17 Setembro 2014
"Mas, ao autor interessa também o presente da guerra civil. O filósofo critica os cristãos fundamentalistas, sobretudo americanos, e sua ofensiva contra aquela liberdade de escolha da qual deveriam ser orgulhosos", escreve Marco Ventura, professor de direito das religiões e direito canônico, em artigo publicado em "La Lettura", do jornal Corriere della Sera, 14-09-2014. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o artigo.
Existe a laicidade liberal no coração do Ocidente. É o princípio pelo qual cada indivíduo, enquanto dotado de consciência e de vontade, é livre e igual. E é o princípio pelo qual a esfera privada, presidida pelos direitos fundamentais, se distingue da esfera pública. É a convicção que liberdade e igualdade, direitos e deveres, privado e público, estejam em condições de produzir uma sociedade civil capaz de nutrir sólidos vínculos comunitários. É esta a laicidade liberal, o ‘liberal secularism’ de Larry Siedentop. É esta a herança do processo plurissecular através dos qual o Ocidente “inventou o indivíduo”.
Intitula-se precisamente ‘Inventing the Individual’ a última obra do filósofo americano da política, com 78 anos. O livro foi publicado no inicio do ano na Inglaterra e sairá em outubro nos Estados Unidos. As quatrocentas páginas da obra são uma declaração de amor e, simultaneamente, um grito de alarme. Na laicidade liberal o autor celebra um credo ainda vivo, larga e profundamente radicado; e, todavia, Siedentop exprime sua inquietude com um Ocidente distraído, inconsciente, ignorante. Por uma laicidade esvaziada das duas “heresias liberais”. De um lado, a livre escolha degenera em mercado sem justiça, em interesse cego: é a heresia utilitarista. Do outro, o individuo se isola, não vai além dos elos familiares e amigáveis evaporam o espírito cívico e o empenho político: é a heresia individualista. As duas heresias privilegiam a liberdade em detrimento da igualdade, sacrificam a capacidade de ver-nos nos outros e os outros em nós. De modo que o princípio se debilita, perde seu “duradouro valor moral”.
Se isso ocorre, segundo Siedentop, é porque extraviamos a genealogia da laicidade liberal; e, sobretudo, porque não compreendemos mais o fundamento cristão. Inventing the individual responde com uma corrida através dos milênios, à procura das viradas que mudaram o modo de crer na história, nos eventos, no homem. Tudo começa com o monoteísmo judaico. Aos deuses greco-romanos, escreve Siedentop, se substitui um Deus que corresponde “à experiência de pessoas subjugadas por Roma”, e, portanto “um Deus singular, remoto e imperscrutável”.
A lei deixa de ser ‘logos’, razão. É comando que desce da vontade absoluta do único Deus, dado pela lei. Ao tempo cíclico da religião greco-romana se substitui o tempo linear da história da salvação, mais apropriado a um povo nômade do deserto, “que tem familiaridade com a experiência do vento que, soprando sobre a areia transforma a paisagem de um dia ao outro”.
Também os reis e os poderosos devem submeter-se à lei de Deus: “A vontade divina é como o vento que desloca a areia do deserto”, explica Siedentop, e “nada lhe pode resistir”.
O Deus cristão rompe ulteriormente com os esquemas da antiguidade. O Cristo crucificado e ressurgido traz Deus dentro de cada um, elevando assim “a ação moral do indivíduo”. Não há mais judeus e pagãos, escravos e livres. A imortalidade é acessível a quem quer que renasça com o batismo. “A igualdade moral substituía desigualdade natural” da antiguidade greco-romana, escreve Siedentop: “A identidade do indivíduo não se exaure mais em sua função social”. É neste espaço que se afirma a nova liberdade, a liberdade da consciência, enquanto esconjuram o risco de anarquia as obrigações morais derivantes do fato de que todos os homens são filhos de Deus. O autor sublinha o papel de São Paulo, talvez “o maior revolucionário da história”. É decisiva a fadiga de Paulo com aqueles cristãos que resistem à mudança de paradigma. Na correspondência com as igrejas que fundou, escreve Siedentop, “Paulo combate contra hábitos mentais que, do seu ponto de vista, recriam formas de sujeição, que transcuram a caridade em benefício das regras, e que atribuem a “principados e potestades” competências impróprias”.
Os méritos das Igrejas na edificação de um habitat social e institucional favorável à responsabilidade individual ocupam um lugar central no volume. Criando um direito da Igreja distinto da teologia e do direito civil, distinguindo a soberania do Papa daquela do imperador, fundando a subjetividade jurídica, os canonistas medievais criam a laicidade.
Ao telefone de sua Oxford, o autor rebate a “a Leitura” a convicção que se deva precisamente aos canonistas, em particular no início do segundo milênio, o contributo crucial. O seu modo de raciocinar por pro e contra, diz Siedentop, foi “extraordinariamente positivo para a mente ocidental”. As comunidades cristãs, todavia, são também incubadoras das falências e dos conflitos de que se libera aquela que Siedentop chama a “guerra civil não declarada” entre laicidade liberal e cristianismo. Desta guerra civil o autor narra o desenvolvimento histórico. De um lado, a distorção de perspectiva em força da qual o Humanismo e o Iluminismo procuraram, no mundo greco-romano, aquela fundação da laicidade liberal que, ao invés, estava na Idade Média cristã; do outro lado, o choque, especialmente na Europa, entre movimentos anti-religiosos e Igrejas autoritárias, escravas dos próprios privilégios.
Mas, ao autor interessa também o presente da guerra civil. O filósofo critica os cristãos fundamentalistas, sobretudo americanos, e sua ofensiva contra aquela liberdade de escolha da qual deveriam ser orgulhosos; critica até Bento XVI, por haver invocado uma aliança entre religiões contra a laicidade. Simetricamente, Siedentop censura quem, em nome da laicidade, combate a religião que aquela laicidade produziu. A declaração de amor e o grito de alarme de Larry Siedentop convergem precisamente aqui: o princípio liberal que o cristianismo “inventou” é agora uma fé no homem sem fé em Deus. Solicitado a propósito de “a Leitura”, Siedentop afirma: “Somos cristãos pela metade, quer se saiba isso ou não”.
Bem, mas quanto vale esta metade? Que valor tem o indivíduo de Siedentop numa sociedade ocidental na qual se reduziu o espaço de Deus? Quanto conta compreender que nossos princípios têm raízes cristãs, se depois não temos fé no Deus cristão, e muito menos nas Igrejas? Não devemos subvalorar o valor do nosso “credo profundo” na igualdade e na liberdade, replica a voz subtil e tenaz do filósofo. Seria trágico reduzir a laicidade liberal a “ausência de credo, indiferença e materialismo”. Independentemente de nossa fé no Deus cristão, sugere Siedentop, “devemos ser orgulhosos da cultura nascida daquela fé, uma cultura na qual os princípios vêm primeiro que as regras”.
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A laicidade nasceu cristã - Instituto Humanitas Unisinos - IHU