26 Setembro 2014
Todos os dias, ao chegar ao posto de saúde onde trabalham na periferia do Recife, a equipe da médica de família Verônica Cisneiros, de 53 anos, enfrenta o mesmo desafio: evitar que pacientes de sua comunidade procurem uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) sem necessidade.
A reportagem é de Camilla Costa, publicada por BBC Brasil, 25-09-2014.
"Os médicos das UPAs atendem muitas pessoas por dia que a gente poderia atender no Posto de Saúde da Família. As pessoas vão direto para lá porque sabem que serão atendidas no mesmo dia e no posto é difícil, o agendamento demora", disse à BBC Brasil.
"Os quatro médicos do posto e os enfermeiros tentamos atender pela manhã todas as pessoas que chegam sem consultas agendadas, evitando que eles se encaminhem à UPA por questões simples. A gente tenta minimizar o problema, mas é difícil."
Para Verônica, que também é vice-presidente da associação pernambucana de Medicina de Família de Comunidade, a precarização da estrutura física dos postos de saúde e a falta de equipes suficientes para o atendimento cria uma espécie de "efeito dominó" no sistema de saúde pública.
"As pessoas com doenças crônicas - como hipertensão e diabetes - deveriam ser atendidas por nós na atenção básica, mas elas vão para as UPAs porque não há suficiente postos de saúde. Mas aí as UPAs deixam de tratar doenças agudas para tratar as crônicas."
Por causa da dificuldade das equipes de Saúde da Família de atenderem à demanda das comunidades, as UPAs - criadas para "filtrar" os casos mais simples e evitar que eles aumentem as filas dos hospitais - não conseguem cumprir seu objetivo, porque também ficam superlotadas.
"Trabalho em um Posto de Saúde da Família com 4 equipes que atendem aproximadamente 20 mil pessoas. Tenho 5 mil pessoas sob meus cuidados, enquanto que a recomendação é de 3 mil. A região é de morros e o isolamento das pessoas é grande. Não conseguimos dar conta", admite.
'Pequenos e mofados'
Se as capitais e cidades grandes do interior muitas vezes têm postos de saúde que são referência em atendimento, a realidade nas periferias e em municípios menores costuma ser de postos pequenos e insalubres.
Segundo relatos de profissionais e usuários, isso também dificulta o atendimento de pacientes que chegam sem agendamento, mesmo que sejam casos pouco graves.
"Os postos de saúde em Recife muitas vezes são pequenos e mofados, falta água e falta pessoal. Eu não tenho um espaço para fazer pequenas suturas quando alguém chega machucado. Não tenho um local de repouso para alguém que chega com uma crise hipertensiva. Não tenho insulina para corrigir a situação de um diabético, não tenho medicação para coisas simples. A gestão aqui é distante dos profissionais e a resposta aos nossos pedidos é lenta", diz Verônica Cisneiros.
A realidade de locais como o que Verônica trabalha comunidades dominadas por grupos ligados ao tráfico de drogas - também impõe uma espécie de toque de recolher, de acordo com a médica. A partir das 17h, os trabalhadores ficam sem alternativas de atendimento, a não ser as UPAs.
Alguns municípios brasileiros, como o próprio Recife e Curitiba, começam a implantar projetos de unidades que funcionem à noite, na tentativa de diminuir a superlotação em unidades que deveriam atender casos mais urgentes.
Em resposta às declarações, a Secretaria de Saúde do Recife disse que está realizando melhorias em 75 Unidades de Saúde da Família que já existem na rede, com investimento superior a R$ 16,8 milhões.
O órgão afima ainda que pretende, até o final de 2016, entregar à população 20 unidades chamadas de "Upinhas", abertas 24 horas, onde trabalham equipes de Saúde da Família que também atendem pequenas urgências e emergências em horários fora do expediente. Até agora, três delas estão em funcionamento.
Até o fim da gestão, a prefeitura também promete construir 22 novas Unidades (ou Postos) de Saúde da Família, dos quais dois já estão prontos. E afirma que contrartou mais de 1.100 novos profissionais de saúde para atuar na atenção básica.
Infiltração
Na página da BBC Brasil no Facebook, leitores de todo o Brasil contaram boas e más experiências de atendimento em postos de saúde. Entre as principais queixas estavam a dificuldade para marcar consultas, a gestão do atendimento e a longuíssima espera pelos exames.
Renata Alvarenga Da Silva Stocler, de Ipatinga (MG), disse que é necessário chegar ao Posto de Saúde da Família mais próximo às 5h da manhã para conseguir atendimento. "E mesmo assim, corre o risco de não conseguir, pois os idosos e pessoas que possuem prioridade chegam no horário em que o posto abre e há uma quantidade de consultas para o dia. Eles não marcam nada para o dia seguinte", disse.
"A má vontade dos funcionários é notável", diz Renata.
O secretário de Saúde de Ipatinga, Eduardo Penna, disse à BBC Brasil que a reorganização do agendamento das equipes de Saúde da Família é "um dos maiores desafios" para o município.
"O esforço que fazemos é para chegar ao máximo de 3 mil habitantes vinculados a cada equipe. Onde temos esse número de pessoas, conseguimos atender a toda a demanda. Mas na maioria dos municípios do Brasil temos uma população superior ao número de equipes", disse.
A professora Eunice MacCalman, de 52 anos, elogiou o atendimento da equipe no posto mais próximo de sua casa, em Campinas (SP), mas observou o mau estado das instalações da unidade. "As portas estavam sem maçanetas, com buracos, as pinturas das paredes estavam descascadas, e havia pilhas de documentos por todo lado. É um absurdo, se a vigilância sanitária aparecesse lá, fechava", disse à BBC Brasil.
"Eu tenho plano de saúde, mas os planos não estão mais funcionando no Brasil. Então apelei para o SUS, porque estava tendo dores de cabeça muito fortes. Foram todos muito atenciosos e eu voltei para casa feliz. O problema é marcar a consulta."
Após descobrir que, na fila de marcação de consultas com especialistas, levaria cerca de seis meses para ter o primeiro atendimento com um imunologista, Eunice decidiu escrever para o médico, contando seu caso. Conseguiu furar a fila.
"Ele me atendeu muito bem, mas no consultório tinha um balde recolhendo infiltração. Eu tive um diagnóstico de doença autoimune, que pode ser um monte de coisas. Até hoje eles ainda não descobriram o que eu tinha", conta.
Questionada pela BBC Brasil, a Secretaria de Saúde de Campinas afirmou que o posto de saúde do bairro de Eunice, Cambuí, foi transferido para um novo prédio de 500 m² - construído especialmente para o atendimento e inaugurado em junho desse ano.
"A mudança de prédio é uma reivindicação antiga da população e dos funcionários do local, pois o espaço anterior não tinha acessibilidade adequada", afirmou o órgão, em comunicado.
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Não conseguimos dar conta, diz médica de família na periferia do Recife - Instituto Humanitas Unisinos - IHU