Por: Cesar Sanson | 30 Junho 2014
Quando a Fifa for embora, depois de ter embolsado bilhões de dólares com o torneio, ficarão por aqui 12 modernas arenas. E um futebol que parece se aproximar cada vez mais da falência.
A reportagem é de Armando Sartori e publicada por Retrato do Brasil, 27-06-2014.
Em 1950, quando sediou a quarta edição da Copa do Mundo de futebol, o Brasil era muito diferente do atual. De seus 52 milhões de habitantes, praticamente dois em cada três moravam na área rural, e nosso PIB per capita era de 1,6 mil dólares, cerca de 17% do americano, de 9,6 mil dólares. O grande feito brasileiro para a realização da Copa foi a construção, no Rio de Janeiro, a então capital federal, do Maracanã, estádio que seria apresentado pela mídia da época como um “colosso”, “o maior do mundo” e que, na partida final do torneio, entre as seleções brasileira e uruguaia, acolheu quase 200 mil pessoas.
O mundo também era bem diferente. Vivia-se a Guerra Fria, que estabeleceu dois grandes blocos geopolíticos: o Ocidental, capitaneado pelos EUA e integrado pelos países europeus ocidentais, e o “comunista”, liderado pela União Soviética (URSS), ao qual aderiram países da Europa Oriental, a China – onde, no ano anterior, o Partido Comunista chegara ao poder – a Coreia do Norte e o Vietnã do Norte.
Com a Europa e boa parte da Ásia destruídas pela Segunda Guerra Mundial, participaram daquela Copa apenas 13 das 16 equipes previstas. O Brasil, como se sabe, no jogo que definiu a equipe campeã mundial, foi derrotado pela seleção do Uruguai por 2 a 1, no traumático episódio que ficaria conhecido como “maracanaço”.
Quatro décadas mais tarde, o colapso da URSS levou ao fim da Guerra Fria e a uma nova configuração mundial, na qual a hegemonia americana que se seguiu vem sendo paulatinamente contestada. A China é hoje o grande destaque dessa nova realidade: tornou-se a segunda economia mundial, superada apenas pela americana. Mas o Brasil (com uma população estimada que supera os 200 milhões de habitantes, dos quais perto de 90% vivem em cidades) também se sobressai: sua economia é a sexta maior do mundo e desde o “maracanaço” o PIB per capita brasileiro foi multiplicado por sete, chegando a 11,3 mil dólares. Ainda permanece distante do dos EUA, que é de quase 50 mil dólares, mas hoje o PIB per capita brasileiro equivale a 22,5% do americano.
Se o mundo e o Brasil não são mais os mesmos, o futebol também mudou. O Maracanã – local da partida que definirá o campeão da 20ª edição da Copa, que se inicia neste mês –, como erguido em 1950, não existe mais. Ou melhor: dele existe apenas a “casca” – a fachada tombada pelo Patrimônio Histórico. Para a disputa desta Copa, a cobertura de concreto foi demolida e cedeu lugar a outra, maior, composta de uma membrana translúcida, sustentada por uma estrutura de cabos tensionados. Quando construído, o estádio tinha dois grande níveis para acomodar o público sentado – em arquibancadas e cadeiras numeradas – e um espaço, próximo ao gramado, onde cabiam dezenas de milhares de torcedores que assistiam às partidas em pé – eram os “geraldinos”, ou frequentadores da geral, o local de ingresso mais barato do estádio. Os “geraldinos” perderam seu lugar há quase uma década: seu espaço foi tomado pela ampliação do setor destinado às cadeiras numeradas, e os outros dois níveis que abrigavam os torcedores foram agora transformados em um só.
Visto de fora, no entanto, o Maracanã ainda mantém sua imponente estrutura ovalada, de 32 metros de altura, com o eixo maior de 317 metros e o menor de 279 metros. Porém, em vez de comportar quase 200 mil pessoas, nele agora cabem menos de 79 mil – uma pequena parte das quais acomodada em 112 luxuosos camarotes. O Novo Maracanã, como passou a ser chamado, de propriedade do governo fluminense, é administrado pela Concessionária Maracanã, formada por três empresas: a Odebrecht Properties (um braço da construtora Odebrecht, responsável pelas obras de reforma do estádio); a IMX Venues e Arenas (joint venture entre os Grupos EBX – do empresário Eike Batista – e IMG Worldwide – dona das marcas Rock in Rio e Cirque du Soleil); e a americana AEG (responsável por operar mais de cem arenas em 14 países, além de ser proprietária do Los Angeles Lakers, um dos principais times de basquete dos EUA).
O Novo Maracanã é uma das 12 arenas “padrão Fifa” preparadas para a Copa do Mundo que começou neste mês. Foi erguido – como as outras 11 – com base nos requisitos estabelecidos pela Federação Internacional de Futebol, a todo-poderosa Fifa, que controla o esporte globalmente. Esses requisitos estão expostos num livro de 436 páginas. A edição é de 2011, um ano após a realização da Copa da África do Sul, evento que serviu de teste prático para a aplicação dos conceitos preconizados pela Fifa. Ali estão expostas em 12 capítulos as recomendações para a construção de estádios, que vão das “decisões da fase de pré-construção”, passam por “segurança física e patrimonial”, “iluminação e energia” e chegam à “área do jogo”.
As arenas brasileiras são, segundo o site Copa 2014, do governo federal, “projetos arquitetônicos inovadores, que aumentam a iluminação e a ventilação internas”, têm “coberturas autolimpantes, que captam água da chuva” para reúso, e “campos de jogo com dimensões padronizadas (105 metros por 68 metros)”. Além disso, estão equipadas com “assentos rebatíveis e com encosto”, “iluminação homogênea e própria para transmissões full HD” e “câmeras que permitem o reconhecimento facial”.
Os recursos investidos na construção das arenas – nove das quais são dos governos estaduais (inclusive o Maracanã), cedidas com base em contratos de parcerias público-privada (PPPs) à exploração de concessionárias privadas, e três são particulares – têm sido um dos focos mais fortes das críticas dirigidas contra o governo federal, especialmente por setores da grande mídia. Todos os novos estádios receberam financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) com juros subsidiados, além de isenções fiscais dos governos locais. Cada arena fica numa cidade-sede: duas estão na região Sul (Curitiba e Porto Alegre); três na Sudeste (Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo); quatro na Nordeste (Fortaleza, Natal, Recife e Salvador); duas na Centro-Oeste (Brasília e Cuiabá); e uma na Norte (Manaus).
Nos 60 dias que antecederam a abertura da Copa, o governo articulou uma estratégia para se defender das notícias praticamente diárias que ressaltavam defeitos no funcionamento de aeroportos e atrasos nas obras de acabamento dos estádios, entre outros. “O legado da Copa é nosso”, disse a presidente Dilma durante solenidade realizada no mês passado. “Ninguém que vem aqui leva aeroporto, obra de mobilidade urbana nem estádios na mala.” Gilberto Carvalho, secretário-geral da Presidência, foi enviado às sedes do mundial para destacar, entre outras coisas, que a parte da União na construção das arenas foi de cerca de 8 bilhões de reais, aos quais devem ser somados 17,6 bilhões despendidos em mobilidade urbana e na melhora de aeroportos. Em contraposição, desde 2010 foram gastos 825 bilhões de reais em saúde e educação, setores que, segundo parte dos críticos, foram prejudicados devido aos gastos com o grande evento esportivo internacional.
Um balanço publicado pelo diário Folha de S.Paulo em meados do mês passado mostrava que, um mês antes da abertura da Copa, das 167 intervenções previstas na Matriz de Responsabilidade – documento que registra as obrigações dos diversos entes envolvidos com o evento – apenas 68 estavam prontas, 88 não estavam concluídas e 11 não haviam saído do papel. Era a esse estado de coisas que parecia referir-se, de forma otimista, Aldo Rebelo, ministro do Esporte, quando comparou a organização da Copa à do Carnaval. “Se você comparecer a um galpão de escola de samba, você aposta que não vai ter desfile nenhum, mas, no dia, a escola está lá, bonita, pontual, organizada.”
Além das críticas, o governo também estava preocupado com a segurança. Nos grandes protestos de meados do ano passado, a Copa das Confederações se tornou um dos alvos. “Ninguém vai encostar a mão nas delegações das seleções, como fizeram com o ônibus da Itália na Copa das Confederações”, garantiu a presidente Dilma a um grupo de colunistas esportivos a quem convidou para jantar no mês passado. “A segurança vai ser total.” No episódio a que se referiu a presidente, o ônibus foi apedrejado por manifestantes.
Para garantir a segurança, o governo articulou um grandioso esquema no qual serão empregados 100 mil policiais (entre agentes das polícias Federal, Civil e Militar) e 57 mil integrantes das Forças Armadas (35 mil do Exército, 13 mil da Marinha e 9 mil da Aeronáutica). “Estamos preparados para qualquer situação”, assegurou José Eduardo Cardozo, ministro da Justiça.
A tarefa poderia ser facilitada pelo fato de que, embora houvessem retornado nas semanas que antecederam a Copa e persistissem ainda no final do mês passado, os protestos não tinham o mesmo vigor dos realizados há um ano nem, em sua maioria, possuíam como alvo específico o torneio – os manifestantes mais pareciam estar aproveitando o momento para chamar a atenção para suas reivindicações salariais e por direitos sociais (ver “Uma fantasia da Copa”, nesta edição).
Durante a cerimônia em que afirmou que “o legado da Copa é nosso”, a presidente Dilma também declarou que esta será a “Copa das Copas”. É claro, ela estava defendendo seu governo, o qual espera que o evento gere 3,6 milhões de empregos e movimente 65 bilhões de reais este ano, “um legado importante na área econômica”, como diz Joel Benin, assessor do Ministério do Esporte. A avaliação é contestada, inclusive por Wolfgang Maenning, da Universidade de Hamburgo, que estuda há anos os efeitos econômicos da realização de eventos esportivos de grande porte. “Estimativas infladas de geração de emprego e renda são comuns em eventos desse tipo porque os governos precisam justificar seus gastos com estádios e instalações esportivas.”
Mas, independentemente do acerto de tal avaliação, o bordão presidencial pode ser aplicado se o ponto em questão for o faturamento da Fifa com a Copa. Segundo estimativas da BDO, empresa brasileira de auditoria e consultoria, a Fifa pode faturar algo como 5 bilhões de dólares com a Copa deste ano. Se confirmado, esse valor será 36% superior ao alcançado no evento anterior, realizado em 2010, na África do Sul, e mais que o dobro do obtido em 2006, na Alemanha.
Os direitos de transmissão pela TV respondem pela maior parte dos recursos obtidos pela Fifa e têm evoluído explosivamente desde 1990. Naquele ano, na Copa realizada na Itália, foram arrecadados 57 milhões de dólares com esse item. Oito anos mais tarde, na França, foram 138 milhões de dólares. Em 2002, houve um salto espetacular, de 466%: na Copa do Japão e da Coreia do Sul, o faturamento com transmissão alcançou 782 milhões de dólares.
Isso decorre do aumento da audiência a cada edição do torneio. Espera-se que, no dia 13 do mês que vem, quando se realizar a final programada para o Novo Maracanã, o número de telespectadores supere os 530 milhões que presenciaram em todo o mundo a vitória da seleção espanhola sobre a holandesa, na prorrogação, por 1 a 0 na final do torneio disputado há quatro anos.
A Fifa também recebe muito dinheiro dos patrocinadores – para esta copa, são 20, organizados em três níveis. No primeiro, estão as marcas “parceiras”, que atuam com a entidade em todos as ações desenvolvidas por ela. São: Adidas, Coca-Cola, Emirates, Hyundai-Kia Motors, Sony e Visa. No segundo nível estão os “patrocinadores da Copa”: Budweiser, Castrol, Continental, Johnson&Johnson, McDonald’s, Moy Park, Oi e Yingli. Por último, vêm os “apoiadores nacionais”: Apex Brasil, Centauro, Garoto, Itaú, Liberty Seguros e Wise Up.
Nenhum desses patrocinadores, assim como a Fifa e suas subsidiárias, pagará tributos e contribuições federais, como o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e o Imposto de Importação (II). Essa é uma imposição da entidade ao país que se candidata a organizar a Copa, assim como faz o Comitê Olímpico Internacional (COI) quando dos Jogos Olímpicos.
Além da Fifa, cada seleção tem seus próprios patrocinadores. No caso da brasileira, são 14 marcas, entre as quais destacam-se Guaraná Antarctica, Itaú, Nike, Sadia e Vivo. Também os principais jogadores são patrocinados individualmente. No caso dos brasileiros, 35 patrocinadores diferentes investem em dez dos convocados e mais o técnico Luiz Felipe Scolari. Neymar é o preferido, com 14 marcas associadas à sua imagem. David Luiz e Thiago Silva estão na segunda colocação, com sete. Scolari aparece em terceiro, com cinco.
Os efeitos da Copa deste ano já se fizeram sentir nos cofres da Fifa: no ano passado, ela arrecadou quase 1,4 bilhão de dólares, 40% acima do faturamento de 2009, igualmente ano de véspera da realização de uma Copa. Esses dados dão uma ideia da evolução do futebol como negócio nas últimas décadas, tendo a Fifa como seu centro organizador. A entidade tornou-se uma máquina de arrecadação após a eleição do brasileiro João Havelange para presidi-la, em 1974. “Quando cheguei ao escritório da Fifa, em Zurique, encontrei uma casa velha e 20 dólares em caixa”, declarou ele durante entrevista ao site da entidade, em dezembro de 2003. “Quando fui embora, 24 anos depois, deixei propriedades e contratos no valor de mais de 4 bilhões de dólares.” Eventuais exageros à parte, foi durante o quarto final do século passado que o futebol tornou-se definitivamente um big business, talvez o maior de toda a indústria mundial do entretenimento.
Parte essencial desse negócio são os jogadores, para os quais há um mercado futebolístico organizado globalmente, em que os atletas são avaliados com base nas multas decorrentes de eventual quebra do contrato que cada um mantém com uma determinada equipe. Assim, para um time contratar um determinado jogador que tenha contrato em vigência com outro clube, é necessário pagar essa multa, que acaba por definir o valor do atleta. No caso da seleção brasileira convocada no mês passado para disputar a Copa, o valor total dos 23 jogadores que compõem o elenco chega próximo de 714 milhões de dólares, o equivalente a 9% dos 7,9 bilhões de dólares estimados para todos os elencos das 32 seleções que participam da competição. Nesse mercado de jogadores, no entanto, o Brasil – como o conjunto de países sul-americanos e africanos – é exportador, enquanto os times de países da Europa Ocidental, principalmente, e também os da Europa Oriental, do Leste Asiático e até alguns do Oriente Médio são importadores. Até certo ponto, nesse mercado, os países refletem o papel que desempenham na economia de forma geral.
Para as grandes equipes europeias costumam seguir os craques de primeiro nível mundial, como Neymar, adquirido pelo Barcelona da Espanha junto ao Santos FC numa operação financeira controversa (o valor divulgado inicialmente foi de 17 milhões de euros, mas, dias depois, ficou claro que o clube espanhol havia despendido mais de cinco vezes esse montante).
Uma das consequência desse processo é bem visível quando se compara a seleção brasileira de 1950 com a atual. Hoje, apenas quatro dos 23 convocados não jogam em times do exterior. Não se trata de uma novidade, já que desde a década de 1990 a seleção é composta, em sua maioria, por jogadores que atuam fora do País. Dos “estrangeiros” atuais, seis jogam na Inglaterra, três na Espanha, três na Itália, dois na Alemanha, dois na França, um no Canadá e um na Rússia.[Revisor1] Em 1950, todos jogavam em equipes locais.
Além de ter se transformado num grande negócio, o futebol vive uma fase de monopolização. É o que avalia, utilizando outros termos, José Sánchez, responsável pelo marketing do Real Madrid, um dos grandes clubes mundiais, baseado na Espanha, ao declarar que, na atual etapa, restarão “seis marcas globais”. “As pessoas apoiarão uma subparte local dessas grandes marcas.” O dirigente espanhol compara a atividade futebolística com a cinematográfica: “Somos fornecedores de conteúdo, como um estúdio”.
Em busca de se estabelecerem como marcas globais, os clubes europeus mais conhecidos já organizam torneios de pré-temporada muito lucrativos na China, no Japão e nos EUA, escreveu Paulo Favero em sua dissertação de mestrado Os donos do campo e os donos da bola: alguns aspectos da globalização do futebol, apresentada em 2009 à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São mercados em que o futebol tem pouca penetração em relação ao europeu e ao sul-americano, nos quais já está estabelecido há mais de um século, e que apresentam boas possibilidades de lucro.
A globalização do futebol está diretamente associada ao papel exercido pela Fifa, que o administra com mão de ferro. “A entidade exerce esse poder influenciando suas confederações de cada continente, mas regula e controla as mudanças usando a geopolítica para dar as cartas”, diz Favero. Segundo ele, a Fifa tem “um enorme poder de influência política e econômica e controla todos os passos do futebol no mundo inteiro, determinando como e quanto ele será realizado”.
A estrutura de poder do futebol mundial é piramidal. No topo fica a Fifa. Os jogadores formam a base e acima deles situam-se os clubes. Estes, por sua vez, são filiados a federações nacionais, ligadas a seis grandes entidades regionais: as confederações de futebol de Oceania, Ásia, África, Américas do Norte e Central e Caribe, América do Sul e Europa (a poderosa União da Associação Europeia de Futebol, Uefa). Todas subordinadas à Fifa.
Além de definir estritamente as regras do próprio jogo, a Fifa controla também os regulamentos dos torneios e a própria atividade profissional dos atletas de futebol. Para atuar como jogador de futebol profissional, o atleta – ou, desde 1974, quando a Fifa passou a se interessar pelo futebol feminino, a atleta – precisa ter vínculo contratual com um clube e estar registrado numa federação. Sem isso, não pode atuar.
A busca de novos talentos envolve procuradores e empresários. “A função de empresário cresceu vertiginosamente no futebol moderno, principalmente no Brasil”, escreveu Favero. A Fifa supervisiona um quadro de “agentes”, pessoas credenciados por ela para negociar jogadores. No site da entidade há uma lista com mais de 7 mil nomes, dos quais 230 atuam no País, o quinto colocado nesse ranking, acima da Argentina, que tem 220. A Itália figura no topo da lista, com mais de mil agentes, seguida pela Espanha, com 600, pela Inglaterra, com 543, e pela Alemanha, com 456.
A Copa pode render dividendos políticos para o governo, principalmente se a seleção brasileira for campeã. Mas, do ponto de vista estrito do futebol brasileiro, sua realização deve significar muito pouco. É verdade, como disse a presidente Dilma, que as modernas arenas vão ficar por aqui, mas a questão é até que ponto isso será positivo.
A arenização dos estádios de futebol teve início nos anos 1990. Segundo Irlan Santos, autor de O público que devemos abolir: a elitização dos estádios brasileiros, a tese, que conta com apoio crescente da mídia esportiva brasileira, é a de que “o estádio deve se tornar um centro de consumo que vá além do jogo de futebol”, o que exigiria um novo tipo de público. Para expor cruamente esse pensamento, ele relata a crítica feita por um “consultor de marketing e gestão esportiva” à iniciativa do São Paulo FC de, no ano passado, baixar de 30 reais para 3 reais o preço do ingresso mais barato para atrair público a seu estádio. “Quando o preço cai muito, o nível do torcedor que vai ao estádio é muito pior”, declarou o consultor a um jornal de esportes. “Inclusive, atrai um perfil de público que devemos abolir dos estádios, que é uma bandidagem.”
O conceito de arena multiúso, no entanto, não tem origem no futebol, mas, sim, em outros esportes praticados nos EUA. Sintetizando a ideia, Santos diz que o antigo estádio foi transformado, na sua versão ideal, num “shopping center estruturado para receber diferentes formas de atração, como shows, eventos corporativos e religiosos”. E também conta com cinemas, lojas e restaurantes, que podem ser utilizados cotidianamente e não somente nos dias de eventos. A Fifa começou a incorporar tal conceito, não por mera coincidência, quatro anos após a competição realizada nos EUA, em 1994.
A introdução obrigatória das arenas nas Copas é parte de um processo de elitização que, no Brasil, vem dos anos 1990, quando as acomodações dos estádios tradicionais passaram a ser setorizados – os ingressos, que antes, de forma geral, tinham apenas duas categorias (arquibancadas e numeradas), com preços diferenciados, passaram a ser cobrados segundo a localização do torcedor em relação ao campo. Assim, quer nas arquibancadas, quer nas numeradas, é mais caro quando o lugar vendido fica situado na área lateral ao gramado e mais barato se localizado nas acomodações atrás dos gols. O resultado é que o espaço destinado ao público mais pobre encolheu.
Um estudo da Pluri Consultoria, empresa voltada à analise da economia do esporte, ajuda a compreender o que ocorreu a partir daí. Numa comparação envolvendo outros 15 países (entre os quais Espanha, Itália, Argentina e México), que leva em conta a renda per capita de cada um deles, o preço dos ingressos mais baratos vendidos na série A do Campeonato Brasileiro de futebol foi o mais caro de todos. “Isso faz do Brasil o país de ingressos mais caros do mundo em ternos proporcionais à capacidade de consumo da população”, diz o relatório. Com as arenas, esse diferenciação tende a se tornar ainda maior, porque elas passaram a oferecer acomodações ainda mais sofisticadas, como camarotes e áreas VIP.
A experiência com arenização promovida pela Copas mostra que o legado brasileiro pode se transformar numa fria. Santos cita um estudo publicado em 2012 segundo o qual, dos 35 estádios novos ou reformados para as últimas três Copas, 31 – todos construídos com dinheiro público, mas geridos por concessionárias privadas – haviam sido devolvidos ao poder público por serem arenas incapazes de gerar receita suficientemente lucrativa para sua manutenção. É uma proporção de fracasso que beira os 90%. Se a mesma taxa fosse aplicada às nove arenas da Copa que serão operadas por concessionárias no Brasil, apenas uma seria lucrativa.
Mas, segundo Santos, no caso brasileiro os contratos de PPP atribuem aos governos estaduais a obrigatoriedade de manter os custos de manutenção das instalações caso o retorno financeiro seja insatisfatório. Foi o que ocorreu com a Minas Arena (o antigo Mineirão), de Belo Horizonte, entregue no final de 2012 após passar por dois anos de reformas. Como somente o Cruzeiro utiliza o estádio (o outro grande time mineiro, o Atlético, decidiu não utilizar a Minas Arena), no ano passado a renda gerada pelo clube foi insuficiente e a concessionária teve prejuízo, o que levou o governo mineiro a arcar com 44,4 milhões de reais, valor referente ao lucro mínimo de 3,7 milhões mensais assegurado pelo contrato de PPP.
As baixas rendas decorrem do baixo número de torcedores que comparecem aos estádios. De acordo com Santos, o público médio nas sete cidades onde há maior afluência aos estádios situa-se entre 14 mil e 17 mil pessoas por jogo. Todas elas terão arenas. Dessas, em três (Curitiba, Porto Alegre e São Paulo) os estádios pertencem a clubes e, portanto, os eventuais prejuízos serão arcados por eles. Nas outras quatro (Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e Salvador), as arenas estão nas mãos de concessionárias.
Paulo Calçade, colunista de O Estado de S. Paulo, um dos jornalistas esportivos que estiveram com Dilma no mês passado, escreveu, dias após o encontro, que, mesmo que a seleção brasileira seja vitoriosa na final a ser disputada no mês que vem, “o legado da Copa do Mundo não será o título do time de Felipão”. Ele lembra que, quando o Campeonato Brasileiro reiniciar, três dias após o término do torneio, “a Fifa estará a caminho de casa levando todo o glamour e a organização da Copa para sua sede na Suíça”.
Aqui, restarão estádios vazios, ingressos caros, clubes endividados e jogos de baixa qualidade. Sem falar da situação dos cerca de 30 mil jogadores de futebol brasileiros que atuam por 684 times profissionais, dos quais 85% disputam apenas torneios estaduais, de curta duração. Isso significa que a imensa maioria dos jogadores – que ganha até dois salários mínimos mensais – não pode se manter com a profissão na maior parte do tempo.
Para os brasileiros, a “Copa das Copas” tem prazo de validade curto, e nem o legado das arenas parece ter o poder de alterar a cada vez mais dura realidade do futebol nacional.
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