23 Abril 2014
"Francisco é enfático ao dizer que o capitalismo, em sua própria raiz, é iníquo, carecendo de orientação antropológica. O sistema capitalista, em outras palavras, trata o homem como coisa entre coisas, não apenas ignorando sua dignidade, mas também embrutecendo-o deliberadamente", escrevem Felipe Dittrich Ferreira, antropólogo, e Marcos Vinicios de Araujo Vieira, sociólogo, em artigo que nos foi enviado e publicamos a seguir.
Eis o artigo.
Quando Graciliano Ramos publicou S. Bernardo, em 1934, o moderno capitalismo começava a penetrar no domínio rural nordestino, com conseqüências sociais diversas. No romance, à luz das transformações socioeconômicas em curso, Graciliano narra o drama humano de Paulo Honório — profetizando, ao mesmo tempo, a realidade do homem burguês de nosso tempo. Com sensibilidade embotada e olhar quantificador, Honório decide transformar sua fazenda, S. Bernardo, de modo a adequá-la plenamente à lógica do capitalismo moderno. Buscando ascender socialmente, Honório nada poupou, sacrificando até mesmo suas relações familiares. Ao final, quando tudo em sua vida, incluindo a relação amorosa com Madalena, foi "afogado nas águas geladas do egoísmo", o personagem, num esforço sincero de auto-análise, constata:
Nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins. É a desconfiança terrível que aponta inimigos em toda parte! A desconfiança é também conseqüência da profissão. Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens, uma boca enorme, dedos enormes. (...). Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades monstruosas. A vela está quase a extinguir-se.
(...). Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio. Entretanto, o luar entra por uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no chão.
É horrível! Se aparecesse alguém... Estão todos dormindo. Se ao menos a criança chorasse... Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que Miséria!
Com a publicação da Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, do Papa Francisco, é chegado o momento de levarmos a ilustrativa experiência narrada por Graciliano Ramos mais a sério. Precisamos refletir sobre o tipo humano gerado pelo capitalismo e pensar, em particular, nas repercussões teológicas da adesão desmedida ao universo mercantil. Francisco é enfático ao dizer que o capitalismo, em sua própria raiz, é iníquo, carecendo de orientação antropológica. O sistema capitalista, em outras palavras, trata o homem como coisa entre coisas, não apenas ignorando sua dignidade, mas também embrutecendo-o deliberadamente. Essa denúncia já havia sido antecipada pelo Papa em 2013, durante visita à ilha de Lampedusa, no sul do Itália. Na ocasião, Francisco manifestou solidariedade aos refugiados e imigrantes que se lançam ao Mediterrâneo, em embarcações muitas vezes improvisadas, na busca desesperada por condições dignas de vida. Frente aos destroços de navios naufragados, o Papa não se limitou a solicitar compaixão. Procurou lançar luz sobre aspectos sociológicos do problema, indicando que, em função da arraigada “cultura do bem-estar”, estaria em curso a “globalização da indiferença”:
Habituamo-nos ao sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa, não é responsabilidade nossa! (...) A globalização da indiferença tirou-nos a capacidade de chorar.
Ao denunciar este quadro, Francisco nos compele a refletir, sob nova luz, a respeito de um conjunto importante de capacidades humanas, relacionadas, por um lado, ao coração, e por outro, ao entendimento. Está em questão a consciência do homem moderno: seu discernimento, sua sensibilidade, sua forma de relacionar-se. Francisco trata desses temas, no texto mencionado acima, exortando o homem a transformar-se, levando em conta os ensinamentos do Evangelho, ao mesmo em que faz críticas ao sistema econômico em vigor. Parece, portanto, haver forte relação entre os dois temas.
Para compreendermos a conexão entre teologia e economia, para a qual o Papa chama a nossa atenção, parece-nos útil aplicar alguns conceitos da moderna ciência social à reflexão teológica. O conceito de “reificação”, por exemplo, proposto por Lukács, parece iluminar aspectos importantes da situação denunciada pelo Bispo de Roma. Na visão do pensador húngaro, o conceito explicaria traço característico da racionalidade moderna que tende a transformar em “coisas” as mais diversas entidades e relações, desumanizando-as. Já na década de 1920, Lukács assinalava a proliferação desse fenômeno em função do alargamento acelerado da esfera mercantil, dentro da qual relações essenciais passaram a se desenrolar, incluindo a relação dos homens entre si (por meio, sobretudo, do comércio de “mão-de-obra”) do homem consigo próprio (veja-se, por exemplo, a idéia de “capital humano”, desenvolvida pela Escola de Chicago, na década de 1960) assim como do homem com a natureza (transformada em simples fonte de “matérias-primas”).
O desfecho desse processo, na perspectiva lukacsiana, não poderia ser mais sombrio: a própria consciência, que consiste, na linguagem do Concílio Vaticano II, no lugar sagrado de comunicação de Deus com o homem, tende a ser “coisificada”. Esse desfecho tem implicações antropológicas, ecológicas e teológicas que devem ser denunciadas com ênfase. Afastado de Deus o homem se empobrece, preso num círculo vicioso de autorreferencialidade. Colocando-se no centro do universo, por vezes de forma desatenta, o indivíduo reificado transforma as demais pessoas em meios para seus fins particulares, à maneira de um deus frívolo e cruel. Da mesma forma é tratada a natureza, transformada em simples depósito de recursos. Sob o olhar mercantilizado, com efeito, tudo é permitido: vidas podem ser descartadas, pessoas podem ser escravizadas, rios e mares podem ser convertidos em esgotos, florestas podem ser transformadas em dinheiro, ao mesmo tempo em que se admite com naturalidade a criação de animais em larga escala exclusivamente para o abate como se outras espécies não tivessem valor intrínseco. Estamos, em verdade, no reino da completa indiferença, que a Campanha da Fraternidade da CNBB deste ano vem a denunciar, ao menos parcialmente, com o tema do tráfico de pessoas — crime que transforma seres humanos em objetos de lucro e prazer.
Diante desse quadro, contra o qual se insurge ao mesmo tempo a crítica teológica e a sociológica, não cabe dúvida de que somos desafiados a tomar uma decisão fundamental para garantir nossa humanidade, resgatando, ao mesmo tempo, a qualidade da vida em sociedade e as condições de vida na Terra, sob o ponto de vista ecológico. É urgente recuperarmos o discernimento, libertando o inconsciente de fantasias criadas pelo capitalismo e a consciência da lógica calculista hoje imperante. Ao mesmo tempo, devemos refletir sobre a reconstrução da sensibilidade, sobre nossa capacidade de estabelecer vínculos significativos não apenas com outros seres humanos, mas também com Deus, inclusive por meio do “espelho do mundo sensível”, nas palavras utilizadas por São Boaventura para fazer referência à natureza. Não se trata, portanto, de buscarmos apenas a salvação das almas, como se dizia antigamente. É necessário, de fato, salvarmos o mundo, ressacralizando-o. Ao combatermos a reificação, restaurando, pouco a pouco, o sentido das coisas, oxalá possamos dar alguns passos nessa direção.
A história da evolução à qual estamos fazendo alusão não é simples. Já se alegou que a religiosidade foi combatida, ao longo do período moderno, de modo que o homem não pudesse evocar uma fonte alternativa de legitimidade frente a eventuais conflitos com a lei civil. Com relação ao desenvolvimento do capitalismo, embora não seja correto falar num esforço deliberado em contraposição à religião, inclusive à luz das lições de Max Weber, não há dúvida de que o referido sistema, primeiro ao prender o homem à esfera da produção e, em seguida, ao aprisioná-lo à esfera do consumo, deu origem a uma reação em cadeia que parece minar a religiosidade por todos os lados, prejudicando fatalmente nossa capacidade de compreender este mundo e respeitá-lo. T. S. Eliot atribuiu parcela importante de culpa ao exagerado papel atribuído por nossa Era à ciência. Nos versos abaixo, traduzidos por Rubem Alves, os saberes, que buscamos acumular, contrapõem-se à sabedoria, que deixamos de cultivar:
O círculo sem fim da idéia e ação,
De invenção sem fim, de experimentação sem fim,
Traz conhecimento do movimento, mas não da tranqüilidade;
Conhecimento da língua, mas não do silêncio;
Conhecimento de palavras, e ignorância da Palavra.
Para resumir a ópera poderíamos dizer o seguinte: distraído por miragens de felicidade, cooptado por ilusões de poder, encerrado num universo artificialmente desprovido de sentido, reduzido a instrumento e afastado de Deus, o homem tornou-se menos criativo e mais sujeito à manipulação, ao mesmo tempo arrogante e tíbio, menos propenso a exigir uma vida absolutamente melhor sobre a Terra. Descrentes, em outras palavras, com relação à existência de um propósito maior para este mundo, perdemos a capacidade de nos reconhecermos, mutuamente, como filhos de Deus. O mesmo ocorre no que diz respeito ao modo como compreendemos e nos relacionamos com a natureza: perdemos a capacidade de ver as diversas facetas do mundo em sua essencialidade, à luz, por exemplo, daquela evolução cósmica, rumo à Cristificação de todas as coisas, de que nos fala Teilhard de Chardin.
Nessas circunstâncias, somos como que obrigados a declarar como Paulo Honório: "endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada". No mundo reificado, somos, de fato, como aquele cego de Betsaida, narrado pelo Evangelho de Marcos, a espera de uma cura, porque, como ele, não nos acautelamos do fermento dos fariseus. Nesse sentido, superar a consciência reificada implica adquirir olhar qualitativo sobre o mundo e, com Francisco, "a capacidade de chorar, de padecer com" diante do sofrimento do outro, porque de outro modo estamos na escuridão da autorreferencialidade. Em última instância, significa superar a racionalidade instrumental, que opera através de cálculo sobre a adequação eficiente entre meios e fins, sem que se coloque em questão a validade dos próprios fins, mesmo quando eles importem na destruição das condições de sobrevivência do homem sobre a Terra ou na alienação de sua própria humanidade.
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A economia da salvação: Desdobramentos antropológicos, ecológicos e teológicos da reificação da consciência - Instituto Humanitas Unisinos - IHU