia do capitalismo com rosto humano é um conto de fadas. Encontramo-nos em um marasmo no qual o ciclo humano se esgotou. Mas você persiste em um otimismo regenerador, como se ainda houvesse muitas páginas da história para encher de coisas boas.
Sim, o ciclo se esgotou. Além do mais, cada época inventa novas formas de capitalismo com rosto humano, às vezes de forma totalmente hipócrita com um rosto nada humano, outras vezes de maneira mais convincente. O certo é que a folha em branco na qual se pergunta como superar o capitalismo, como organizá-lo de outra maneira em benefício de todos, essa página ainda está por ser escrita. Independentemente dos fracassos passados, é preciso recomeçar novamente. Creio que essa é a conclusão mais importante do meu livro: as formas concretas da democracia, da propriedade, devem ser reescritas. Há formas de regulação cujos contornos com relação à transparência, aos ganhos, ao patrimônio, ao imposto progressivo sobre os ganhos já podem ser traçados. Mas também há outras formas de reapropriação democrática e coletiva da propriedade que estão para ser escritas. Depois da queda do Muro de Berlim criou-se um momento em que a única forma de organização da vida econômica era a sociedade de acionistas, com todo o poder outorgado aos acionistas. Hoje nos damos conta de que não é o caso, de que há setores inteiros das atividades humanas, a educação, a saúde, os meios de comunicação, onde a sociedade de acionistas é totalmente absurda. Na mídia há muitas discussões para saber como organizar novas formas de governabilidade e financiamento, mais participativas. Isso vale também para o setor industrial, onde a participação dos empregados nas decisões das empresas é um fato – por exemplo, nos conselhos de administração dos grupos industriais da Alemanha. Isso não os impede de fabricar carros bons, pelo contrário. A participação dos empregados e a partilha do poder pode ser em muitos casos uma garantia não apenas de um reequilíbrio social melhor, mas também de eficácia econômica. Todas estas questões devem ser abordadas com um olhar novo para sair da ideologia do mercado que se apoderou do mundo depois da queda do Muro.
Uma certa imprensa anglo-saxã trata você de “louco dos impostos”, porque propõe como nova forma de equilíbrio uma ampla revolução fiscal mundial para restabelecer a igualdade.
A meta dos impostos é poder produzir bens públicos. O imposto é interessante pelo que permite fazer. Se você olha a situação na Europa, os países mais ricos, os mais competitivos, a Dinamarca ou a Suécia, têm uma taxa de impostos obrigatória de 40% a 50%. Os países mais pobres, por sua vez, como a Bulgária ou a Romênia, têm uma taxa de impostos de 20%. Se bastasse pagar poucos impostos para ser rico, a Bulgária ou a Romênia seriam mais ricas que a Dinamarca ou a Suécia. Mas não é assim que as coisas funcionam. Ter impostos elevados pode ser bom para o desenvolvimento econômico, sempre e quando esses impostos altos forem utilizados para financiar os serviços públicos, as infraestruturas coletivas, a educação, a saúde. É o que fazem os países da Europa do Norte. É preciso que o mesmo sistema de impostos, mais além dos gastos que financia, seja justo. Para que as classes médias e populares aceitem um nível de impostos elevado é necessário que os mais favorecidos paguem tanto quanto eles. Para que o imposto seja justo deve ser progressivo, ou seja, funcionar com uma taxa que corresponda à porcentagem elevada dos ganhos e do patrimônio. Esse é um ponto importante do meu livro: o Imposto sobre os Ganhos é uma grande invenção do século XIX, mas em uma sociedade cada vez mais patrimonial requer-se igualmente um imposto sobre o patrimônio. Não precisamos esperar a emergência de um governo mundial para chegar a isso. Há muitas coisas que podem ser feitas no plano nacional e às vezes se exagera com essa ideia de que os governos nacionais não podem fazer nada na globalização. A maioria dos países conta com um sistema de impostos sobre o patrimônio e o capital, mas são sistemas proporcionais e não progressivos, aplicados unicamente ao patrimônio imobiliário e não ao financeiro. Toda esta informação suplementar sobre os ganhos, o capital e sobre quem é dono de quê, é também útil para a democratização do capitalismo. O imposto é mais que o imposto. É também uma forma de produzir informação e transparência, que podem ser utilizadas como uma base da reapropriação democrática do capitalismo.
Todas estas reformas requerem um ingrediente que aborrece o liberalismo parlamentar: o conflito.
O conflito é necessário. Devemos parar de negar a importância do conflito na história da política, na história do imposto, na história das desigualdades. Toda a história sobre as desigualdades do século XX que eu conto é uma história violenta, é uma história onde há conflitos, guerras, onde a revolução desempenha um papel. Tratemos de melhorar as coisas na próxima vez, e da maneira mais pacífica possível, mas não neguemos o fato de que faltam sanções, faltam conflitos. Na Europa, e no mundo, um dos problemas está em que nos acostumamos ao livre comércio e à livre circulação de capitais em troca de nada, em troca de nenhuma transmissão de informação, de nenhuma coordenação fiscal, de nenhum imposto mínimo sobre aqueles que mais se beneficiam com a globalização, e isto não pode continuar eternamente. Toda a história da redistribuição, do Estado Providência, do imposto progressivo durante o século XX é uma história que passa por fases de conflito. Não é uma história na qual um amável socialismo eleitoral chega racionalmente ao poder e tudo acontece com calma e espontaneidade. É uma história muito mais desorganizada e seria chamativo se o futuro fosse diferente.
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“O capitalismo deve tornar-se o escravo da democracia, e não o contrário”. Entrevista com Thomas Piketty - Instituto Humanitas Unisinos - IHU